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Debates e embates na Geografia Agrária Brasileira

1. CAMPONESES

1.2. Debates e embates na Geografia Agrária Brasileira

Após essa reflexão acerca das questões conceituais mais amplas que envolvem o campesinato, julgamos conveniente apontar, em linhas gerais, como a Geografia Agrária se inscreve nesse debate.

Porém, ao fazê-lo, somos impelidos à retomada dos pressupostos filosóficos que têm norteado esse campo do conhecimento geográfico, o que nos remete a uma breve explanação dos fundamentos próprios do conhecimento geográfico e dos embates travados no interior dessa ciência.

Ao nos remetermos à História do Pensamento Geográfico, é necessário situar a sua origem a partir de um enfrentamento de cunho geopolítico travado no século XIX por duas nações emergentes, a França e a Alemanha.

O embate supostamente fundamental da ciência geográfica nascente, qual seja, os pressupostos deterministas, de um lado, e os possibilistas, de outro, reforçou a idéia de que essa ciência se constituiu, exclusivamente, sob o signo do positivismo, como se estivesse circunscrita às evidências empírico- descritivas da paisagem.

Entretanto, essa idéia revela-se mais uma simplificação que, entre tantas outras, visa a ocultar a pluralidade filosófica existente no interior do processo de constituição do pensamento geográfico.

Segundo Oliveira (1994, p. 25-26), no século XIX, momento em que se registra a gênese da Geografia Moderna, houve importante debate travado no interior das Ciências Humanas entre materialismo e idealismo, debate este que provocou na Geografia uma fissura teórico-metodológica, face à incorporação de fundamentos filosóficos tão opostos como o são o positivismo, o historicismo e a dialética.

Com o ocultamento dessas diferenças estruturais presentes nos alicerces da Geografia, em essência, dificultou-se a propagação dos fundamentos filosóficos do materialismo e da dialética, somente retomados décadas depois.

Isso de certo modo revela a falácia do ideário da liberdade, igualdade e fraternidade empunhado pela burguesia, desde o princípio ocupada em implantar o consenso, inclusive dentro da ciência. Essa é a razão pela qual os estudiosos de orientação materialista e suas respectivas obras foram ignorados, dificultando a consolidação dessa matriz filosófica. Assim, não é por acaso que a produção geográfica está impregnada das premissas do positivismo, entre as quais Oliveira (1994) destaca:

- a sociedade seria regida por leis naturais, sobre as quais não se tem controle, o que implicitamente sugere não ser a mesma dotada de capacidade de interferir nos rumos dos processos sociais;

- supondo-se legítima a naturalização da sociedade, a utilização dos procedimentos e métodos empregados para a interpretação dos fenômenos da natureza não comprometeria o entendimento dos fenômenos sociais, daí ser desnecessário métodos próprios;

- os cientistas deveriam limitar-se a atuar de forma objetiva e neutra, o que implica em ignorar os condicionantes sociopolíticos decorrentes de sua inserção em uma sociedade de classes, logo, com interesses divergentes.

Não custa lembrar que embora o positivismo tenha surgido como utopia crítico-revolucionária da burguesia antiabsolutista tornou-se ainda no século XIX, uma ideologia conservadora identificada com a ordem industrial/burguesa estabelecida. Este postulado de neutralidade valorativa das ciências humanas conduziu, inevitavelmente, à negação, ou, a que os seguidores ignorassem o condicionamento histórico-social do conhecimento. Por outro lado, reforçou sua base doutrinária na objetividade/neutralidade científico-social. (OLIVEIRA, 1994, p. 26).

Portanto, essas questões explicam as razões pelas quais ganhou visibilidade a Geografia assentada em bases positivistas, ocasionando a depreciação ou banimento de importantes estudiosos e suas respectivas obras, como é o caso de Reclus e Kropotkin.

Desse legado não se libertou completamente a ciência geográfica do século XX, em particular a Geografia Brasileira, pois a posição do Brasil no contexto do desenvolvimento capitalista gerou um campo fértil para o conhecimento utilitário, sendo o planejamento um instrumento privilegiado de apropriação dos recursos e gestão do território.

Nessa conjuntura, importante parcela da produção geográfica se fez a partir dos interesses oficiais de planejamento; dito de outra forma, parte importante da produção geográfica esteve atrelada às conveniências da acumulação capitalista, portanto, em desacordo com as principais demandas socioambientais.

