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2 A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA DEFICIÊNCIA E OS ESTUDOS DE

2.3 Defectologia e Cegueira: Uma Questão Social

Ao longo da história humana, a concepção de cegueira passou por três fases: a mística, a biológica e a moderna, conforme sugere Vigotski (1997). No período místico, que teve vigência na Antiguidade, na Idade Média e em parte da história moderna, os cegos eram vistos com superstição e respeito, embora a condição fosse considerada uma desgraça. De fato, havia uma tendência em considerar a pessoa cega próxima ao mundo espiritual, de modo que a cegueira trazia o desenvolvimento das forças místicas da

alma, a ligação com o divino e a facilidade para desenvolver algum talento filosófico (Vigotski, 1997).

No século XVIII, surgiu uma nova forma de conceber a cegueira: no lugar da perspectiva mística passou a ter destaque uma concepção mais científica. Esta nova concepção reforçou a educação e a instrução das crianças cegas, permitindo a elas o acesso à cultura e à vida social (Vigotski, 1997).

A concepção moderna sobre a cegueira buscou dominar a verdade sobre a psicologia da pessoa com deficiência visual. Como detalha Vigotski, esse período é marcado pela psicologia social da personalidade, da escola de A. Adler, que destacou o papel psicológico do defeito orgânico para a formação e o desenvolvimento da personalidade. Vigotski (1997) cita o caso da cegueira, explicando que:

Para compreender totalmente as particularidades do cego devemos revelar as tendências existentes em sua psicologia, os embriões do futuro. Em realidade, estas são as exigências gerais do pensamento dialético na ciência: para esclarecer por completo qualquer fenômeno é necessário considerá-lo na relação com seu passado e seu futuro. Tal é a perspectiva de futuro que Adler aporta à psicologia (p. 104, tradução nossa).

Se por um lado, o mundo antigo procurava as forças místicas na cegueira, por outro, a teoria biológica era ingênua por defender a compensação orgânica. Sobre a compensação, Vigotski (1997) explica que, no caso do cego, a fonte central para a compensação não se encontra no desenvolvimento do tato ou do ouvido, mas sim na linguagem, a partir da experiência de comunicação com os videntes.

Assim, se considerarmos o aspecto biológico no âmbito animal, o cego tem mais perdas em relação às possiblidades de desenvolvimento do que o surdo. Por outro lado, para o ser humano, para quem o plano social e cultural sobressai ao biológico, a surdez

traz mais dificuldades do que a cegueira. Nesse sentido, o cego encontra na linguagem amplas possibilidades de incorporação das experiências sociais (Vigotski, 1997).

. . . para o homem, em quem aparecem em primeiro plano as funções artificiais, sociais, técnicas, a surdez implica uma insuficiência muito maior que a cegueira. A surdez causa o mutismo, priva da linguagem, isola o homem, o desconecta do contato social que se apoia na linguagem. O surdo como organismo, como corpo, tem maiores possibilidades de desenvolvimento que o cego; mas o cego como pessoa, como unidade social, se encontra em uma situação incomparavelmente mais favorável: tem a linguagem e junto com esta a possibilidade de plena validez social. De tal modo que, a linha diretriz na psicologia do cego está orientada à superação do defeito por meio de sua compensação social, por meio da incorporação da experiência dos videntes, mediante a linguagem. A palavra vence a cegueira (Vigotski, 1997, pp. 107- 108, tradução nossa, grifo nosso).

Na visão de Costa (2006), é preciso considerar que os seres humanos e o mundo real estão em permanente movimentação e mudança: eles não são imutáveis. Vigotski propõe que a deficiência não seja olhada com pessimismo.

Há uma regra fundamental da psicologia dos cegos que Vigotski (1997) define do seguinte modo:

. . . o todo não pode ser explicado nem compreendido por suas partes, mas as partes podem ser compreendidas com base no todo. A psicologia dos cegos pode ser construída, não da soma de particularidades singulares, de desvios parciais, de traços isolados de uma ou outra função, mas estas mesmas particularidades e desvios se tornam compreensíveis somente quando partimos de um objetivo vital único e integral, da linha diretriz do cego, e determinamos o lugar e

significado de cada particularidade e traço isolado neste todo e em vinculação com ele, quer dizer, com todos os traços restantes (p. 106, tradução nossa). Para os autores da perspectiva histórico-cultural, o desenvolvimento da pessoa cega, tal como ocorre com o vidente, não se dá de maneira espontânea, pois o contexto sociocultural assume centralidade. Exatamente pelo fato de a superação das dificuldades ocorrer pela interação com fatores externos e internos, no caso dos cegos, o organismo se reorganiza, contando com estímulos e meios especiais, como o Braille (Costa, 2006).

. . . para os cegos, os recursos e os instrumentos metodológicos devem explorar preferencialmente as sensações auditivas, táteis, cinestésicas, tal como se dá no uso do Braille, da música, no desenvolvimento da oralidade, etc. Enfim, deve-se propiciar ao cego possibilidades de explorar e interagir com os objetos de conhecimento, por meio dos seus sentidos sadios (Costa, 2006, p. 234).

