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2.5 – A defesa da Política Fiscal: uma alternativa crítica ao Novo Consenso

Há diversas maneiras de se oferecer alternativas à visão atual do mainstream com relação à política fiscal. As opções vão desde a invalidação das proposições do Novo Consenso pela desconstrução dos seus princípios básicos; podem passar pela própria crítica interna, que atém às inconsistências pontuais e à plausibilidade dos pressupostos frente à evidência empírica; bem como se basear na crítica geral das atribuições dos papéis às políticas, utilizando a própria estrutura de análise empregada por esse pensamento comum.

No primeiro leque de alternativas, recorreríamos à crítica (pós-)keynesiana aos pressupostos fundamentais do Novo Consenso e mostraríamos a defesa da política fiscal com base em outra categoria de análise. Nessa alternativa, seriam invalidados, por exemplo, a existência da NAIRU ou da curva de Phillips, a plausibilidade da TER ou ainda se argumentaria sobre cada uma das possibilidades reais da política monetária ser incapaz de lidar com o desafio duplo de controlar inflação e produto129 (seja pela inelasticidade dos gastos às variações na taxa de juros, pelo impacto dos juros no câmbio, pelas conseqüências nos mercados de ativos entre muitas outras possibilidades). Já no segundo leque de críticas, apesar de já termos levantado uma delas quando discutimos a FTPL, apenas agiríamos em favor de mais aprimoramentos da visão estabelecida. Optamos, portanto, em argumentar pelo terceiro conjunto de críticas à visão atual. Acreditamos que a estratégia de defesa da política fiscal com importância semelhante à da

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Apesar da extrema importância da argumentação presente nas considerações pós-keynesianas em favor da política fiscal, principalmente pela reivindicação do uso das “finanças funcionais”, acreditamos que esse caminho pode ser percorrido após uma crítica externa ao consenso, mas que leve em consideração o mesmo arcabouço da Nova Síntese. Como, pelos seus princípios inerentes, as reivindicações pós-keynesianas não são abertamente consideradas pelo Novo Consenso, assumimos que a melhor estratégia, no momento, é tentar atuar no campo em questão.

política monetária, usando o próprio arcabouço do Novo Consenso, abre um espaço maior tanto pra discussão desta visão com o pensamento alternativo, quanto para o posterior questionamento dos seus princípios fundamentais130.

Acreditamos que não há nada inerentemente monetário no processo de estabilização econômica proposto pelo Novo Consenso que justifique o papel marginal desempenhado pela política fiscal, da mesma maneira que afirmam Arestis e Sawyer (2003a) e Fontana (2009b). O argumento é que o papel de política de estabilização pode ser representado por qualquer variável que afete a demanda agregada. Fontana (2009a) usa a estrutura do modelo padrão da Nova Síntese, da maneira como é apresentado na maioria dos casos, para afirmar que através da variação da demanda é possível atuar no hiato de produto (curva IS) que, por sua vez, é usado para controlar as mudanças necessárias na taxa de inflação (curva de Phillips) para que sua meta seja atingida (regra de Taylor). Segundo o autor, por este mecanismo a política fiscal atua de maneira mais direta que a política monetária na estabilização econômica:

Comparing the transmission mechanism of fiscal policy with the transmission mechanism of monetary policy, it is clear that in the former case the government has a direct control of the lever affecting the AD [aggregate demand] function and, hence, the output gap, namely a0, whereas in the latter case the central bank has only an indirect control on the real interest rate and, hence, no more than an imperfect and temporary influence on the AD function and output gap

(Fontana, 2009a, p. 18).

Neste sentido, o autor sugere que a “curva IS” seja substituída por uma versão que leve em consideração os gastos do governo, a tributação e as exportações líquidas de maneira endógena, influenciando o hiato de produto131. Esta proposta, na visão do autor, coloca o déficit público como resposta ao processo inflacionário (ou deflacionário) das mudanças no hiato de produto e tira parte da argumentação de que é apenas o resultado de ações deliberadas de uma autoridade fiscal irresponsável.

Entretanto, Setterfield (2005) mostra como a resposta fiscal com relação às variações no produto pode ganhar uma consistência maior na estrutura de análise do Novo Consenso

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Dessa forma, vamos nos valer das contribuições, primeiro apresentadas em Arestis e Sawyer (2003a, 2003b, 2003c) e daquelas desenvolvidas a partir do trabalho desses autores, como (e principalmente) a de Setterfield (2005).

