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1.3 Delimitando o objeto de pesquisa

1.3.1 De quem estamos falando?

A pobreza antes era considerada obra de injustiça. O mundo moderno considera a pobreza incapacidade.

Eduardo Galeano

Pessoas que passam a habitar as ruas como único espaço possível de sobrevivência, usá-la como local sem o qual a vida não seria possível, é algo concomitante com o próprio processo de urbanização, do surgimento das cidades. Contudo, historicamente, tanto as características dese tipo social como sua presença quantitativa nos centros urbanos mudou drasticamente, de maneira que não é mais possível negligenciar que as pessoas em situação de rua têm um lugar específico e demandam um olhar próprio sobre sua condição, sem ser possível ignorá-los (Bursztyn, 2003).

A imagem da pessoa em situação de rua tem especificidades próprias de cada período histórico em que se manifesta, a partir de suas especificidades culturais, econômicas, políticas e sociais. Há uma mutação das representações, desde a percepção corrente na Idade Média de que esta vida é assim por “decisão divina” até a não distinção entre o animal e o humano que revira o lixo em busca de alimento, contemporaneamente retratado por Manuel Bandeira em

seu poema “O Bicho”. Dessa maneira, as muitas formas e significações sociais que os indivíduos em situação de rua foram representados – da pobreza Cristã, pecadores, aqueles que fracassaram na vida, marginais e invisíveis – guardam um ponto em comum:

Nota-se um jogo sutil e ambíguo presente na inscrição social desses sujeitos estabelecida ao longo do tempo, que é refletida como oposição aos significados socialmente valorizados pelos outros grupos, e alterada processualmente, de modo a mantê-los sempre posicionados em uma localização fronteiriça, que permite aos demais manter o controle da situação. (Souza, 2012).

Assim, estamos falando de um tipo/grupo social que, por mais diversas que tenham sido suas representações sociais, esteve fadado a ser definido a partir das características opostas aos significados socialmente valorizados nas diversas sociedades ao longo da história. Além disso, é inserido e representado socialmente através do estigma (Goffman, 2008), associando-o à pobreza espiritual e/ou material, marginalidade, incapacidade, carência e outros termos que o coloca nessa situação limite oposta ao “ser humano pleno”, pois o que é posto em questão para classificá-lo é sempre suas ausências em relação aos outros, em qualquer momento no espaço e no tempo.

Contudo, temos especificidades próprias de nossa conjuntura histórica e social, de forma que a imagem do tipo social do morador de rua “não corresponde mais à figura do andarilho ou do mendigo tradicional que pede esmolas” (Vieira; Bezerra; Rosa, 2004. p.11). O que chamamos hoje de população em situação de rua se origina concomitantemente com o processo de industrialização, sendo consequência das necessidades de adequações estruturais para que fosse efetivado o projeto capitalista. Decorrente da Revolução Industrial e Tecnológica, no final do século XVIII e início do século XIX, na qual houve redução da oferta de emprego no âmbito rural e o consequente êxodo em busca de emprego para os grandes centros urbanos, na ânsia de empregar-se em suas novas fábricas, que significavam a possibilidade de ter condições de vida. De fato, esse contexto apontava para a possibilidade de ascensão econômica, e ela existia para aquelas que se mantinham nos empregos, mas como resultado também houve o agravamento da condição de miséria.

Nesse contexto, muitos foram aqueles que não puderam ser assimilados pela indústria recente, não apenas por serem muitos, mas por essa relação entre empregados e desempregados ser mediada pelo medo de que os que estão às portas das fábricas são “ávidos por tomar seus empregos, dispostas a receber menos por eles”, fomentando o exército industrial de reserva analisado por Karl Marx (2008). Esse processo produziu estratificações

sociais entre os trabalhadores e pessoas aptas para o trabalho e ainda uma parcela de pessoas não integradas aos trabalhos fabris e sem a possibilidade de retornarem a suas casas no mundo rural, que passaram a constituir moradia nos becos, ruas e praças, alimentar-se mal, o que os impossibilitou de se qualificarem para o trabalho… ficando assim à margem, simbólica e material, da sociedade. Em O Capital (2008), Marx indica que a produção desses tipos sociais não é algo fora de ordem ou um resultado inesperado, mas são pensados como parte constitutiva da dinâmica de produção e reprodução da lógica político-econômica que se adotaria a partir dali no ocidente capitalista, apontando o pauperismo como centro dessa dinâmica.

