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2 O NOME E SEUS SIGNIFICADOS: MARCO ANALÍTICO E CONTEXTO

4.1 De “o nome e o como” para “o nome além do como”: microanálise e

Segundo Justo Serna e Anaclet Pons (2012), até a década de 1970 predominavam os estudos históricos baseados no modelo de história total proposto por Fernand Braudel na segunda geração dos Annales. Padrão macroanalítico que prezava por grandes escalas, longa duração e métodos seriais. Entretanto, nessa época a macroanálise vigente começou a dar sinais de esgotamento, o que motivou a elaboração de propostas que saíssem de tal padrão. Um dos primeiros locais onde isso aconteceu foi a Itália, a partir da defesa de um modelo microanalítico, que permita a redução da escala do objeto de investigação.

É comum associar a microanálise a Ginzburg. Não obstante, essa proposta pioneira surgiu inicialmente de Edoardo Grendi. A partir da influência da antropologia e da economia, este autor destacava da primeira uma “vocação microanalítica” e da segunda “o estudo das relações sociais através de suas distintas manifestações econômicas ou extraeconômicas” (SERNA; PONS, 2012, p. 31).

Iniciou-se assim, conforme Henrique Espada Lima (2012, p. 212), a constituição de uma proposta baseada na ideia de “microanálise social”:

O ponto de partida de uma história social entendida como “história das relações entre pessoas e grupos”, edificada a partir da reconstrução em escala reduzida das redes de relações interpessoais verificadas no tratamento intensivo das fontes seriais, em um recorte circunscrito (o bairro urbano ou a comunidade rural, por exemplo).

178 Como optamos por não analisar neste momento processos judiciais, não analisaremos aqui formas de nominação não oficiais como as estudadas por Weimer (2008; 2013).

Proposta marcada pela insatisfação com os modelos vigentes da história econômica e com as interpretações, influenciadas pelo marxismo, acerca da transformação social e das associações sociais (ESPADA LIMA, 2012).

Assim, mediante uma renúncia ao teleologismo e ao referente normativo de medida nas análises, a proposta desenvolvida por Grendi transita do micro da unidade doméstica ao macro da sociedade mais ampla, com a comunidade como espaço intermediário. Sua contribuição mais lembrada, porém, foi a do excepcional- normal, aqui entendida como, na falta de informações de primeira mão, o uso de documentos indiretos lidos nas entrelinhas (SERNA; PONS, 2012).

Algum tempo depois, Ginzburg publicou uma série de ensaios referentes à microanálise. Em O nome e o como, escrito em coautoria com Poni, apontou-se que a investigação quantitativa de longa duração, não obstante suas contribuições, pode distorcer os fatos observados e gerar uma história social homogeneizada. Em resposta, muitos investigadores passaram a realizar análises próximas de fenômenos circunscritos. Reflexo, supõe os autores, das incertezas referentes a processos macro-históricos. Com a circunscrição do âmbito investigativo, é possível a sobreposição de séries documentais, as quais têm como guia o nome do indivíduo. Em outras palavras, o método onomástico (GINZBURG; PONI, 1989), que não abandona a investigação serial, mas não considera o anonimato como horizonte analítico (SERNA; PONS, 2012).

O problema é: como fazer uma investigação nominativa de setores sociais subalternos? Levando em conta a necessidade de escolher casos relevantes e significativos, Ginzburg e Poni (1989) retomaram o excepcional-normal de Grendi, ampliando o sentido do termo para além do documento excepcional e chegando a objetos de investigação também extraordinários. Objetos que “funcionam como espias ou indícios de uma realidade oculta que a documentação, de um modo geral, não deixa transparecer” (GINZBURG; PONI, 1989a, p. 177).

A questão do indício foi retomada em outro ensaio do autor (GINZBURG, 1989b), no qual foram estabelecidas as diretrizes do paradigma indiciário. Com diversas influências, como a medicina, a psicanálise, o romance policial, o método de Giovanni Morelli (para análise de obras de arte) e a semiótica, Ginzburg defende que, a exemplo da medicina, a história baseia-se em indícios, conjecturas e testemunhos indiretos. Não sendo possível acessar o passado diretamente, especialmente quando os vestígios são “excepcionais”, “existem zonas privilegiadas

– sinais, indícios – que permitem decifrá-la [a realidade opaca]” (GINZBURG, 1989b, p. 177). Ao se deparar com a questão do rigor em um campo onde predomina a dúvida, o autor defende abertamente um “rigor flexível” baseado na intuição, isto é, na conjectura e na chamada “imaginação controlada”.

Possivelmente o exemplo mais evidente do uso da conjectura em uma investigação histórica tenha sido o trabalho de Natalie Zemon Davis (1987) sobre a trajetória de Martin Guerre (o verdadeiro e o impostor). Trabalho fundamentado em relatos baseados no processo original perdido e em documentação notarial, a autora por muitas vezes deparou-se com situações onde os sujeitos pesquisados não foram localizados nas fontes:

Quando não consegui encontrar meu homem (ou minha mulher) em Hendaye, Sajas, Artigat ou Burgos, fiz o máximo para descobrir, através de outras fontes da época e do local, o mundo que devem ter visto, as reações que podem ter tido. O que ofereço ao leitor é, em

parte, uma invenção minha, mas uma invenção construída pela atenta escuta das vozes do passado (DAVIS, 1987, p. 21, grifos

nossos).