Considerando que esse momento coincide com a implantação de vários Departamentos e Cursos de Geografia, instala-se um falso debate entre a corrente denominada Geografia Tradicional e a corrente denominada Nova Geografia, já que, em essência, ambas se mantêm presas às mesmas concepções de mundo. A primeira, no que refere-se ao positivismo, por estar baseada no empirismo e na descrição, e a segunda, por estar vinculada ao neopositivismo,

destacando-se pela abordagem lógico-quantitativista dos fenômenos geográficos. Segundo Fernandes (1998, p. 94)

[...] a “Geografia Tradicional” [...] a partir do trabalho empírico- descritivo estudava a paisagem, “ignorando” a realidade. Com base nas observações e em pressupostos historicistas chegavam a conclusões positivas. Presos a uma concepção idealista, privilegiavam o objeto, simbolizando-o através de estudos de diferentes lugares, organizando as partes que comporiam o todo. A Nova Geografia, [por sua vez], tem como fundamentação filosófica o neopositivismo, analisando uma realidade construída a partir de pressupostos lógicos dos modelos matemático-estatísticos. Presa a uma concepção ideal, previamente estruturada da realidade objetiva, privilegia o método e sacrifica o objeto na sua essência,

descaracterizando a realidade.14

Essa última encontrou terreno fértil não só em várias universidades públicas, mas nos próprios órgãos de fomento de pesquisa, nos quais seus representantes puderam interferir nos rumos da produção geográfica brasileira, ao direcionar grande parte dos recursos aos projetos afinados a tais pressupostos.

Do ponto de vista da Geografia Agrária, essa vertente manifesta-se em trabalhos marcados por uma abordagem preocupada com a aplicabilidade de sistemas e modelos matemático-estatísticos, que não comportam as relações envolvidas nos processos produtivos.

Nessa concepção, a priori, a realidade agrária é vista a partir de uma tipologia, em que as relações sociais não são consideradas. O que importa é a classificação de áreas através de tipogramas. Os processos de transformação da agricultura são descritos em uma visão técnico-linear. (FERNANDES, 1998, p. 103).

Não por acaso, uma das melhores expressões dessa produção geográfica sacrifica, desde o título, o Agrário em favor do Agrícola15, o que nos

remete a Valverde (1964), que décadas atrás já vislumbrara as limitações dessa denominação

Êste têrmo (sic) é, portanto, mais restrito; rigorosamente, a expressão Geografia Agrícola deveria englobar apenas o estudo da distribuição dos produtos cultivados e de suas condições de meio, sem envolver aspectos sociais, como regime de propriedade, relações

de produção [...].

Esses apontamentos já sugerem que nem todos se renderam aos apelos da ciência hermética, produzida a partir de bases materiais privilegiadas

14Grifo do Autor. 15 Cf. Diniz, 1984.

que, nos períodos de redefinição efetiva das estratégias de acumulação, foram ainda mais explícitas.

Assim, toma vulto uma produção intelectual que não se presta aos desígnios estritos da acumulação capitalista, culminando em profundos embates no interior da academia. Contudo, foram eles que tornaram a geografia brasileira mais rica, mais próxima dos desafios de seu tempo.

No interior da Geografia Agrária, esse movimento adquire visibilidade com trabalhos como os de Manuel Correia de Andrade e do próprio Orlando Valverde. Adentram, pois, a trilha dos embates inicialmente travados na academia francesa, quando importantes geógrafos, entre os quais Yves Lacoste, Jean Tricart, Pierre George etc, empreendem memorável esforço no sentido de recuperar a dialética como fundamento de sua produção científica.

No entanto, não foram poucas as dificuldades com as quais se debateram esses geógrafos para se livrarem da influência idealista, produto do estágio da produção científica de seu tempo. Ao destacar a importância da obra “Geografia Agrária do Brasil”, Oliveira remete-nos a essa perspectiva:

Valverde vivia, quando escreveu esse livro, a contradição intelectual daquela época, entre uma visão historicista da Geografia enquanto ciência, e a sua firme posição política de compromisso com a

transformação da sociedade. (OLIVEIRA , 1994, p. 27).

Assim, devemos considerar que esses trabalhos derivam de um contexto em que o próprio sentido dos estudos geográficos era outro, visto que o país se encontrava em uma transição entre o agrícola e o industrial, entre o urbano e o rural.

Enquanto se manteve sob a hegemonia da economia agroexportadora, o campo constituiu-se na principal temática dos estudos geográficos. Esses estudos, conforme já foi salientado, moldaram-se a partir de análises centradas na distribuição geográfica da produção agrícola e sua significação econômica.

