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Declínio do projeto político-jurídico do Estado-Moderno e a emergência da etnicidade

1. Transição do feudalismo para os Estados-Modernos

1.3. Declínio do projeto político-jurídico do Estado-Moderno e a emergência da etnicidade

Os alicerces formadores do Estado-Moderno e o Direito por ele criado durante o processo histórico não correspondem mais às transformações pelas quais a sociedade contemporânea vem passando. Os elementos caracterizadores e integrantes da noção de Estado foram criações fictícias sem respaldo com a organização sócio-cultural da população. O Direito representado pela estrutura monista, vinculado à ideologia liberal abstrata e elitista, não representa o processo multicultural da sociedade hodierna que envolve ações dentro e fora do plano jurídico.131 Ações diretamente vinculadas a uma atitude dialética tal como proposta por Lyra Filho sem, contudo, se distanciar de uma utopia concreta envolvendo tanto a atividade técnica do profissional do Direito como a ação política do cidadão-jurista.

130 LYRA FILHO, op. cit., 1996, p. 26.

131 ARRUDA JUNIOR, Edmundo Lima de. Direito moderno e mudança social: ensaios de sociologia jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 79.

Na compreensão de Ernst Bloch, a utopia cumpre três funções. Primeiramente, vincula-se ao protesto contra a situação presente. A recusa em aceitar o estabelecido propicia uma pressão na e a partir da realidade posta, aproveitando suas contrariedades em favor de sua reconfiguração em uma perspectiva de tensão dialética. A segunda função relaciona-se com uma sondagem das possibilidades ainda não realizadas pela sociedade, proporcionando a amplitude de horizonte do fenômeno jurídico, a partir da ligação entre o imaginário e o real. A terceira, consiste na exigência impaciente de realização imediata.132

A ação política e profissional do jurista-cidadão, via uma utopia concreta, se define como “uma construção por dentro da luta de classes, e das novas contradições por ela criadas, tais como a fragmentação cultural e dispersão política, possibilita pensar em uma nova artesania de uma cultura jurídica alternativa”.133

Pensar uma nova artesania jurídica significa refletir sobre os conceitos erigidos historicamente e tornados dogmas jurídicos. O princípio de soberania do Estado, enquanto condição epistemológica obrigatória da teoria jurídica moderna, necessita ser rediscutido, pois os conceitos de Estado e nação conectam-se diretamente aos processos econômicos, sociais, políticos e culturais de um determinado momento histórico.134

Há pouco tempo o panorama sócio-político, econômico e cultural identificava-se com os Estados-nação, sobretudo em seu poder para concretizar objetivos e implementar políticas públicas por meio de decisões soberanas. Para José Eduardo Faria, o momento atual, em plena globalização econômica, transformou o cenário de Estado-nação tornando-o independente, com atores, lógicas, racionalidades e procedimentos diferenciados e

132 BLOCH, Ernst. Derecho natural y dignidad humana. Trad. Felipe González Vicén. Madrid: Aguilar, 1980.

Ver ainda ARRUDA JUNIOR, op. cit., p. 79.

133 ARRUDA JUNIOR, op. cit., p. 80, 100.

intercruzados, não se limitando às fronteiras tradicionais, não mais distinguindo os países e até mesmo desafiando as identidades nacionais.135

O Direito Positivo enfrenta dificuldades cada vez maiores na edição de normas para as diferentes esferas da vida sócio-econômica. As regras normativas que possibilitavam uma operacionalização do sistema jurídico revelaram-se ineficazes diante dos conflitos coletivos de caráter pluridimensional enquadrados na estrutura unitária, unidimensional, centralizada e interindividual do Direito moderno proposto pelo Estado. Há uma enorme desterritorialização das relações sociais em virtude da multiplicação de exigências por Direitos supranacionais, relativizando o papel do Estado. Para Faria, as tradicionais normas abstratas, gerais e impessoais “têm sua efetividade crescentemente desafiada pelo aparecimento de regras espontaneamente geradas nos diferentes ramos e setores da economia”.136

Essas regras econômicas não são geradas espontaneamente, partem de uma manipulação consciente promovida pelas grandes coorporações internacionais, representadas pelo Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional, objetivando ampliar a sociedade capitalista de consumo avançado.

