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Declínio linguístico e estagnação intelectual

CAPÍTULO I: OS ÁRABES E SUA LÍNGUA: UMA BREVE HISTÓRIA

3. Declínio linguístico e estagnação intelectual

É impossível estabelecer uma data precisa ou fatos determinantes que tenham levado ao declínio da língua e cultura árabe; contudo, pequenas demonstrações de decadência podem ser vistos em diversos momentos históricos. É a soma de todos esses fatores que levou à derrocada (ainda que temporária) do império árabe-islâmico. Talvez, o fator preponderante tenha sido as divisões internas, pois, como é sabido, um reino dividido contra si mesmo não pode subsistir. Essas facções domésticas se intensificaram ainda no século X, mas as repercussões só foram sentidas a partir do século seguinte, quando os árabes deveriam estar unificados para enfrentar os inimigos comuns que avançavam em diferentes frentes. No século XI começaram as

48 “[Arabic dialects] have no prestige. Some people go so far as to suggest that they have ‘no grammar’

and are not worthy of serious study.”

49 O árabe cairota, a variedade urbana falada no Cairo (Egito), é a variedade mais conhecida de todos os

dialetos árabes, “e provavelmente o mais prestigiado entre eles” (cf. Op. cit, p. 07). Isso se deve ao fato de Cairo ser a “Hollywood” do mundo árabe. Centenas de filmes e músicas são oriundos deste centro cultural, disseminando, naturalmente, o léxico local. Além disso, educadores egípcios trabalham em todos os países de fala árabe, muitas vezes enviados pelo próprio governo egípcio em parceria com outros governos árabes.

Cruzadas com o intuito de expulsar os “sarracenos” (população árabe-muçulmana) que ocupavam a Terra Santa. No mesmo século, o movimento da Reconquista ganhou força e expressão na Espanha e recobrou o importante centro cultural de Toledo (1085), fazendo com que a língua árabe perdesse seu incontestável domínio. Ela continuava arraigada em solo espanhol, mas agora teria que dividir o espaço com a emergente língua espanhola.

No século XIII as invasões mongóis alcançaram a parte asiática do império islâmico. Em 1258 d.C. a cidade de Bagdá foi pilhada e totalmente devastada, pondo fim à capital abássida, e acabando com um dos pontos nevrálgicos da vida intelectual islâmica. O núcleo de atividade intelectual deslocou-se para outras regiões, notavelmente o Egito, que estava sob o domínio mameluco50, mas sem o ímpeto e originalidade de outrora.

A “deterioração linguística” chegou a tal ponto que Ibn-BaÐÐūta51, visitando a cidade de Ba½ra em 1327 d.C., o berço da codificação e estruturação linguística, relata que ouviu um pregador (que supostamente deveria ser profundo conhecedor da gramática e retórica) cometer graves erros gramaticais em sua prédica:

Eu participei das preces numa sexta-feira na mesquita, e quando o pregador se levantou para proferir seu sermão, ele cometeu muitos sérios erros gramaticais. Eu fiquei atônito com o fato e comentei isso com o qāÅī [juiz] que me respondeu: ‘Nessa cidade não existe mais ninguém que tenha qualquer noção de gramática.’ Eis aqui, realmente, uma admoestação para os homens ponderarem – magnificado seja Aquele que muda todas as coisas e subverte todos os assuntos humanos! Esta Ba½ra, em cujo povo o domínio da gramática alcançou seu apogeu, visto ser onde ela [a gramática] teve sua origem e desenvolvimento, e que foi a moradia do líder cuja preeminência é incontestada, não tem nenhum pregador que possa proferir um sermão sem quebrar as suas regras [gramaticais].52

50 O nome é derivado da palavra árabe para escravo. Sob o Sultanato Ayyūbī, generais mamelucos

usaram sua influência para estabelecer uma dinastia que governou o Egito e a Síria entre 1250 e 1517.

51 Navegador árabe nascido em Tangier (Marrocos atual) em 1304. O mais importante navegador árabe

medieval e autor de um dos mais famosos livros de viagens, Ri¬la (Viagens), que descreve suas extensivas viagens cobrindo mais de 120.000 quilômetros em excursões a quase todos os países muçulmanos e às regiões longínquas da China e Indonésia.