Declaração que causou polêmica no meio historiográfico, motivando a redação de outro ensaio de Ginzburg (1989a). Novamente o excepcional-normal foi frisado, ao afirmar que a excepcionalidade do caso de Martin Guerre aclarou aspectos da normalidade documentalmente imprecisos. A respeito do termo “invenção”, Ginzburg (1989a, p. 183) esclareceu que:

A investigação (e a narração) de N. Davis não se baseia na contraposição entre “verdadeiro” e “inventado”, mas na integração, sempre assinalada pontualmente, de “realidades” e “possibilidades”. Daí vem, no seu livro, a proliferação de expressões como “talvez”, “tiveram de”, “pode-se presumir”, “certamente” (que em linguagem histórica costumam significar “muito provavelmente”) e assim por diante. [...] “Verdadeiro” e “verossímil”, “provas” e “possibilidades” entrelaçam-se, continuando embora rigorosamente distintas.

Logo, a valorização da narrativa e a utilização da conjectura na historiografia não implicam em renúncia ao real (GINZBURG, 1989a).

Para Serna e Pons (2012), uma posição equidistante entre as concepções de microanálise de Grendi e Ginzburg pode ser representada em Levi (1992). Este traçou, a partir da experiência do que passou a se chamar micro-história, as

principais concepções de tal prática. Sua base é a redução da escala de observação, a qual considera que “fatos insignificantes e casos individuais podem servir para revelar um fenômeno mais geral” (LEVI, 1992, p. 158). O autor ainda destaca “o debate sobre a racionalidade, a pequena indicação como paradigma científico, o papel do particular (não, entretanto, em oposição ao social), a atenção à capacidade receptiva e à narrativa, uma definição específica de contexto e a rejeição do relativismo” (LEVI, 1992, p. 159).

A perspectiva microanalítica, apontam Serna e Pons (2012), por ter sido desenvolvida anteriormente em outras disciplinas, ultrapassou as fronteiras da micro-história italiana e pode ser vista atualmente em diversas obras que não se intitulam com tal etiqueta. Um exemplo está no retorno da biografia às discussões historiográficas, fenômeno apontado por Levi (1998).

Os estudos de trajetórias individuais também passaram a ser utilizados em estudos relativos à população e família, originalmente concebidos em bases quantitativas e seriais (SCOTT; SCOTT, 2013).

Condizente com a proposta de análise desta investigação, passemos de uma noção de “o nome e o como” para uma noção de “o nome além do como”. Em outras palavras, o nome, retomando o alerta de Weimer (2013), deve ser pensado além de uma mera ferramenta identificadora de indivíduos, evitando cair no erro de muitos micro-historiadores que desprezaram o papel simbólico dos nomes e as questões classificatórias e de significação envolvidas:

Os nomes não são apenas rastros a serem perseguidos. Eles não são neutros: traduzem relações de poder e hierarquias. Expressam formas de classificação social e disposições identitárias individuais, familiares ou grupais frente aos demais. Os nomes trazem impressos em si tradições, memórias e experiências vividas. Evidenciam formas de relacionar-se com o passado. A ele rendem homenagem e também projetam o que se espera do devir (WEIMER, 2013, f. 329- 330).

A partir da redução de escala e análise qualitativa de trajetórias individuais, pode-se problematizar a questão da dinâmica dos nomes. Bourdieu (1998), ao questionar a coerência e linearidade de uma vida (a “ilusão biográfica”), afirma que os nomes, “designadores rígidos”, são a forma mais evidente de identidade constante e durável. Constância e durabilidade passíveis de relativização, pois, de acordo com Weimer (2013), os nomes não são estanques: existe a possibilidade de

invenção, recriação ou modificação, sendo maleáveis de acordo com a interação entre os membros de uma comunidade.

Maleabilidade que implica em uma nova visão do conceito estruturalista clássico das funções do nome formulado por Lévi-Strauss (2012): identificar, significar e classificar. Para tal, propomos um diálogo com Sahlins (1990), sobre as relações entre história e estrutura.

Conforme Sahlins (1990, p. 7), a oposição, convencionada por parte das ciências humanas, entre as noções de “estrutura” – as relações simbólicas de âmbito cultural – e de “história” – a ação histórica em si – não se justifica. A cultura é reproduzida na ação histórica na medida em que “as pessoas organizam seus projetos e dão sentido aos objetos partindo das compreensões preexistentes da ordem cultural”. Ao mesmo tempo, a ação histórica modifica a cultura, pois “como as circunstâncias contingentes da ação não se conformam necessariamente aos significados que lhes são atribuídos por grupos específicos, sabe-se que os homens criativamente repensam seus esquemas convencionais”.