Para Edmundo Lima de Arruda Júnior, a inadequação do plano racional material da economia com a esfera racional formal dos operadores do Direito elucida, em parte, a crise de paradigma liberal do Direito. Essa racionalidade material neoliberal não prescinde da “artesania jurídica daquela racionalidade do liberalismo clássico, nem tampouco retira dos juristas as suas cotas de responsabilidade no projeto da razão técnico-instrumental de sentido opressivo”.137 Entendido desta forma, torna-se perfeitamente possível a utilização de argumentos liberais contra o neoliberalismo.

135 FARIA, op. cit., p. 16. 136 Ibid., p. 15.

Álvaro de Vita acredita em duas teses liberais fundamentais para o combate ao neoliberalismo. A primeira garante que o Estado deve proteger um conjunto de Direitos fundamentais dos cidadãos. A segunda estipula que o “Estado deve ser neutro no que se refere às concepções de boa vida, a que os cidadãos devotem lealdade e que se empenhem em realizar”.138

Mas, como o Estado pode proteger os Direitos de grupos minoritários139 como, por exemplo, os povos indígenas, se sequer os Direitos liberais, efetivamente, foram conquistados por eles? Se sequer se determinam política e economicamente?

Para Wolkmer, o projeto de modernidade legal estatal, pretendendo formar um Direito justo e igualitário, na realidade sempre exigiu uma universalidade dos Direitos humanos, uma defesa em torno do sujeito individual de Direito, uma divisão e equilíbrio dos poderes constituídos, um arranjo democrático por meio de um sistema representativo e uma plena libertação sócio-política do homem.140

A desagregação dos conceitos e princípios sustentadores do Estado-Moderno contribuíram para o declínio do monismo jurídico, abrindo espaço para o fenômeno do pluralismo jurídico. Por pluralismo jurídico se entende a variedade de práticas jurídicas “existentes num mesmo espaço sócio-político, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais”.141

138 VITA, Álvaro de. Justiça liberal: argumentos liberais contra o neoliberalismo. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1993, p. 12.

139 Compreende-se por grupos minoritários uma parcela reduzida de pessoas com caracteres sociais, políticos,

culturais e econômicos em comuns, porém em menor quantidade populacinal do que o grupo majoritário. Tome- se de exemplo os povos indígenas em relação aos brancos, os japoneses em relação aos brancos etc. Ao se considerar a "cor" como um critério de diferenciação não significa que os brancos não sejam um grupo social heterogêneo, o são, porém, majoritário.

140 WOLKMER, op. cit., 1997, p. 60-61. 141 Ibid., p. 195.

Wolkmer entende que existe a possibilidade de ocorrer práticas jurídicas não oficializadas pelo Estado, mesmo porque nem sempre existiu a forma estatal. O não reconhecimento de outras fontes jurídicas, que não somente as propostas pelo Estado, teve o objetivo de negar uma evidência histórica e antropologicamente comprovada, necessária para a formação do Estado-Moderno: a existência de sociedades sem Estado.

Pierre Clastres discutiu a essência do poder demonstrando que a análise do poder político, elaborada pela cultura ocidental, foi feita por meio de relações hierarquizadas e autoritárias de comando-obediência142. A ausência dessa relação implicaria em ausência de poder político, possibilitando a existência de sociedade sem Estado.143 Os conceitos de soberania e nação foram erigidos por meio de uma relação hierarquizada advinda da formação dos Estados-Modernos. Em sociedades sem Estado ou em sociedades com estruturas de poder diferentes daquelas forjadas pela cultura ocidental, os conceitos de nação e soberania inexistem ou não refletem a concepção construída pela cultura majoritária.

Os povos indígenas possuem líderes aos quais respeitam – pelas mais variadas explicações antropológicas – no entanto, esses povos desconhecem a relação comando- obediência. Essa idéia de dar uma ordem e obedecer parece ser estranha em muitas sociedades indígenas, mas isso não significa inexistência de sociedades.

Em sociedades com relação de poder diferente da relação comando-obediência como, por exemplo, os povos indígenas, os conceitos de nação e soberania podem nada significar ou podem possuir uma nova configuração conceitual, devido à formação de um contradiscurso que evidencia a violência empregada, pela cultura majoritária, para a implantação de ambos os conceitos.

