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O dano emocional, seja ele definido como uma lesão à tranquilidade emocional, ou como dor, sofrimento, e outros estados de mal-estar emocional ou psicológico da vítima, pode ser resultante de uma infinidade de condutas, muitas das                                                                                                                

136 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. American Law Institute. Restatement (Third) of Law, p. 136,

quais plenamente legitimadas pelo nosso ordenamento jurídico, a exemplo da demissão de um empregado ou o término de um relacionamento, sem contar que há uma intensa proteção constitucional aos direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, que invariavelmente devem ser considerados pelo julgador ao determinar a reparação de danos morais.

Não por menos que se a doutrina considera inviável uma enumeração exaustiva dos danos morais possíveis, uma vez que protegem o ser humano como unidade ontológica e psicossomática.137

Além do mais, também se espera da vida em sociedade um certo grau de abalos à estabilidade emocional, não sendo lícito esperar que todo e qualquer transtorno dê azo à indenização.

Levando-se em conta que já está firmado em nosso sistema o princípio da ampla indenizabilidade dos danos morais, é preciso definir em quais circunstâncias o dano moral é juridicamente relevante, a justificar a responsabilidade civil de seu causador. É preciso lembrar que não há reparação sem um real prejuízo, assunto já abordado na subseção 2.2, que trata justamente dos elementos essenciais ao instituto.

Em face a esse problema, e a fim de limitar o escopo da responsabilidade decorrente de dano moral intencional, o direito norte-americano faz uso de determinadas exigências, criadas pela jurisprudência e inexistentes para a reparação de um dano corporal, que dizem a respeito da intensidade do dano e da reprovabilidade da conduta de seu causador. O dano intencionalmente infligido deve ser severo, e a conduta que o ocasionou deve ser extrema e ultrajante, simultaneamente. Procede-se, pois, a uma análise tanto da conduta do causador do dano quanto da intensidade do dano.

É de se lembrar, aliás, que a Common Law separa, em um tort próprio, os ataques à honra e reputação, denominando-os de libel e slander, que juntos representam a defamation138, de modo que não se enquadram nas regras da “emotional liability”, visto que a reparação não se dá em razão do sofrimento emocional.

                                                                                                               

137 CAHALI, Yussef Said. Dano Moral. 2ª Edição, revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 1999, p. 57.

138 ZWEIGERT, Konrad; KÖTZ, Hein. Introduction to comparative law. Oxford: Clarendon Express,

Dessa forma, considerado o universo quase ilimitado de condutas humanas potencialmente causadoras de dano moral, somente um número bem limitado delas possibilitaria a indenização.

De início, e tratando-se da qualificação do dano moral intencional indenizável, é necessária a distinção do conceito de “severidade”, requisito este hoje necessário para a existência de “liability”, e “seriedade”, que é reservado às hipóteses de negligência. É o caso de trazer à baila dois importantes precedentes, que ilustram o desenvolvimento jurisprudencial acerca do tipo de dano moral que possibilita o surgimento da responsabilidade.

O primeiro é o caso Rodrigues v. State of Hawaii [472 P.2d 509 (1970)], que definiu o dano emocional “sério” como aquele que “pode ser encontrado na situação em que um homem razoável, normalmente constituído, seria incapaz de lidar adequadamente com o estresse mental ocasionado pelas circunstâncias do caso”. 139

Como se vê, o conceito de “seriedade” é bastante amplo, uma vez que o seu significado se relaciona a uma situação emocional ou mental além da normalidade ou do ordinário – traduzida no plano imaterial pela expressão “razoável”.

O dano sério pode representar verdadeiro sofrimento mental ou emocional. Contudo, o Restatement (Second) of Torts, em seu comentário “j” ao parágrafo 46, já definia que “[o] direito só intervém onde o dano (moral) infligido é tão severo que não se espera que um homem razoável pudesse suportá-lo”. 140

O motivo pelo qual o direito norte-americano limita a indenização do dano moral “sério” é a possibilidade de conflitos entre os torts e importantes “policies or principles” da sociedade. O comentário “c” do parágrafo 46 do Restatement (Third) of Torts oferece um bom exemplo: ainda que a Primeira Emenda (à Constituição estadounidense) não impeça a responsabilidade, pode a proteção à liberdade de expressão, a depender do caso, limitar, ou inclusive impedir a indenização de dano moral infligido intencionalmente.

