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Definindo criança(s) e infância(s): distanciamentos e aproximações nos estudos sobre o

2 O CAMPO FAZ SEU PRÓPRIO CAMINHO

2.4 Caminhos antropológicos de encontro com as crianças: outras formas de

2.4.2 Definindo criança(s) e infância(s): distanciamentos e aproximações nos estudos sobre o

Os estudos acerca da temática da infância e sobre crianças vem sendo desenvolvido com mais frequência nas pesquisas sociais e antropológicas no Brasil. Os estudiosos da pedagogia, da psicologia e da história trazem uma produção bem mais extensa sobre o tema, sendo por muito tempo os estudos da infância priorizados por essas áreas tanto dentro como fora do Brasil. No século XIX, tendo sido estudada por variadas áreas do conhecimento, a criança foi descrita por Durkheim (1955) como um ser pré-social e a educação escolar é que iria prepará-la para a vida social. Os clássicos estudos de Jean Piaget (1896-1980) e Lev Vygotsky (1896-1934) muito contribuíram para a Psicologia da Criança; Piaget defendendo a ideia de que a criança aprende à medida que se desenvolve, com o conhecimento de dentro para fora; para Vygotsky

a criança aprende a se desenvolver na interação com outros mais experientes no seu meio sociocultural. Os estudos de Sigmund Freud (1856-1939) no campo da Psicanálise apontam para o conhecimento da infância (das crianças) como fator para compreender delitos e anormalidades de alguns adultos. De acordo com Philippe Ariès (1978) a descoberta da

infância, como o autor denomina, ocorre na Modernidade, sendo fundamentada em torno de

um sentimento de cuidado, educação e proteção, com a escolarização responsável por novos benefícios à criança e à família. Para Ariès até então, a criança era tratada como um adulto em miniatura ou pequenos adultos. Ele reconhece apenas a ideia da infância moderna, desconhecendo outras infâncias, limitando assim seu olhar acerca da temática, pois sempre houve crianças, mesmo em outras épocas, apenas a visão que se tinha delas era diferenciada. Tornando-se a infância reconhecida como uma realidade de fato apenas no século XX, entendida como um fenômeno social. Como fala Cambi, 2012:

A imagem da infância torna-se tanto mais rica e complexa com a definição de saberes, direitos e deveres a respeito das crianças. Trata-se de ideias e noções utópicas que ilustram o reconhecimento e difundem que esse é o século da criança, mas em mundo avançado e utópico, oscilante e aberto (CAMBI, 2012, p. 79).

Delalande (2011) e Mayall (2007) ressaltam que com a Convenção19 Internacional Sobre os Direitos da Criança, em 1990, a criança é entendida como titular de direitos, o que representou uma grande variação tanto no pensamento quanto nas práticas sendo visível a mudança de concepção acerca da criança: de criança guiada passa a ser reconhecida como criança-sujeito e atualmente é vista como interlocutora. A compreensão de que as crianças são plurais demonstram essa diferença devido às variadas culturas às quais pertencem e essa ideia irá se contrapor ao pensamento anterior de um modelo de criança universal. William Corsaro (2011) defende que as crianças constroem e reconstroem, juntamente com seus pares (parceiros, iguais) o entendimento do mundo que as cercam, mas também fazem isso em participação com

19 Antes da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, os padrões dos direitos humanos de todos os membros da família humana eram expressos por instrumentos legais como alianças, declarações e convenções, como padrões relacionados às questões específicas das crianças. Contudo, foi apenas em 1989 que as normas relativas às crianças foram reunidas em um único instrumento jurídico, aprovado pela comunidade internacional, e foi esclarecido de forma inequívoca o direito de cada criança, independentemente de onde nasceu ou de fatores como sexo, religião ou origem social. O corpo de direitos enumerado na Convenção são os direitos de todas as crianças em qualquer lugar. A ideia de qualquer lugar é importante. Em muitos países, as vidas das crianças são marcadas pelo conflito armado, pelo trabalho infantil, pela exploração sexual e outras violações aos Direitos Humanos. Em alguns países, por exemplo, as crianças que vivem em áreas rurais podem ter menos oportunidades de acesso à educação de qualidade ou podem ter menos acesso a serviços de saúde do que as crianças de áreas urbanas. A Convenção estabelece que essas disparidades – dentro das sociedades – também são uma violação dos Direitos Humanos. Ao apelar para que os governos assegurem os Direitos Humanos de todas as crianças, a Convenção procura corrigir esse tipo de iniquidade (UNICEF, 2004. www.unicef.org/crc/crc.htm).

os adultos importantes de suas relações. O autor chama a atenção para a visão funcionalista da cultura presente em grande parte dos trabalhos acerca da cultura de pares entre as crianças, nessa perspectiva a cultura vista como um conjunto de normas e valores que ao serem compartilhados orientariam o comportamento infantil e auxiliariam na formação das crianças em adultos. Sobre a importância do papel da cultura de pares nas relações das crianças entre si, reforça Sarmento (2005):

