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O DEBATE EM TORNO DA DEMOCRACIA DIGITAL

PARTE I – FUNDAMENTOS ONTOLÓGICOS

6. O DEBATE EM TORNO DA DEMOCRACIA DIGITAL

O campo mais amplo dos estudos sociais da tecnologia, incluindo a Filosofia da Tecnologia, é marcado por um espectro variado de posições sobre o papel da técnica e da tecnologia na vida em sociedade, desde autores portadores de narrativas distópicas em

relação às possibilidades e benefícios da tecnologia, como Jacques Ellul (1964) e Martin Heidegger (1977), até autores com uma perspectiva bastante otimista, triunfalista em alguns casos, sobre os ganhos e potenciais da tecnologia para o progresso da ciência e a melhoria do bem-estar dos indivíduos. Manuel Castells (1999) e Pierre Levy (2001) são comumente citados como representantes dessa última categoria de autores.

Ao longo da história, poucas tecnologias proporcionaram revolução tão significativa sobre o modo como nos comunicamos, nos informamos, compramos, fazemos guerras e nos divertimos como as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), desde o telégrafo, passando pelo rádio, a televisão e o telefone, até chegarmos às novas TICs como a comunicação móvel e a Internet. O surgimento e a disseminação dessas novas tecnologias suscitaram inúmeros debates sobre os potenciais e os limites do aperfeiçoamento de práticas democráticas através da telefonia móvel e da Internet. A possibilidade da comunicação instantânea através de grandes distâncias reviveu o sonho de uma democracia direta, com a participação dos cidadãos na deliberação e decisão políticas.

A despeito da grande expectativa sobre o potencial democratizante da Internet, alguns autores preferem uma posição mais cautelosa e crítica sobre as possibilidades dessa tecnologia, considerando que a Internet tem um “potencial vulnerável” de revitalizar os atuais arranjos de comunicação política, injetando novos e diferentes elementos no relacionamento entre representantes e representados, governantes e governados, sendo este potencial, contudo, submetido a um permanente risco de ser desperdiçado sem intervenções políticas criativas desenhadas para moldar e nutrir as oportunidades democráticas fornecidas pela Internet. Em geral, os proponentes dessa perspectiva rejeitam a noção de que a tecnologia é não-social, consistindo em artefatos neutros com capacidades inatas de afetar uma organização social (COLEMAN; BLUMLER, 2009).

Dentre os potenciais democratizantes da Internet, Stephen Coleman e Jay Blumler destacam o fato de ser constituída predominantemente de usuários ativos, a possibilidade de envolver um grande número de usuários numa troca mais ampla de experiências e opiniões sobre algum assunto, o acesso relativamente barato a grandes repositórios de dados, o que pode ajudar a reduzir a influência do status social no envolvimento político. Com a Internet, cidadãos e grupos com poucos recursos podem empreender ações de comunicação e monitoramento que previamente eram o domínio de organizações e

indivíduos que possuíam recursos suficientes para tanto. Ainda de acordo com Coleman e Blumler, citando Schultz (2000), “a Internet facilita a troca interativa lateral, peer-to-peer, de muitos-para-muitos, permitindo uma maior simetria do poder comunicativo em relação aos fluxos de comunicação unidirecionais da imprensa e do broadcasting” (COLEMAN; BLUMLER, 2009, p. 12).

A aposta está em que as oportunidades únicas criadas pelas tecnologias de comunicação interativa como a Internet possam viabilizar uma representação política e uma governança mais responsiva. Contudo, o sucesso da interatividade e a possibilidade de uma representação mais responsiva não dependem apenas das operações técnicas da Internet, mas de medidas capazes de melhorar a eficácia política. A pergunta-chave para se avaliar projetos e iniciativas de democracia digital (e-democracy) é se existem evidências de que os cidadãos se sentem mais influentes em relação às decisões que governam suas vidas (COLEMAN; BLUMLER, 2009). A designação “democracia digital” refere-se a qualquer forma de emprego de dispositivos (computadores, celulares, smart phones,

tablets, etc.), aplicativos (softwares) e ferramentas (fóruns, sítios eletrônicos, redes sociais,

mídias sociais, etc.) de tecnologias digitais de comunicação para suplementar, reforçar ou corrigir aspectos das práticas políticas e sociais do Estado e dos cidadãos, em benefício do teor democrático da comunidade política (MAIA; GOMES; MARQUES, 2011).

Para Maia, Gomes e Marques (2011), as iniciativas de democracia digitais democraticamente relevantes seriam aquelas voltadas para um dos seguintes propósitos:

(1) Fortalecimento da capacidade concorrencial da cidadania. Um projeto de democracia digital deve ajudar a promover o aumento e/ou consolidar quotas relevantes do poder do cidadão, em face de outras instâncias concorrentes de disputa pela produção da decisão política no Estado ou na esfera social, a saber, em face das agências políticas (partidos, governo, corporações, etc.) e de outros atores com interesses políticos. Este propósito pode ser dividido em dois objetivos:

a. Aumentar a transparência do Estado e as formas de responsabilização dos agentes políticos (argumento contra o patrimonialismo),

b. Participação e influência civis. Tem alto teor democrático iniciativas digitais destinadas a facilitar o estabelecimento de níveis importantes de influência, exercida pelos cidadãos, sobre a decisão política no interior do Estado, sobre mecanismos e processos por meio dos quais a decisão é tomada, sobre os agentes portadores da função de tomar decisão pública, bem como sobre a implementação dessa decisão em normas, políticas e formas equivalentes.

(2) Consolidar e reforçar uma sociedade de direitos, isto é, uma comunidade política organizada como Estado de Direito (argumento por direitos e liberdades). Neste caso, é preciso assegurar que minorias políticas e grupos e setores mais vulneráveis do corpo social tenham preservado os seus direitos, acesso à justiça e proteção jurídica.

(3) Promover o aumento da diversidade de agentes, de agências e de agendas na esfera pública e nas instâncias de decisão política e aumentar instrumentos, meios e oportunidades para que minorias políticas se representem e sejam representadas na esfera pública e nas instâncias de produção da decisão política (argumento pelo pluralismo e pelo aumento da capacidade concorrencial das minorias).

Há, contudo, um custo para se participar da vida política de uma comunidade. Os custos da participação, em determinados contextos sociais e momentos históricos, podem se revelar significativos em termos de recursos materiais, políticos e cognitivos necessários a uma efetiva participação. É razoável concluir que os cidadãos somente farão uso das instituições participativas disponíveis se os benefícios superarem os custos da participação, sendo as iniciativas digitais, neste caso, vistas como uma oportunidade adequada para atingir fins desejáveis. Não é o caso de supor, todavia, um sujeito completamente racional que realiza um julgamento impecável acerca dos ganhos de sua participação, mas, ao contrário, pessoas visitadas por valores e interesses que condicionam e possibilitam sua decisão de participar. As razões para participar não precisam ser racionais.