52 “I attended once the Friday prayers at the Mosque, and when the preacher rose to deliver his sermon,

he committed many serious grammatical errors. I was astonished at this and spoke of it to the qadi, who answered, ‘In this town there is not one left who knows anything about grammar.’ Here indeed is a warning for men to reflect on – Magnified be He who changes all things and overturns all human affairs! This Basra, in whose mastery of grammar reached its height, whence it had its origin, and

A degeneração linguística foi perpetuada e ganhou novas proporções com o advento do Império Turco (Otomano). Depois da queda de Constantinopla (1453) os turcos, que gradualmente haviam conquistado as províncias islâmicas da Ásia Central, Oriente Médio e Egito, fundaram o império Otomano, e se tornaram o maior poder político na região.

Figura 3: Mapa da expansão do império otomano53

where it developed, which was the home of its leader whose pre-eminence is undisputed, has no preacher who can deliver a sermon without breaking its rules.” (GIBB, 1963, p. 142).

53 O império Otomano foi o maior e mais duradouro estado muçulmano da modernidade, tendo existido

por mais de seis séculos até sua dissolução após a Primeira Guerra Mundial. No início do século XVI ganhou grande projeção de maneira que incluiu quase todo o mundo árabe, incorporando a Síria, Egito, Iraque e o Magreb (com exceção do Marrocos). O auge do império ocorreu durante o governo de Solimão, “O Magnífico” (1520-1556), um grande conquistador que expandiu o império e levou seus exércitos até a Áustria. A derrocada do império começou a partir do século XVIII, com um processo de fragmentação política e esfacelamento territorial. O século XIX encontrou um “Império Otomano” dividido, entre outros fatores, pela diversidade linguística, sistemas de escrita e religiões. Gradualmente, as regiões agregadas começaram a reivindicar autonomia e independência política.

A língua árabe continuou como a língua litúrgica desses povos, e em vários lugares, a língua de comunicação diária, mas seu status como linguagem da política e administração foi transferida para o turco. Os próprios árabes, na esperança de obterem um cargo público, estavam mais inclinados a aprenderem o turco do que se aprofundarem o conhecimento de sua própria língua. Chejne (1969, p. 84) advoga:

No decorrer de quase quatro séculos de domínio otomano, a escrita árabe tornou-se escassa e estéril e distintamente faltava-lhe a vitalidade e expressividade que tinham caracterizado a língua nos séculos anteriores.54

Tradicionalmente, os árabes chamam essa época de /ca½r al-in¬iÐāÐ/ “Era da decadência/declínio”. A¬mad Amīn, um proeminente intelectual egípcio, é citado por Allen e Richards (2006, p. 02) como descrevendo esse período da seguinte maneira:

As portas do mundo islâmico foram fechadas depois das Cruzadas. [...] Os muçulmanos simplesmente marcaram passo. Na esfera do saber, houve apenas o rearranjo de alguns livros sobre jurisprudência, gramática, e assuntos semelhantes; naquilo que se concerne à arte, não houve nenhuma criatividade e nada que se se assemelha à velha perfeição; [...] Tudo foi aniquilado pelo prolongado período de tirania. O conhecimento consistia em livros formais sobre religião para serem lidos, uma sentença para ser analisada [gramaticalmente], um texto para ser memorizado, [...] havia somente uma pequena representação das ciências seculares, algo para ser usado com o propósito de relembrar a herança do passado.55

A drástica queda na produção literária, entretanto, não implicou em sua completa paralisação. Uma das maravilhas da literatura árabe foi compilada nesse período, As mil e uma noites. Entretanto, muitas obras desse período apresentavam uma ênfase na forma em detrimento ao conteúdo; importantes e seminais obras também apareceram durante essa época, incluindo várias enciclopédias, sem as quais, o entendimento moderno de muitas disciplinas árabes medievais seria impossível. O

Fragmentado e enfraquecido, o império foi extinto e, em parte de seu território fundou-se a República da Turquia.

54 “In the course of almost four centuries of Ottoman rule, writing in Arabic was scarce and sterile and

distinctly lacked the vitality and expressiveness which had characterized the language centuries earlier.”

55 “The doors to the Islamic world were closed after the Crusades […] Muslims simply marked time. In

the realm of learning, there was just the rehashing of some books on jurisprudence, grammar, and the like; in crafts, there was no creativity and none of the old perfection […] It was all killed off by the prolonged period of tyranny. Knowledge consisted of a formal religious book to be read, a sentence to be parsed, a text to be memorised […] there was only a small representation of the secular sciences, something to be made use of solely in order to know the heritage of the past.”

pesquisador egípcio As-SuyūÐi56 (1445-1505) ilustra bem a abordagem dos escritores nesse período.

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