A cultura de pares permite às crianças apropriar, reinventar e reproduzir o mundo que as rodeia, numa relação de convivência que permite exorcizar medos, construir fantasias e representar cenas do quotidiano, que assim funcionam como terapias para lidar com experiências negativas, ao mesmo tempo que se estabelecem fronteiras de inclusão e exclusão (de gênero, e subgrupos etários, de status, etc...) que estão fortemente implicados nos processos de identificação social (SARMENTO, 2005, p. 11)

Ressaltando que as crianças precisam ser estudadas por si, continua Corsaro (2011), de que cultura de pares é um conjunto de atividades ou rotinas que são produzidas pelas crianças e compartilhadas com as demais crianças do mesmo grupo, iniciando pelas relações familiares.

As famílias desempenham um papel fundamental no desenvolvimento da cultura de pares na reprodução interpretativa. Crianças pequenas não experimentam individualmente as informações do mundo adulto; em vez disso, elas participam de rotinas culturais nas quais a informação é primeiro mediada por adultos. Nos primeiros anos da criança, a maioria das rotinas culturais adulto-criança acontecem nas famílias. Assim as culturas de pares iniciais não são decorrentes de confrontos diretos das crianças com o mundo adulto. À medida que as crianças se aventuram para longe da família, elas apontam para direções específicas, preparam-se para a interação com diferentes orientações interpessoais e emocionais, e recorrem a recursos culturais particulares, todos derivados de experiências anteriores em suas famílias (CORSARO, 2011, p. 130).

A partir do distanciamento das famílias as crianças vão construindo outras relações sociais e afetivas, laços de amizade, compartilhamento de objetos, reprodução de atitudes que elas veem dentro de casa na relação com os pais – violência, afeto – tanto com outras crianças, quanto com outros adultos que farão parte desses outros grupos sociais, na escola, na igreja, na rua. Essa socialização é defendida por Corsaro (2009) como reprodução interpretativa.

O termo interpretativa captura os aspectos inovadores da participação das crianças na sociedade, indicando o fato de que as crianças criam e participam de suas culturas de pares singulares por meio da apropriação de informações do mundo adulto de forma a atender aos seus interesses próprios enquanto crianças. O termo reprodução significa que as crianças não apenas internalizam a cultura, mas contribuem ativamente para a produção e a mudança cultural. Significa também que as crianças são circunscritas pela reprodução cultural. Isto é, crianças e suas infâncias são afetadas pelas sociedades e culturas das quais são membros (CORSARO, 2009, p. 31)

Assim sendo, as crianças interagem com a sociedade em que estão inseridas, no seu tempo, enquanto são crianças, não apenas quando tornarem-se adultos. Os fatos, acontecimentos, relações que acontecem na infância afetam as crianças e aos grupos em que elas se relacionam. As crianças como produtoras de cultura, e a infância como categoria na estrutura social; as relações sociais entre as próprias crianças e com os adultos, as crianças como protagonistas de suas vidas e como agentes sociais transformadores dos meios sociais em que estão inseridas são debates que estão sendo largamente ampliados (QVORTRUP, 2010).

Jens Qvortrup (2010) chama a atenção para os estudos sobre a infância que dê visibilidade e voz às crianças, sem ter que necessariamente fazer referência ao futuro das mesmas ou do que elas poderão vir a ser quando tornarem-se adultas. Uma diferenciação importante que é defendida pelo autor para justificar a infância enquanto categoria estrutural é a de que a criança passa por período de desenvolvimento em vários aspectos, mudando sua condição de amadurecimento: da imaturidade sexual para a maturidade (após passar pelas fases ou períodos de reconhecimento do corpo); da incompetência para a competência (após desenvolvimento de habilidades cognitivas); da incapacidade para a capacidade (após conseguir realizar atividades motoras). Enquanto que no entendimento da infância enquanto categoria estrutural o autor defende seu caráter permanente.

(...) a infância tanto se transforma de maneira constante, assim como é uma categoria estrutural permanente pela qual todas as crianças passam. A infância existe enquanto um espaço social para receber qualquer criança nascida e para incluí-la - para o que der e vier – por todo o período da sua infância. Quando essa criança crescer e se tornar um adulto a sua infância terá chegado ao fim, mas enquanto categoria a infância não desaparece, ao contrário, continua a existir para receber novas gerações de crianças (QVORTRUP, 2010, p. 637).