Todavia, o fato de estarem calcados nos fundamentos do historicismo clássico, de viés idealista, não os torna menos importantes, pela sua contribuição fundamental para a consolidação da geografia brasileira. Diríamos que representam as bases de implantação de uma “escola geográfica” no país.

A presença de inúmeros geógrafos europeus, sobretudo franceses, na formação dos jovens geógrafos impôs-lhes uma desafiadora tarefa: construir uma geografia agrária brasileira. Com isso, foi necessário romper com alguns tabus

inerentes à visão eurocêntrica dos trópicos, empreitada vitoriosa, de certo modo em virtude da troca de experiências oportunizada pela radicação temporária de alguns deles no Brasil.

Dessa fase da Geografia Agrária brasileira saem os discípulos que se tornarão os mestres da fase posterior. A Geografia Agrária derivada dos fundamentos filosóficos do materialismo dialético. Ao incorporarem em suas análises os processos histórico-sociais relacionados ao campo, geógrafos como Orlando Valverde e Manuel Correia de Andrade revelaram já estar sob a influência da dialética. Com isso, colocaram-se à frente de seus contemporâneos, tornando-se referência nos embates posteriores que culminaram no fortalecimento do chamado movimento da Geografia Crítica.

Considerando a seqüência linear da Geografia Agrária, esses geógrafos farão escola, contribuindo com a formação das principais vozes destoantes do período de domínio da Geografia Quantitativa.

Aos sucessivos golpes no prestígio do paradigma pragmático, somar-se-á, no início dos anos setenta, a produção de cunho materialista dialético, destacando-se Ariovaldo Umbelino de Oliveira, cuja tese de Doutorado inaugura dentro da Geografia Agrária a incorporação meticulosa dos conceitos básicos dessa matriz filosófica.

Portanto, esse é o momento em que as questões subjacentes aos pressupostos teórico-metodológicos da Geografia Quantitativa não conseguem mais se impor sob o signo do rigor matemático-estatístico.

Reunidos em torno de concepções filosóficas e políticas comuns, convictos de que o paradigma idealista dominante não investira a Geografia de um instrumental teórico-metodológico adequado à análise e interpretação geográfica dos processos e fenômenos de seu tempo, parte dos Geógrafos se insubordinam.

Toda essa pulsação culmina nos acalorados debates do final dos anos setenta, sendo que, no Encontro Nacional de Geógrafos de 1978, as profundas fissuras teórico-metodológicas tornam-se explícitas.

Esse processo de renovação se alimentará, no campo da Geografia Agrária, de importantes obras de Oliveira, centradas na concepção de que no campo o desenvolvimento contraditório do capitalismo se manifesta na territorialização do capital, de um lado, e na monopolização do território pelo capital, de outro.

ímpar ao paradigma da modernização do campo que, renascida sob as bases filosóficas da Geografia Quantitativa, privilegiará as condicionantes técnicas da produção agrícola.

Em suma, na atualidade, velhos embates manifestam-se em novos debates dentro da Geografia Agrária. Isso porque as distintas matrizes filosóficas se materializam em novas escolas, cujo arcabouço conceitual acena para as profundas diferenças existentes.

Do ponto de vista da proposição desse trabalho, destacamos a oposição que consideramos fundamental: agricultores familiares ou camponeses?

Conforme destacamos anteriormente, a terminologia agricultor familiar constrói-se em substituição ao conceito de camponês. Sua utilização implica no entendimento de que o progresso técnico é o elemento fundante dos processos em desenvolvimento no campo. É por isso que o mesmo é refratário ao conteúdo de classe, sendo, em suma, o desdobramento ulterior de um princípio basilar do positivismo, o conservadorismo.

Entendemos que isso revela uma rejeição a Marx, que identificou na tríade capitalistas, proletários e proprietários de terra, os fundamentos para o entendimento das relações de produção dentro do capitalismo. Excluindo-se a classe, diluem-se os sujeitos e nega-se a contradição que, a rigor, torna os homens e mulheres instrumentos passivos do capital, essa abstração que encobre as relações sociais subjacentes e, por conseguinte, os projetos políticos que privilegiam uns e excluem outros.

Por tudo isso, cremos ter explicitado a pertinência de recorrermos ao conceito de camponês para analisarmos essa classe sui generis que, contraditoriamente, se reproduz no campo. Como um elemento de dentro do capitalismo, esses sujeitos seguem, incorporando técnicas, produzindo mercadorias, sem contudo tornarem-se capitalistas face o controle dos meios de produção; sem tornarem-se proletários, ainda que o trabalho familiar seja o fundamento de sua reprodução.

CAPÍTULO 2

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