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Parte I – Junod, sua obra e vida

Capítulo 2 – Usos e Costumes dos Bantos

2.2. a delimitação da “tribo tsonga”

Outras diferenças podem ser encontradas entre essas duas etnografias. Em primeiro lugar, na amplitude da análise: Les Ba-ronga é uma etnografia sobre o grupo “ronga” que segundo Junod se restringia à região da Baía da Lagoa (região do atual Maputo). Usos e Costumes dos Bantos por sua vez abrangia

etnograficamente vários grupos que Junod os identificava como “tsongas”, sendo os “rongas” um desses agrupamentos que o compunha.

Os leitores em língua portuguesa e francesa devem estranhar quando, ao invés de encontrar o nome “tsonga” no título do livro, deparam-se com o nome “banto”. Os “tsongas” seriam uma tribo, segundo o autor, pertencente à nação banta. Porém o “banto” não constitui como uma categoria de análise etnográfica no livro, a não ser em breves momentos que dizem respeito a uma idéia mais geral do “espírito banto”.

É interessante notar que a edição inglesa, original, tem o seguinte título: The Life in a South African Tribe. Portanto, sem qualquer menção ao nome do grupo estudado. Todavia, o leitor de língua inglesa não ficaria desorientado por causa disso, em seu primeiro capítulo, Junod apresenta as delimitações de seus estudos e define o grupo “tsonga” como o horizonte que lhe interessa. Sobre tal delimitação, é importante notar que ela é feita de maneira um tanto incômoda e relutante. O autor apresenta três fatores que justificam a unidade dos “tsongas”: a língua; a mente e o físico, porém veremos que só a língua se constitui como um fator definidor.

A “mente tsonga”, para Junod, é sossegada e pacífica, apesar de o missionário ter se deparado com uma disposição guerreira que acreditava ser dez vezes maior que a dos vizinhos “pedis”. O autor acredita, no entanto, que o desejo pela guerra proveio dos vizinhos e dominadores “zulus”, assim como das guerras com os europeus. O físico “tsonga”, por sua vez, é ainda mais indefinido:

Não se pode dizer que os Tsongas possuam um tipo físico uniforme e muito distinto. São, em geral, de cor castanho-

escuro, por vezes completamente pretos, muito mais escuros que os Suthus. No conjunto, o seu aspecto se assemelha ao dos Zulus. No que se refere à estatura, varia muito de um indivíduo para outro. Encontram-se Tsongas cuja face apresenta nitidamente o tipo negro: lábios grossos, nariz achatado, malares salientes; e no mesmo dia, no mesmo lugar, vêem-se outros indivíduos que pertencem ao mesmo clã e que têm a cara mais comprida, os lábios finos e o nariz pontiagudo. (1996, vol.I: 52) Ora, o terceiro fator é a língua, a única que nesta diversidade presente entre os “tsongas” pôde oferecer a Junod a base para a definição de sua unidade. De um lado, tratou de mostrar a distinção entre a língua tsonga e as vizinhas. “Algumas pessoas que não tinham estudado o tsonga com cuidado afirmaram que se tratava simplesmente de um dialeto zulu. É inexato. O tsonga é completamente diferente do zulu e do suthu, embora seja estreitamente aparentado com eles, principalmente com o zulu.” (1996, vol.I: 48) De outro lado, teve de argumentar pela unidade dos “tsongas” frente às variações lingüísticas, pois aponta a existência de seis dialetos. Para o autor a unidade lingüística

parece mais maravilhos[a] ainda já que a tribo tsonga é formada por populações de origens diversas que invadiram a região por diferentes lados. A única explicação plausível destes dois fatos, aparentemente contraditórios, é que os invasores adotaram a língua da população primitiva e não a alteraram a ponto de contrariar a sua evolução natural. Se isto é exato, a língua tsonga deve ser considerada como o elemento mais antigo da vida da tribo, e podemos então compreender como esta lhe deve a sua unidade. (1996, vol.I: 50)

Segundo Harries (1981), a fundamentação pela unidade lingüística tem sua base na visão romântica européia provinda do nacionalismo. Para o autor, a realidade européia, o universo cultural de origem de Junod, marcada pelo avanço “civilizador” que supunha a transformação da vida de amplas camadas

da população européia, pela a homogeneização das línguas e pelo avanço de instituições de caráter universalista tais como a escola pública, marcou fundamentalmente a preocupação antropológica do missionário. A expansão imperial européia colocara no foco das atenções as relações entre povos e culturas, o que estava na ordem do dia de um debate que envolvia homens de Estado, políticos, administradores coloniais, instituições religiosas e filantrópicas; por outro lado, a industrialização e a urbanização transformavam radicalmente os “usos e costumes” das massas que abandonavam progressivamente um estilo de vida camponês. Situação não muito diferente da vista pelo missionário no sul da África, onde os trabalhos nas minas de Natal criou um grande deslocamento de pessoas, principalmente no sul de Moçambique (Harries, 1994)

