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São dois os instrumentos internacionais que ampliam a definição de refugiado, evidenciando outros elementos, para além dos elencados pela Convenção de 1951, que podem motivar a fuga de um indivíduo de seu país de origem, nacionalidade ou residência habitual.

O primeiro diploma a ser mencionado é a Convenção Relativa aos Aspectos dos Refugiados Africanos, adotada em 1969 pela Organização da Unidade Africana.

Nestes termos, a Convenção própria dos refugiados africanos considera não apenas os motivos expressos na Convenção de 1951, no que tange à definição dos refugiados, mas acrescenta outras razões que podem mover um demandante de refúgio.

É o que diz a Convenção, em seu artigo 1º, seção 2:

O termo refugiado aplica-se também a qualquer pessoa que, devido a uma agressão, ocupação externa, dominação estrangeira ou a acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública numa parte ou na totalidade do seu país de origem ou do país de que tem nacionalidade, seja obrigada a deixar o lugar da residência

89 JUBILUT, 2007, p. 85.

90 WHITTAKER, David. Asylum seekers and refugee in the contemporary world. London and New York: Routledge Taylor & Francis Group, 2006. p. 5.

habitual para procurar refúgio noutro lugar fora do seu país de origem ou de nacionalidade91(grifo nosso).

O que se nota é que a definição ampliada, neste caso, traz como vetor de impulsão essencialmente as guerras de descolonização ocorridas no continente africano, especialmente a partir dos anos 50.

Não passa despercebida, aliás, a carga elevada de subjetividade no conceito supra enunciado, o que se depreende de expressões vagas e maleáveis, tais como

“agressão” e “acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública”. Tudo isto, reitere-se, apenas contribui para a discricionariedade do Estado, ranço do Direito Internacional Clássico, quando diante de um pedido de refúgio.

Outro documento de importância memorável para a ampliação do conceito de refugiado é a Declaração de Cartagena, de 1984. Ela, do mesmo modo que a Convenção da Unidade Africana, inclui os motivos elencados na Convenção de 1951, contudo, como ensina CANÇADO TRINDADE, vai além da Convenção Africana92, considerando também como refugiados:

Pessoas que tenham fugido dos seus países porque a sua vida, segurança ou liberdade tenham sido ameaçadas pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública93 (grifo nosso).

Diante deste novo conceito, deve-se ter em conta o que percebe JUBILUT:

Apesar de representar uma evolução significativa, a aplicação da grave e generalizada violação de direitos humanos como motivo para o reconhecimento do status de refugiado é limitada tanto geográfica, em função de ter sido adotada por instrumentos regionais, quanto politicamente, pois os critérios para definir a caracterização de uma situação como de grave e generalizada violação de direitos humanos

91 Convenção da Organização da Unidade Africana que rege os aspectos específicos dos problemas dos refugiados da África, artigo 1º, seção 2, 1969. Grifo nosso.

92 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional de direitos humanos. v.1.

Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997. p. 322.

93 Artigo 3º. da Declaração de Cartagena (1984). Grifo nosso.

não são objetivos, deixando a questão da proteção dos refugiados mais uma vez sujeita à vontade política e discricionariedade de cada Estado94.

Não se pode ignorar, como já aludido quando na análise da Carta da Unidade Africana, o emprego de termos de difícil objetivação, bem como, a partir disto, a manutenção de um espaço para manobras discricionárias, por parte do Estado, no que pertine à concessão do refúgio.

Júlia Zanini de Gouveia PINTO destaca, indo além, que o Brasil não assinou a Declaração de 1984, embora tenha adotado o conceito elastecido de refugiado no quadro normativo interno, através da Lei 9474/9795. Em outras palavras, o conceito elastecido de refugiado foi recepcionado pelo Brasil e albergado na Lei supra mencionada, mais precisamente no artigo 1º, III do diploma normativo, que estipula a possibilidade de concessão de refúgio em razão de uma “grave e generalizada violação de direitos humanos”.

Ainda, cumpre esclarecer que a Declaração de Cartagena, diferentemente da Convenção da Unidade Africana, justamente por ser apenas uma declaração, não configurando um tratado, não constitui documento juridicamente vinculante. De todo o modo, consoante o ACNUR, a despeito disto, a maior parte dos países da América Latina incorporou os princípios da Declaração de 1984 em suas legislações nacionais, tornando-os, assim, vinculantes no plano interno.96 A rigor, a Declaração seria um exemplo de soft law, um novo paradigma no direito internacional. Na definição de Wagner MENEZES:

Documentos solenes derivados de foros internacionais, que têm fundamento no princípio da boa-fé, com conteúdo variável e não obrigatório, que não vinculam seus signatários a sua observância, mas que, por seu caráter e importância para o ordenamento da sociedade global, por refletirem princípios e concepções éticas e ideais, acabam por produzir repercussões no campo do Direito Internacional e também para o Direito Interno dos Estados.97

94 JUBILUT, 2007, p. 135.

95 PINTO, Júlia Zanini de Gouveia. Refugiados: análise das políticas públicas nacionais face ao Direito Internacional. 214 f. Monografia (Bacharelado em Direito) – Faculdade de Direito, Centro Universitário Curitiba, Curitiba, 2008. p.39.

96 UNHCR. Détermination du statut de réfugié..., 2005, p. 8.

97 MENEZES, 2005, p.147.

A chamada soft law, portanto, compõe-se de regras programáticas, de elevado valor moral intrínseco, porém que não constituem autênticas normas jurídicas internacionais, por não serem dotadas de obrigatoriedade vinculante.

Diz-se, inclusive, que a soft law constitui novo paradigma para o direito internacional, na medida em que permite uma nova concepção sobre a interação entre o direito internacional e o direito interno, de influências recíprocas, não sendo, porém, considerada nova fonte de direito internacional, justamente porque não possui força jurídica vinculante. É possível, saliente-se, a aquisição do caráter de obrigatoriedade, por parte de uma norma originariamente do tipo soft law, se incorporada pela legislação nacional de um Estado. De todo o modo, mesmo assim, a sua vinculação fica adstrita ao plano interno do Estado.

Celso Duvivier de Albuquerque MELLO acresce, paralelamente, que a soft law confere ao Estado maior flexibilidade e espaço de manobra no que concerne à aplicação da norma98. E isto, lembra o autor, para alguns juristas, como Ryuichi Ida, poderia acabar por criar uma responsabilidade também “soft” e, por este prisma, “soft law” seria uma “expressão negativa, significando que não é um ‘hard law’ e nem um não direito99”.

De toda forma, Albuquerque MELLO cita Demichel, para quem “as normas programáticas são direito e é necessário se habituar a este tipo de regra jurídica, por meio da qual se tenta construir o futuro100”.

Finaliza-se, assim, a análise do panorama geral do direito internacional dos refugiados. Seguindo os objetivos propostos para este trabalho, inclina-se à investigação da soberania estatal, bem como da sua relação com o direito internacional dos refugiados.

98 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. v. 1. 13.ed. rev. e aum.

Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 301.

99 Idem.

100 MELLO, 2001, p. 302.

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