O lupemproletariado é um conceito fundamental para compreender a produção estrutural de tipos sociais representados socialmente e relacionados à pobreza e à miséria. Para Marx, o lupemproletariado é uma classe abaixo da classe dos trabalhadores, é a classe que sobrevive em condições extremamente precárias e, ainda, percebida em três níveis:

Finalmente, o mais profundo sedimento da superpopulação relativa habita a esfera do pauperismo. Abstraindo vagabundos, delinqüentes, prostitutas, em suma, essa camada social consiste em três categorias. Primeiro, os aptos para o trabalho. [...] Segundo, órfãos e crianças indigentes. […] Terceiro, degradados, maltrapilhos, incapacitados para o trabalho. São notadamente indivíduos que sucumbem devido a sua imobilidade, causada pela divisão do trabalho, aqueles que ultrapassam a idade normal de um trabalhador e finalmente as vítimas da indústria, cujo número cresce com a maquinaria perigosa, […]. O pauperismo constitui o asilo para inválidos do exército ativo de trabalhadores e o peso morto do exército industrial de reserva (MARX, 2008. p. 747).

Assim, “vagabundos”, “delinquentes”, “degradados”, “maltrapilhos” e “incapazes” são termos que já se colocam como definidores desses indivíduos que, independente de suas trajetórias e biografias, são identificados como sujeitos-problema e classificados como “fora do lugar certo”, que seria dentro de uma casa, com sua família e cumprindo suas atividades obrigatórias com o mundo do trabalho; são classificados, definidos moralmente e têm suas possibilidades de vida efetivamente relacionadas a essa estrutura econômica. Como na dinâmica entre pureza e perigo, apresentada por Mary Douglas, em que nosso sentido de ordenação/classificação opera numa dicotomia entre aquilo que é bom, por estar dentro do ordenamento, e aquilo que não é bom, por ser o caos que impõe a desordem e nos põe em risco. Fazendo-nos tomar o indivíduo em situação de rua como “fora do lugar”, não em seus termos em relação à compreensão, mas, antes disso, classificá-los como os que põem risco a todo o sistema “coerente”, sendo eles impuros e perigosos por sua “não adequação”.

Não podemos tomar a questão como dissociada de nosso sistema, como algo simplesmente desordenado e desconexo. Pois, com efeito, surge, desse contexto apontado anteriormente, a população em situação de rua como tipo social próprio de uma estrutura econômica, na qual é tanto causa necessária, como também resultado. Essa indissociável relação é presente até hoje nas sociedades ocidentais modernas, pois “as condições histórico- estruturais que originaram e reproduzem continuamente o fenômeno população em situação de rua nas sociedades capitalistas”, nos diz Maria Lúcia Lopez da Silva, “são as mesmas que deram origem ao capital e asseguraram sua acumulação” (Silva, 2009. p.101-102). Pois é a própria estruturação de nossas sociedades que produzem essas formas de vida. Assim, o “miserável” não o é por desejo ou falta de vontade de sair dessa condição, há uma produção estrutural de pobres, de miseráveis, de pessoas que só têm a rua como local possível de sobrevivência. Contudo, as pessoas que se encontram nessa condição têm consciência de que a situação que vivem não corresponde à sua vontade e, nem sempre, elas têm capacidade de transformá-la a partir de seus próprios esforços. Um trecho da fala de uma pessoa em situação de rua em Minas Gerais dá uma boa síntese dessa questão:

Somos ainda vítimas do atual sistema político, que, na cegueira do capital, tem produzido milhares de novos moradores de rua a cada ano, pois, à medida que as novas tecnologias substituem o trabalho feito por operários e/ou camponeses, surgem novos desempregados que, ao não conseguirem novo emprego, inevitavelmente, irão para a rua, onde ficarão vulneráveis à bebida, às intempéries do tempo e a outros traumas causados por essa situação (Direitos Do Morador De Rua. p.23).

Como já assinalei anteriormente, é justamente esse encontro que instiga as reflexões que tenho tido ao me debruçar sobre o tema: o contexto de saber-se capaz, digno e diferente do estigma associado a eles, e principalmente a partilha de que – ao menos para maioria de meus interlocutores e aqueles que figuram em outras pesquisas – não é único responsável por sua condição, além da certeza de que existe uma estrutura, “uma força maior”, que os levaram a tal ponto e que, estando nele, é muito difícil sair, como um ciclo vicioso ao qual se vê atado e impotente (Santos, 2015).

Apesar disso, o olhar sobre o histórico de estudos desenvolvidos sobre essa população tem dois momentos: o primeiro, e ainda presente, se dá pelas pesquisas que olham para os que estão na rua como problema social e/ou uma questão vinculada a uma dimensão estrutural –

de onde partem as análises –; e uma segunda forma de olhar que coloca em um segundo plano essa dimensão estrutural, se dissociando de pensar a partir da lógica binária do assistencialismo e criminalização, para pensar o que a experiência de habitar as ruas produz de “novo” sobre experimentar o mundo. Comento em brevíssima revisão essas dimensões nas linhas que se seguem.