142 WEBER, Max. Economia y sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1977, p. 43. Max Weber adere

à concepção segundo a qual a dominação significa a possibilidade de que um mandato seja obedecido.

143 CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado; pesquisas de antropologia política Trad. de Theo

Os conceitos de nação e soberania não se dissociam do momento histórico ao qual surgiram. Eric Hobsbawn ofereceu uma abordagem sobre as mudanças existentes em torno do conceito de nação, notadamente, durante o final do século XIX. Compreendeu nação como pertencente a um “período particular e historicamente recente; uma entidade social apenas quando relacionada a uma certa forma de Estado territorial moderno, o Estado-nação; e não faz sentido possível discutir nação e nacionalidade fora desta relação”.144

Para Hobsbawn, a etnicidade não tem relação histórica com aquilo que foi fundamental para as nações modernas: a formação do Estado. Primeiramente, procedeu-se a identificação entre Estado e nação através do processo de modernização, provocando uma “homogeneização e padronização de seus habitantes essencialmente por meio de uma língua escrita”.145 Nesta unificação, as línguas nacionais foram construídas através de construções artificiais em uma escolha política distanciada das diferenciadas culturas multilíngues de um mesmo espaço geográfico.146

Outro aspecto demonstrativo da não relação histórica entre a etnicidade e nação vincula-se ao modo como um determinado povo se vê, opondo-se aos outros. Historicamente essa oposição nós aos outros não produziu nenhum Estado.147

144

HOBSBAWN, Eric. Nações e nacionalismos desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 18. “As nações, postas como modos naturais ou divinos de classificar os homens, como destino político ... inerente, são um mito; o nacionalismo, que às vezes toma culturas preexistentes e as transforma em nações, algumas vezes as inventa e frequentemente oblitera as culturas preexistentes: isto é uma realidade. As nações não formam os Estados e os nacionalismos, mas sim o oposto”.

145 Ibid., p. 114. “Tanto a administração direta de um vasto número de cidadãos pelos governos modernos quanto

o desenvolvimento técnico e econômico o requeriam, porque eles tornam desejável a alfabetização universal e obrigatório o desenvolvimento de massa da educação secundária”.

146 Ibid., p. 70-71. “Freqüentemente, essas línguas são tentativas de construir um idioma padronizado através da

recombinação de uma multiplicidade de idiomas realmente falados, os quais são, assim, rebaixados a dialetos - e o único problema nessa construção é a escolha do dialeto que será a base da língua homogeneizada e padronizada”.

Talvez, tenha sido favorável essa não formação estatal, pois definições étnicas como as propostas por Sabino Arana, priorizando uma política de segregação para imigrantes, poderiam gerar, na prática, o apartheid.148

Para Hobsbawn, as diferenças étnicas pouco contribuíram para a formação do nacionalismo. Exemplificando, indica que o senso de diferença étnica entre os “índios” da América Latina sempre foi muito marcado em relação aos brancos ou mestiços, sendo reforçado pelo sistema colonial, porém “não conheço nenhum caso em que esse fato tivesse levado a movimentos nacionalistas.”149

A etnicidade pode servir tanto para o sentimento de pertencimento em torno de um nós como para o segregacionismo em relação a outros. Mas, a religião também apresenta esse paradoxo, por um lado, serve para estabelecer uma comunhão entre indivíduos que nada possuem em comum, mas, por outro, pode ser uma característica diferenciada de uma comunidade como, por exemplo, o judaísmo.

A religião compreendida como comunhão, forjada entre o século VI a.C. e VII d.C., fora considerada universal, propiciando o desaparecimento das “diferenças étnicas, lingüísticas, políticas e outras”.150

A universalização da língua nacional também foi responsável pela unificação e homogeneização da sociedade, doravante representada apenas por uma única cultura.

Rosa Luxemburgo em “A Questão Nacional” criticou veementemente o ponto 9 do Partido Social Democrata Operário Russo (POSDR) que estabelecia o Direito das nações à autodeterminação.

148 CAPELLA, Juan Ramón. "Las raíces culturales comunitarias". (Separata) In: Los nacionalismos: globalización y crisis del estado-nação. Barcelona: Escuela Judicial; Consejo General del Poder Judicial, 1998,

(Cuadernos de Derecho Judicial), p. 254.