O desenvolvimento da infância é observado de modo diferente do desenvolvimento da criança, pois o primeiro se dá nos seus aspectos sociais (mudanças tecnológicas, sociais, taxas de mortalidade, ingresso e permanência na escolarização, guerras, desastres ambientais...), enquanto que o segundo está relacionado às características individuais de cada criança (a que se desenvolveu mais ou menos que outra). Pode-se ainda acrescentar fatores de mudança sócio- econômicas que afetam a vida das crianças, tanto quanto a dos adultos como as recentes mudanças nas sociedades ocidentais: o crescimento da força de trabalho feminina, taxas elevadas de divórcio, a educação doméstica das crianças estando aos cuidados das avós. Essas mudanças sociais são percebidas pelas crianças e vivenciadas por elas, mudando as relações internas nas famílias; a contribuição das crianças maiores no cuidado com irmãos menores de

famílias numerosas é um fator que pode ser facilmente observado em comunidades mais pobres, trazendo um amadurecimento diferenciado para essas crianças. Continuidades e descontinuidades. A infância é uma fase transitória, pois as crianças passarão por ela para tornarem-se adultos, contudo é permanente, pois não poderá deixar de ser infância, transformando crianças em adultos. Assim, tanto a velhice como a idade adulta e a infância são categorias geracionais, sofrendo os impactos dos acontecimentos sociais de modo diferenciado, quando acontecem os chamados conflitos de gerações devido aos diferentes entendimentos e vivências desses impactos e os interesses de cada geração. A geração enquanto categoria estrutural está constantemente sendo “preenchida” e “esvaziada”, nos dizeres de Sarmento (2005), pois as crianças, ao crescer sairão dessa fase da vida e outras entrarão. É uma fase assumida independente das crianças, pois são atores concretos que estão socialmente localizadas nessa categoria geracional (QVORTRUP, 2010; SARMENTO, 2005).

A geração não dilui os efeitos de classe, de gênero ou de raça na caracterização das posições sociais, mas conjuga-se com eles, numa relação que não é meramente aditiva nem complementar, antes se exerce na sua especificidade, activando ou desactivando parcialmente esses efeitos (SARMENTO, 2005, p. 363).

A fase da infância não acaba quando as crianças crescem, pois nascem crianças a todo tempo e vão sendo inseridas nessa construção social e coletiva denominada infância. O reconhecimento da diversidade da infância dá-se pelo entendimento de que as crianças ao mesmo tempo em que passam por fases de amadurecimento em diferentes áreas e processos, possuem direitos e deveres dentro de organizações sociais também diversas.

Levando em conta as questões geracionais e o impacto dos parâmetros sociais (crescimento econômico, industrialização, urbanização, saúde...) sobre as gerações poderemos nos aproximar do modo como as crianças, dentro da sua categoria, lidam com essas questões. Dentro dessa perspectiva de observação da infância, enquanto categoria estrutural, a mudança que pode ser observada, poderá ajudar as pesquisas a encontrar um entendimento por levarem em conta a criança como agente social diante das transformações sociais. Concordo com o que diz Qvortrup (2010), quando afirma que,

Nada é alterado, naturalmente, no fato de que toda criança está caminhando em direção à idade adulta; contudo, o que difere são as condições e as circunstâncias em que isso acontece. Isto é, em outras palavras, a infância, em termos estruturais, assume formas diferentes como resultado das transformações sociais (QVORTRUP, 2010, p. 642).

Jens Qvortrup (2010) defende que a infância é constituída em uma forma estrutural bem como é exposta às mesmas forças sociais que a idade adulta e que as crianças são coconstrutoras da infância e da sociedade (apud Corsaro, 2009). Acredito que ao refletirmos sobre as diferenciações sociais em que os grupos de crianças estão inseridos poderemos compreender relações bastante diferenciadas em crianças da mesma faixa etária e em localidades bem próximas. Como exemplo20 disso posso citar a realidade de crianças da periferia pobre de uma cidade como o Recife, o bairro do Jordão em comparação com outras crianças de um bairro rico da mesma cidade. Encontro diferenciações sociais dentro do mesmo bairro do Jordão, no campo de pesquisa, entre as crianças evangélicas e não evangélicas, assembleianas ou não, apresentando diferenças no modo de comportar-se, de vestir-se, de brincar, de ocupar o tempo dentro da própria casa.

A aproximação da definição de criança e infância que me ancoro nessa tese toma por base o pensamento de Qvortrup (2010) e Sarmento (2005), quanto às possibilidades da infância ser afetada pelas mudanças e variantes sociais, o que ao mesmo tempo me aproxima da definição da criança nativa evangélica, que tem suas relações sociais marcadas pelo grupo. A agência que elas exercem diante do seu grupo, é percebida de modo a entender que essa criança evangélica tem voz e ação, sua presença está marcada de forma a fazer com que ela exerça seu protagonismo nas atividades da Igreja. As relações das crianças com os adultos são de aprendiz e ao mesmo tempo de sujeito educador/evangelizador.

2.5 Pesquisas antropológicas com crianças: diversos caminhos percorridos no