Se o critério adotado para delimitação do grupo “tsonga” foi considerado por Harries importado e polêmico, Monnier (1995) mirou no próprio nome “tsonga” usado na definição do grupo estudado por Junod. Para Monnier, “tsonga” foi uma escolha que visava a submissão do grupo aos missionários, pois outro nome possível para denominar o grupo, Mabuyandléla, era um nome usado pelos “zulus” e significaria “aquele que abre o caminho” – pela habilidade dos “tsongas” para a guerra. Porém, ainda segundo Monnier, esse aspecto guerreiro não era interessante ser incentivado aos olhos da missão. Como vimos, Junod mostrou-se constrangido ao admitir o grande talento dos “tsongas” para a guerra e ao mesmo tempo apontou para uma natureza pacífica desse grupo, que teria sido corrompida pela influência dos “zulus”. A argumentação de Junod, de fato, é frágil. Sua justificativa remonta a dados

anteriores ao domínio “zulu” (1820, segundo Junod), o que não foi vivido por este e nem pelos seus informantes. Portanto, sua fundamentação está no fato de toda a terminologia militar ser de origem zulu. Fato que pode ser explicado, creio, pelo domínio militar destes.

De outro lado, Junod não ignorou que a escolha pelo termo “tsonga” para definir esse grupo seria delicada. “Como veremos, não há verdadeira unidade nacional entre os Tsongas. Mal têm consciência de que formam uma nação bem definida, e nem sempre têm um nome comum para a designar”. (p.34) O nome significaria “oriente” e teria sido dado pelos “zulus” por causa da origem migratória dos “tsongas”. Esse nome, no entanto, incomodava aqueles que o recebiam, consideravam-no um insulto. De toda a forma, Junod insistiu: “Reconheço que a palavra ‘Tsonga’ não goza de um grande favor e não é inteiramente satisfatória, mas visto que significa na sua origem ‘povo do Leste’ e que a tribo vive na parte oriental da África meridional, será naturalmente recebida sem grande dificuldade” (1996, vol.I: 35)

O fato da unidade do grupo dos “tsongas” ser forjada a partir da língua e da própria denominação do grupo ser questionada expõe um problema inicial para Junod que o perseguirá durante a obra. Os “usos e costumes” descritos pelo missionário não constituem um todo, um sistema contingente. Pelo contrário, muitos dos ritos e práticas são compartilhados por outros grupos vizinhos, como os “zulus”, os “pedis” e os “suthus”. Sendo recorrente a extensão da análise etnográfica a esses grupos como aponta o próprio Junod: Não quero afirmar nada acerca das outras tribos sul- africanas, contudo, verificar-se-á imediatamente que a maior parte dos costumes que descrevo aqui estão mais ou menos espalhados em todo o sul do continente, e o que

escrevo a respeito dos Tsongas aplica-se mais ou menos aos Shutus, aos Zulus e mesmo aos Nyanjas do lago Niassa e às tribos da África Central. Penso, pois, que as conclusões a que chego neste estudo podem ser úteis, não somente aos que se interessam pela própria tribo tsonga, mas a todos africanistas ou bantoístas. (1996, vol.I: 26) Essa extensão da análise para além dos “tsongas” é um elemento importante das variações entre a primeira e a segunda edições de Life in a South African Tribe. Entre 1913 e 1927, ano da segunda edição, Junod pôde estudar descrições feitas por outros missionários, etnógrafos e administradores coloniais dos grupos vizinhos e mesmo visitar áreas desconhecidas por ele, ampliando, assim, o alcance de sua análise (Junod, 1934: 61). O termo referente a banto no título, como dissemos, está presente na edição francesa (Moeurs et coutumes des Bantous: La vie d’une tribu sudafricaine. 1936), que se baseou na segunda edição inglesa de 1927, posterior à ampliação dos dados etnográficos de Junod. Creio que esse fato pode justificar a alteração do título na edição francesa e na posterior edição portuguesa, mas se deve lembrar que essas traduções foram realizadas após a morte de Junod, em 1934. Ou seja, a alteração no título pode muito bem ter sido realizada por razões editoriais e não etnográficas.