149 HOBSBAWN, op. cit., p. 82.

150 Ibid., p. 83. “Os índios e os espanhóis no império e os paraguaios, brasileiros e argentinos desde a

independência foram todos, igualmente, fiéis filhos de Roma, e não podiam distinguir-se como comunidades por sua religião. Felizmente, as verdades universais estão freqüentemente em competição, e as pessoas que estão na fronteira de algumas dessas verdades podem, às vezes, escolher outras como um distintivo étnico [...]”.

Luxemburgo assinalava que o caráter geral e de clichê do ponto 9 do Programa do POSDR indicava uma forma de resolver o problema alheia ao socialismo científico-marxista. Um Direito das nações válido para todos os países e para todos os tempos não era mais que um clichê metafísico do tipo de ‘os Direitos Humanos’ e os ‘Direitos do cidadão’. A expressão Direito das nações à autodeterminação não significava uma diretriz política para abordar a questão nacional, mas o único meio para evitar essa questão.151

A nação representa uma entidade sócio-política homogênea inexistente. A existência da sociedade envolve grupos sociais heterogêneos e minoritários em suas defesas intransigentes de interesses e Direitos antagônicos.

Do mesmo modo que a construção histórica do Estado-Moderno foi uma representação da burguesia privilegiando determinada classe dominante, produzindo conceitos como igualdade perante a lei e liberdade dos cidadãos, o conceito de “nação” também fora elaborado para solapar a heterogeneidade formadora da sociedade. Todos os elementos caracterizadores e construtores do moderno Estado serviram de alicerce para forjar a concepção de nação.

Para José Eduardo Faria, em meados do século XV, a expressão nação passou a ter cada vez mais um cunho político. A partir daí a “idéia de nação é condicionada pela expansão concomitante e interdependente entre a crescente burocratização da administração pública, por um lado, e a evolução e extensão da cidadania, por outro.”152

No momento histórico iniciado com as Revoluções Burguesas do século XVIII a concepção de nação incluiu a societas civilis, os cidadãos passaram a ter o Direito de participar e colaborar na elaboração de leis, na construção e condução das instituições. A

151 AUBET, María José. El pensamiento de Rosa Luxemburgo. Barcelona: ediciones del Serbal, 1983. p. 155.

“el carácter general y de cliché del púnto 9 del Programa del POSDR muestra que esta forma de resolver el problema es ajena al socialismo científico-marxista. Un derecho de las naciones válido para todos los países y para todos los tiempos no es más que un cliché metafísico del tipo de 'los derechos humanos' y los 'derechos del ciudadano’.”

consciência nacional transformou-se em uma força de mobilização, de unidade e afirmação social. A partir deste instante, “a nação passa a ser identificada como fonte de soberania”.153

Para Juan Ramón Capella, a idéia de soberania teve origem no sistema feudal, pois surgiu objetivando designar uma característica dos novos reinos medievais que se originavam independentemente do papado ou do Império romano-germânico. “Dizia-se que tais reinos eram soberanos [...], por não admitir poder algum superior a eles”.154 Esse soberano feudal não possuía um poder apenas político, ao mesmo tempo constituía um poder econômico, cultural, ideológico e religioso. Não havia uma diferenciação de poder. Com o advento do Estado-Moderno surgiu essa diferenciação e a soberania passou a ter uma ligação com o aspecto político de poder, todos os outros poderes submeter-se-iam às normas do poder soberano.

Por meio das revoluções políticas burguesas e posterior predomínio capitalista, se passou a usar o conceito de soberania tão-somente ao lado do poder político. Não mais representava a soberania de um reino, ou do Estado, mas soberania do povo, sendo definido155, abstratamente, como o conjunto de cidadãos.

Ralph Christensen, em sua introdução à Friedrich Müller, compreende que o povo tem sido considerado enquanto bloco pela teoria jurídica da democracia, sendo utilizado, regularmente, como pedra fundamental imóvel na teoria da soberania popular na justificativa para qualquer ação do Estado. Criticando-a Christensen admite que essa utilização em bloco

153 FARIA, op. cit., p. 16-17.

154 CAPELLA, Juan Ramón. Fruta Prohibida: una aproximación histórica-teorética al estudio del derecho y del estado. Barcelona: Trotta, 1999, p. 111. “Se decía que tales reinos eram soberanos [...], por no admitir poder

alguno superior a ellos”.