Isso significa que a cegueira não fecha as janelas do mundo para o cego nem o retira da realidade. Para Vigotski (1997), quando o cego encontra um lugar produtivo na vida, a cegueira não significa uma insuficiência e deixa de ser um defeito. Como disse Vigotski (1997, p. 82, tradução nossa): “A educação social vencerá a defectividade. Então, provavelmente, não nos compreenderão quando dissermos de uma criança cega que é deficiente, mas dirão de um cego que é um cego e de um surdo que é um surdo, e nada mais”.

O autor pontua que a cegueira não consiste apenas na ausência de visão, mas sim em um complexo processo de reestruturação do organismo e, consequentemente, da personalidade. Sendo assim, como explica Vigotski (1997, p. 99, tradução nossa), “a cegueira, ao criar uma nova e peculiar configuração da personalidade, origina novas forças, modifica as direções normais das funções, reestrutura e forma criativa e organicamente a psique do homem”.

Há questões essenciais a serem discutidas quando nos referimos às pessoas cegas, especialmente quando tratamos das questões relacionadas ao desenvolvimento e à aprendizagem. Para Vigotski (1997), a criança cega pensa que sua deficiência é um estado normal e não um problema. De fato, ela começa a sentir que possui um defeito de forma indireta e secundária, a partir das experiências sociais. A cegueira, portanto, não faz uma criança incapaz, mas sua condição humana sim. O conflito central se instala quando consideramos que a cegueira traz dificuldades para que a criança cega possa inserir-se no meio social (Vigotski, 1997).

A difícil posição social que a deficiência traz ao indivíduo acarreta sentimentos diversos, como o de inferioridade, insegurança e fraqueza. Vigotski (1997) defende a ideia de que é preciso compreender a cegueira tal qual um problema social. Deve-se, portanto, considerar o papel da linguagem para o desenvolvimento e a aprendizagem da criança cega. É na linguagem que Vigotski (1997) delimita o ponto final, o caminho e a fonte para o desenvolvimento do ser humano.

Portanto, “o desenvolvimento da linguagem, a mais importante das funções de representação, pressupõe, assim, o desenvolvimento dos sistemas semióticos (ou sistemas de signos)” (Costa, 2006, p. 237). Por possibilitar a organização do mundo, a constituição de si e as interações sociais, a linguagem não apenas emancipa o homem, mas também o direciona para um projeto societário maior, um tipo de empoderamento (Coelho et al., 2011).

Nesse sentido, o trabalho realizado por Vigotski não valoriza nem se conforma com quaisquer impossibilidades biológicas, reforçando que a deficiência não pode ser vista como um empecilho para o desenvolvimento (Coelho et al., 2011). Vigotski (1997) vislumbra uma situação hipotética na qual existisse um país onde a cegueira não fosse vista enquanto insuficiência: nesse local, ela não seria defeito.

Os sentidos estão ligados à forma como compreendemos e estamos no mundo. As pessoas com deficiência visual vivenciam referências diferenciadas – e não diferentes – do mundo, e de forma individual e coletiva. Elas podem desenvolver-se plenamente, dentro de um transcurso pleno de aprendizagem e humanização. Para que o desenvolvimento ocorra é preciso prover meios de promoção de tal processo, os quais devem ser oferecidos para todo ser humano, como a educação, o trabalho e a arte (Vigotski, 1997).

. . . é preciso eliminar a educação dos cegos baseada no isolamento e na invalidez, e acabar com o limite entre a escola especial e a comum: a educação da criança cega deve ser organizada como a educação da criança capaz de um desenvolvimento normal; a educação deve converter realmente o cego em uma pessoa normal, socialmente incluída e fazer desaparecer a palavra e o conceito de “deficiente” no que concerne ao cego. E, por último, a ciência contemporânea deve conceder ao cego o direito a um trabalho social não em suas formas humilhantes, filantrópicas (como tem feito até o momento), mas em formas que respondam à autêntica essência do trabalho, a única capaz de criar para a pessoa a necessária posição social (Vigotski, 1997, pp. 112-113).

Na perspectiva histórico-cultural, assume-se que a arte é um dos elementos transformadores de rotas subjetivas. Por seu caráter social, e enquanto meio para a transformação de emoções e do funcionamento psicológico, a arte traz mudanças na forma como as pessoas com deficiência se significam e são significadas no meio social. A partir da interseção entre arte e deficiência, é possível encontrar possibilidades ricas para conhecer sobre as construções a respeito do corpo, do indivíduo e da cultura (Cordeiro et al., 2007).

Através da arte, o indivíduo com deficiência pode se expressar, socializando seu interior e demonstrando sua singularidade. Pode, também, trabalhar suas emoções e habilidades, o que contribui, assim, para sua inserção social. . . . Uma pessoa capaz de expressar-se artisticamente é também capaz de participar de modo mais efetivo de seu contexto sociocultural, pois contribui produtivamente e transforma seu desenvolvimento em um constante processo de aprendizagem e de reconstrução de suas formas de expressão, exercendo, assim, sua cidadania (Cordeiro et al., 2007, p. 152).

Especificamente em relação a este trabalho, é central compreender questões importantes no âmbito da perspectiva histórico-cultural, como as relações estabelecidas entre arte e a deficiência, bem como as produções de sentidos construídas pelas pessoas com deficiência que trabalham com arte. No próximo capítulo, discutiremos mais amplamente a psicologia da arte sob a perspectiva histórico-cultural, além de delimitarmos o nosso estudo.

3 ARTE E VIDA: APONTAMENTOS DA PERSPECTIVA HISTÓRICO-