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Arestis e Sawyer (2003b) desenvolvem essa proposta e usa o mesmo princípio exposto por Fontana (2009a) para fazerem críticas pontuais às diversas formas de “crowding out” levantadas pelo Novo Consenso.

quando se considera uma regra para o comportamento da política fiscal no mesmo sentido em que a regra de Taylor é configurada132.

O modelo que o autor apresenta é uma reestruturação do modelo padrão do Novo Consenso em que a política fiscal ganha papel ativo enquanto a política monetária se torna passiva, responsável apenas pelo ajuste da taxa de juros de acordo com uma “taxa natural” 133. Para Setterfield (2005) a política fiscal é ativa no sentido de que o déficit (NFSP) muda em resposta aos desequilíbrios de curto prazo. Como a regra de Taylor é implicitamente atribuída à condução da política monetária, o autor denomina a regra para a condução da política fiscal de “pseudo regra de Taylor”. De acordo com seu modelo (Setterfield, 2005, p. 7):

y = y1 + f – δr (1)

f = f0 – λ(y – yn) – μ(p – pT) (2)

r = rn (3)

onde y é o nível de produto real, y1 é uma constante que capta os demais determinantes do produto real (balanço externo, investimento), p a taxa corrente e pT a meta de inflação e r a taxa de juros real de equilíbrio. Os subscritos n representam os valores naturais das variáveis. A necessidade de financiamento do setor público em termos reais é representada por f, enquanto f0 é uma constante que capta os seus determinantes estruturais.

Da mesma maneira que no modelo original do Novo Consenso, o equilíbrio é atingido quando a inflação é igual à meta e o produto igual ao potencial134 (“natural”). A situação de equilíbrio é estável, mas Setterfield (2005) demonstra que, da mesma maneira que no modelo da Nova Síntese, existem algumas restrições para a função de reação para que o equilíbrio seja atingido. A principal delas é a necessidade de que a sensibilidade da resposta fiscal à variação na

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Allsopp e Vines (2005, p. 498) afirmam que, em princípio, a política monetária e a fiscal podem ser substitutas. Entretanto, na prática, não são substitutas perfeitas devido aos problemas institucionais da política fiscal. A despeito dessa consideração, sua proposição é de que “monetary policy reaction function of the new consensus should be replaced by a fiscal policy reaction

function performing a similar role.”

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De acordo com o autor, “this “passive” monetary policy involves the central bank both accurately estimating and keeping

track of the natural rate of interest as it changes over time. Monetary policy is passive, therefore, only in the sense that the interest rate is not the main instrument of stabilization policy: estimating and keeping track of the natural rate of interest are far from trivial tasks for the central bank to perform” (Setterfield, 2005, pág.7)

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O autor prefere utilizar o nível do produto real na “curva IS” ao invés do hiato de produto utilizado no modelo padrão da Nova Síntese. A opção, contudo, não representa nenhum problema analítico comparativo entre os dois modelos.

inflação seja positiva135. De modo geral, o modelo de Setterfield (2005) apresenta a mesma robustez do modelo da Nova Síntese.

O autor mostra que as condições de estabilidade do seu modelo são satisfeitas e afirma que a política fiscal “is a viable alternative to monetary policy as an instrument of stabilization policy in a new consensus framework” (Setterfield, 2005, p. 9, ênfase no original). Mas, na determinação das condições de equilíbrio, o modelo de Setterfield (2005) tem uma vantagem aparente: enquanto na sua regra de política apenas o produto potencial é a variável desconhecida, na regra de Taylor, além do produto potencial, a taxa de juros natural também não é conhecida136. Contudo, mesmo que se usem os resultados do modelo de Kirsanova et alii (2005), que apontam a melhor resposta de uma regra fiscal como aquela em que a sensibilidade do gasto às variações no produto é nula, o modelo de Setterfield (2005) não se exime de depender da capacidade do Banco Central estimar apropriadamente o nível do produto natural137.

No modelo da Nova Síntese, como argumentamos anteriormente, a capacidade de a política monetária afetar o produto depende da sensibilidade dos gastos da demanda agregada à taxa de juros. No modelo de Setterfield (2005), a capacidade de a política fiscal ser instrumento de estabilização econômica é indiferente quanto à elasticidade dos gastos frente a taxa de juros. De acordo com o autor, o único desafio à eficiência de sua “pseudo regra de Taylor” é a TER. Entretanto, como Woodford (1995) e Christiano e Fitzgerald (2000) argumentam, a existência de comportamento não-ricardiano não é implausível teoricamente. Por outro lado, Arestis e Sawyer (2003b, 2003c), o próprio Setterfield (2005) e Tcherneva (2008) advogam, com base nos estudos empíricos138, que a existência da equivalência ricardiana, mesmo que “parcial”, é desprezível. Neste sentido a TER não é uma ameaça pujante à regra para a política fiscal139 tal qual sugerida por Setterfield (2005).