155 MÜLLER, op. cit., p. 20, 37. “Povo não é um conceito unívoco, mas plurívoco [...]. Uma coisa é a totalidade

do povo, como centro de imputação das decisões coletivas. Outra é a fração dominante do povo, cuja vontade efetivamente predomina nas eleições, referendos e plebiscitos. Essa fração dominante do povo é, sem dúvida, formalmente majoritária. Mas a maioria de sufrágios correponde à vontade e ao interesse próprio dos votantes, enquanto classe ou grupo social? Quem é, concretamente falando, a maioria que se pronuncia em nome do povo? [...] Tudo o que o povo até agora empreendeu em matéria de elaboração de constituições teve um caráter mais mediato do que imediato, foi mais símbolo do que realidade”.

do conceito de povo visa encobrir as diferenças que propiciam distinguir entre “retórica ideológica e democracia efetiva”.156

Friedrich Müller apresenta quatro formas de utilização da concepção jurídica de povo157. A utilização icônica invoca o povo como metáfora em uma retórica ideológica. O “povo como ícone” torna-se sistema, induzindo a práticas extremadas que consistem, na realidade, em abandonar o povo a si mesmo, “em mitificar a população, em hipostasiá-la de forma pseudo-sacral e em instituí-la assim como padroeira tutelar abstrata”, tornada inofensiva para o poder do Estado. Os meios de se criar essa forma de povo identificam-se por meio de medidas externas como a colonização, expulsão e limpeza étnica. Mas essa utilização da palavra povo também pode referir-se a outra coisa: à produção de um povo global homogêneo, ativamente politizado pela outorga constitucional, pelas leis, pelos costumes, pelo folclore coletivo.158

As três outras formas transcendem a concepção metafórica e assumem a práxis. O povo, como instância de atribuição, por meio do texto do poder constituinte mede se a “decisão do titular de um cargo pode ser atribuída ao texto da norma democraticamente instituído como vigente, enquanto ‘Direito popular’, ou se estamos diante de um Direito pretório”.159O povo entendido como instância global da atribuição, conferindo legitimidade democrática ao procedimento em que as decisões são prolatadas em seu nome, deve ser entendido não apenas como “fonte ativa da instituição de normas por meio de eleições bem como por meio de referendos legislativos”, porque de todo modo o povo sempre será o destinatário das prescrições, sempre conectado a deveres, Direitos e funções de proteção. Por essa razão, o povo justifica o “ordenamento jurídico num sentido mais amplo,

156 MÜLLER, op. cit., p. 35.

157 Ibid., p. 44. “Não se perguntou aqui o que significa a palavra povo, mas como ela é utilizada onde e por

quem. No discurso do direito. Ali: em textos de normas, sobretudo constitucionais, muito raramente ainda em textos de normas legais. Por vocês: os constituintes, os legisladores, os guardiães da lei”.

158 Ibid., p. 42, 68. 159 Ibid., p. 43.

como ordenamento democrático, à medida que o aceita globalmente não se revoltando contra o mesmo”.160

O povo compreendido enquanto povo ativo significa a atuação do povo como sujeito de dominação por meio de “eleição de uma assembléia constituinte e/ou da votação sobre o texto de uma nova constituição; por intermédio de eleições e, em parte, por meio da iniciativa popular e do referendo; e, por fim, por meio de eleições para instâncias de autogestão”.161

O povo como destinatário de prestações não se reduz a um território do Estado, isso se torna menos relevante. Compete às pessoas serem tratadas, juridicamente, na qualidade de ser humano, na sua dignidade humana, neste sentido são protegidas constitucionalmente.162

As três concepções jurídicas de Müller a respeito de povo direcionam-se para os documentos constitucionais, sobretudo na sua defesa intransigente em levar a palavra povo “a sério como conceito jurídico a ser interpretado lege artis”.163 O quanto antes se afastar o risco de tornar o conceito de povo o ponto inicial do discurso de legitimação para práticas