Nesse processo de interação entre a ordem constituída e a vivenciada, entre o prescritivo e o performático, entre as circunstâncias e a contingência, entre a repetição e a reinvenção, os significados culturais são postos em risco na ação. Dessa maneira:

A cultura é uma aposta feita com a natureza, durante a qual voluntária ou involuntariamente [...] os nomes antigos, que estão na boca de todos, adquirem novas conotações, muito distantes de seus sentidos originais. Esse é um dos processos históricos que chamarei de “a reavaliação funcional de categorias” (SAHLINS, 1990, p. 9-10).

O sentido de um signo, para Sahlins (1990), só é completo numa sociedade se considerarmos todos os seus possíveis significados. O uso sempre será apenas de uma parte do sentido. Significados que levam em consideração as diferenças de contexto, de experiência social e de interesses pessoais, chegando-se a conclusões diferentes.

Dessa forma, nunca houve garantia de que os sujeitos históricos fizessem uso das categorias existentes exatamente segundo as regras prescritas. No processo de reprodução de categorias tradicionais, esta não se dá de forma igual, pois as categorias são passíveis de reinterpretação e reavaliação. Consequentemente, o processo gera as mudanças na estrutura (SAHLINS, 1990).

Logo, conforme Sahlins (1990, p. 185), a ação acarreta no risco das categorias em referência:

As pessoas colocam, na ação, seus conceitos e categorias em relações ostensivas com o mundo. Esses usos referenciais põem em jogo outras determinações dos signos, além de seus significados recebidos, ou seja, o mundo real e as pessoas envolvidas.

A significância, assim, não deve ser dissociada da referência concreta que a coloca em risco.

Transpondo esta reflexão para o referencial teórico desta pesquisa, pensemos no nome como um signo dinâmico, com maior ou menor mutabilidade dependendo do contexto, cujos processos de identificação, significação e classificação também são dinâmicos. Em outras palavras, a utilização de um nome implica na consequente utilização das funções apontadas por Lévi-Strauss (2012). Contudo, tais processos não são apropriados da mesma maneira pelos diferentes sujeitos históricos, devido às diferenças de contexto, experiência e interesses. Com isso, os nomes podiam, dentro dos limites socialmente estabelecidos, ter seus significados reinterpretados e reavaliados, levando-se a alterações na estrutura.

Seguindo essa linha de raciocínio é que se apresenta a proposta de trabalhar com a dinâmica dos nomes, visível apenas com a redução de escala e análise qualitativa de trajetórias individuais. Para este exercício metodológico, propomos a análise de uma família que não pertencia aos estratos sociais mais privilegiados da sociedade porto-alegrense, entre o final do século XVIII e o início do século XIX.

A reconstituição de trajetórias é uma prática relativamente difundida em investigações que estejam centradas em famílias de elite179. No caso destas, via de regra, a documentação existente é mais abundante e possibilita maior acesso a dados. Quanto a famílias de setores subalternos, excetuando-se o caso de famílias de escravos, ainda é um campo pouco desbravado pelos historiadores180. Documentação mais reduzida, somado a uma mais evidente dificuldade de identificação devido a dados menos completos em registros, à maior variação de

179 Um exemplo de pesquisa nesse campo é a dissertação de Marques (2012).

180 Importante mencionar, para este campo, as investigações, centradas em sujeitos libertos, realizadas por Weimer (2008; 2013). A historiografia conta também com estudos como o da trajetória de Manoel Congo em busca da liberdade, analisada por Oliveira (2006). Outros estudos foram realizados por João José Reis (2008), Antônio Cândido de Mello e Souza (2002), João José Reis, Flávio Gomes e Marcus J. M. Carvalho (2010). Também sobre trajetórias familiares negras, ver Valéria Gomes Costa (2013) e Adriana Dantas Reis Alves (2010).

nomes entre um ato e outro ou mesmo a nomes de família mais irregulares ou inexistentes, especialmente em se tratando de mulheres, podem ser alguns dos fatores que convidam os pesquisadores a dissuadirem de tal empreitada.

Para tal, retomemos o princípio do excepcional-normal de Grendi (apud SERNA; PONS, 2012) e Ginzburg e Poni (1989). Embora registros paroquiais possam, à primeira vista, parecer documentos “normais”, lembremos que Levi (2015) afirma que os documentos ditos normais o são apenas aparentemente. Portanto, a rigor, todo documento pode ser excepcional. O que torna uma fonte normal ou excepcional é a forma como a mesma é lida; o excepcional está nas entrelinhas.

Como a fonte paroquial engloba toda a população, podem ser encontrados, mediante cruzamento dos registros, casos excepcionais cujos dados permitam razoável identificação dos indivíduos ou cujos indícios possibilitem conjecturas com certo nível de segurança, bem como possibilitem o cruzamento com outros documentos. A reconstituição dessa trajetória e as considerações a seu respeito são o que propomos apresentar a seguir.

4.2 Dinâmica dos nomes: estudo de uma trajetória familiar (Ângela Francisca