135 Em comparação ao princípio de Taylor para a política monetária, o autor denomina essa condição de “pseudo princípio de

Taylor”.

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Pelas equações 1 e 3 do modelo de Setterfield (2005) é possível determinar a taxa de juros natural como dependente das condições estruturais da economia, onde a única variável não observável é o produto natural.

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Há de se fazer uma consideração sobre este ponto. Enquanto o modelo de Kirsanova et alii (2005) é uma extensão do modelo padrão da Nova Síntese, que possui tanto a regra de Taylor quanto uma regra para a condução da política fiscal, a proposta de Setterfield (2005) é a de substituir uma regra pela outra. Entretanto, acreditamos ser possível estender este último modelo da maneira como Kirsanova et alii (2005) o fazem, para que considerações a respeito dos impactos da e na dívida pública sejam levantadas.

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Como os de Campbell e Mankiw (1990), Blundell e MaCurdy (1999) e Hemming et alii (2002).

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Ao contrário da inelasticidade dos juros na determinação da eficiência da política monetária, onde “empirical evidence

suggests that investment spending is, in fact, interest inelastic (Chirinko, 1993; Fazzari 1993; 1994 - 95)” (Setterfield, 2005,

Setterfield (2005) ainda afirma que, mesmo que a evidência mostrasse a existência de fato da equivalência ricardiana, para que essa possibilidade fosse uma restrição à política fiscal, ainda seria preciso demonstrar que existe um limite superior que restringe a elevação adicional do déficit/PIB e que esta relação, no momento da implementação da política, estivesse próxima o suficiente desse limite140.

Além da argumentação com base nas características do modelo que permitem a Setterfield (2005) levantar a possibilidade de a política fiscal substituir a política monetária enquanto instrumento de estabilização econômica, o autor ainda defende que nenhuma das razões institucionais contrárias à política fiscal, como levantamos em seção anterior, fornece um motivo forte para acreditar que esta política é menos eficiente que a monetária na estrutura teórica do Novo Consenso. Como Arestis e Sawyer (2003b) argumentam, muitos deles também ocorrem com a política monetária e, para Setterfield (2005), o estabelecimento da “pseudo regra de Taylor”, elimina os “lags” da política, funciona como indicativo das intenções da autoridade fiscal para os agentes privados e não tem viés de déficit, uma vez que esse viés parece ter mais relação com o valor dos determinantes estruturais da NFSP do que com a sua própria variação. Com base na discussão geral proposta pelo seu modelo, Setterfield (2005, p 15, ênfase no original) conclui:

On balance, then, this brief evaluation of the comparative efficacy of fiscal and monetary policy as instruments of stabilization policy in the new consensus suggests that fiscal policy is at least as, if not, in fact, more potent as an instrument of stabilization policy than is monetary policy – despite (or perhaps one might say contrary to) current mores favouring the latter.

E, ainda:

Even if one accepts controversial features of the new consensus model – such as its insistence on the existence of “natural” equilibrium values of real variables defined exclusively on the supply-side of the economy, and the paramount importance of creating an acceptable equilibrium rate of inflation through the process of inflation targeting – there appears to be both a potential role for fiscal policy in lending stability to these equilibrium values, and a distinct possibility that fiscal policy is more effective in this role than is monetary policy.

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Neste caso, da mesma maneira as mudanças das taxas de juros devem ser de grande magnitude para que a política monetária influencie o produto quando os gastos são juros-inelásticos, as mudanças na “pseudo regra de Taylor” de Setterfield (2005) deveriam ser grandes o suficiente para demonstrar que limite superior da relação déficit/PIB foi de fato uma restrição à manipulação da NFSP.

At the very least, it would seem that the unquestioned privileging of monetary policy as the instrument for stabilization policy in the new consensus is inappropriate (ibid.).

O resultado de Setterfield (2005) vai, portanto, no mesmo sentido das proposições de Arestis e Sawyer (2003a, 2003b, 2003c), Tcherneva (2008) e Fontana (2009a, 2009b), pois mostra que a política fiscal pode ter propriedades similares à da política monetária enquanto ferramenta de ajuste macroeconômico. No caso de Setterfield (2005), isso é possível pela consideração de uma regra para a execução da política fiscal parecida com a regra de Taylor no caso da monetária. Para os demais autores, além da consideração de argumentos como os de Setterfield (2005), a defesa da política fiscal também embarca nos questionamentos estruturais do modelo, estratégia que, como dito, por hora, optamos por não considerar.

Considerações finais

Neste capítulo mostramos que após o ativismo das políticas keynesianas do pós- guerra a política fiscal ocupou um lugar secundário em termos de estabilização do produto e controle macroeconômico. A quebra do consenso em torno da viabilidade das políticas discricionárias de ajuste na demanda, suportada tanto pela perspectiva teórica quanto pelos acontecimentos históricos à época, colocam a política fiscal numa posição subordinada com relação à política monetária. A subordinação, contudo, não tira a centralidade da política em garantir a estabilidade sistêmica. Na visão que se desenvolve após o período de discricionariedade keynesiano, a política fiscal, ao manter o controle intertemporal das contas públicas, garante a sustentabilidade da dívida pública e, por conseguinte, fornece os “fundamentos econômicos” necessários tanto para a execução da política monetária por parte do Banco Central quanto para a tomada de decisões dos agentes privados.

Para a visão do Novo Consenso, a estabilidade macroeconômica depende, neste sentido, do comprometimento da política fiscal com a adequação da sua restrição orçamentária, da capacidade da política monetária em conseguir o ajuste necessário da taxa de juros e da interação positiva entre as duas políticas. Dessa forma, em situações em que uma ou mais dessas condições não são satisfeitas, a estabilidade fica prejudicada. Mostramos cada uma dessas possibilidades e demos atenção especial ao fato de que, quando a política monetária se torna ineficiente, principalmente quando a taxa de juros se atinge seu “zero bound” e/ou quando há

eminência de uma crise de deflação, algumas vozes no atual mainstream levantam a possibilidade da atuação mais direta da política fiscal como instrumento de estabilização macroeconômica.

Entretanto, apesar de claros exemplos de que o gasto público pode ser eficiente e necessário em “períodos de exceção” (sic), a defesa da política fiscal para esses autores se baseia principalmente nas formas de atuação sobre as expectativas dos agentes, no incentivo ao gasto baseado no efeito riqueza trazido das variações na tributação e/ou dos lançamentos líquidos de títulos públicos. O único instrumento de política fiscal de fato inquestionável pelo Novo Consenso são os estabilizadores automáticos, que funcionam como uma regra de atuação para a política com efeitos anticíclicos sobre o déficit público, como as ações discricionárias, em princípio, podem ter.

No caminho tomado neste capítulo, mostramos que, mesmo o reconhecimento da necessidade da política fiscal enquanto ferramenta de estabilização no período recente, o fundamental do Novo Consenso ainda guia o pensamento do mainstream: em situações normais, cabe à política monetária o papel proeminente de instrumento de ajuste macroeconômico. Como Arestis e Sawyer (2003b) sugerem, não é de se estranhar que, num modelo em que se parte de princípios “clássicos” como a existência da NAIRU e da hipótese de consumidores ricardianos, exista pouco papel para a política fiscal. Questionamos então essa justificativa e mostramos que, mesmo usando a estrutura teórica do modelo da Nova Síntese, não há nada que justifique o papel marginal atribuído à política fiscal a não ser aqueles que não se encontram de todo na teoria.

Blinder (2004) afirma que o período pós-2001 é uma “nova era” das políticas macroeconômicas e da política fiscal em especial, mas que ainda é difícil de caracterizar. Mesmo que seja complicado caracterizar o período corrente, seja pela dinâmica dos acontecimentos, seja pela dificuldade de se destacar uma característica marcante geral da política, é possível apontar algumas direções gerais. A crise do Japão e a dos EUA foram o principal indicativo de que o pensamento a respeito da política fiscal deveria ser revisto. Ainda que marginais, houve mudanças tanto na teoria quanto na execução da política. Com base nesse mesmo tipo de argumento, nossa proposta é mostrar em que medida a crise no mercado financeiro de 2008 contribuiu para esse movimento de repensar a política fiscal. Esse é o desafio do capítulo que segue.

III – A Crise Financeira de 2008: Impactos na visão do Novo Consenso sobre a