É nessa linha que a Supreme Court of Hawaii, no caso em tela, considerou que certas aflições emocionais, ainda que consideradas sérias e fonte de sofrimento                                                                                                                

139 No original: “may be found where a reasonable man, normally constituted, would be unable to adequately cope with the mental stress engendered by the circumstances of the case”.

140 No original: [t]he law intervenes only where the distress inflicted is so severe that no reasonable

da vítima, podem possuir efeitos benéficos, não sendo tarefa do direito impedir o “prime mover” da sociedade, ou estender a sua proteção à padrões neuróticos ou sensibilidades particulares.

A fim de diferenciar o ordinário do excepcional, é necessário recorrer aos standards do direito, que são de aplicabilidade geral. Nesse sentido, Holmes oferece a definição mais precisa:

O direito não leva em conta as infinitas variedades de temperamento, intelecto, e educaçãoo que fazem as características internas de um determinado ato tão diferente em diferentes indivíduos. Ele (o direito) não tenta ver o homem como Deus os vê, por mais de uma suficiente razão. Em primeiro lugar, a impossibilidade de bem mesurar o poder e a limitação humana é muito mais clara que a asserção o seu conhecimento da lei, (esta) que se pensava como medida para o que se chama de presunção de que todo homem conhece a lei. Mas uma explicação mais satisfatória é que, quando os homens vivem em sociedade, uma certa conduta mediana, um sacrifício das peculiaridades individuais que passam um certo ponto, é (uma medida) necessária para um bem-estar geral.141

Conforme o comentário “a” do parágrafo 46 do Restatement (Third) of Torts, são esses limites que mantêm hígida a responsabilidade por dano moral intencional, uma vez que impedem uma abrangência desmedida do instituto, permitindo a apropriada judicialização dos casos importantes.

Em relação ao dano moral “severo” para o direito norte-americano, o seu conceito pode ser melhor compreendido das conclusões constantes na decisão do caso Smith v. Amedisys Inc. [298 F.3d 434 (2002)], que versou sobre o dano moral resultante de assédio sexual, retaliação e discriminação racial e de gênero em ambiente de trabalho.

Smith alegava que, durante o período de quase um ano em que trabalhou na empresa Amedisys Inc., teria sido submetida a assédio sexual por parte de seu imediato supervisor, o chefe de operações, bem como por parte do chefe do setor financeiro e do chefe executivo. O assédio, conforme o relato de Smith, incluía                                                                                                                

141 No original: “The law takes no account of the infinite varieties of temperament, intellect, and

education which make the internal character of a given act so different in different men. It does not attempt to see men as God sees them, for more than one sufficient reason. In the first place, the impossibility of nicely measuring a man’s power and limitations is far clearer than that of ascertaining his knowledge of law, which has been thought to account for what is called the presumption that every man knows the law. But a more satisfactory explanation is, that, when men live in society, a certain average of conduct, a sacrifice of individual peculiarities going beyond a certain point, is necessary to the general welfare”. HOLMES, Oliver Wendell The Common Law. Editado por Mark DeWolfe Howe. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 1967, p. 56.

comentários de cunho sexual e racial, beijos, abraços e toques realizados contra a sua vontade, e a exigência da chefia de que ela vestisse saias curtas, blusas decotadas, roupas justas e salto alto.

A United States Court of Appeals for the Fifth Circuit, considerando que, pelas regras do Estado da Louisiana, “[o] dano moral sofrido deve ser tal que não se espera que uma pessoa razoável o suporte” e que a responsabilidade “surge somente quando a angústia mental ou o sofrimento é extremo” 142, entendeu que os fatos apresentados por Smith seriam insuficientes para evidenciar um severa aflição emocional, de modo a configurar um dano moral indenizável, porquanto não seriam “unendurable”, ou seja, absolutamente insuportáveis.

Disso, pode-se definir uma moldura para o conceito de dano moral “severo” no direito norte-americano. O dano intencional deve ser “extremo” e “insuportável”, para que dele surja o dever de indenizar, noção esta acolhida no comentário “j” do parágrafo 46 do Restatement (Third) of Torts.

No direito brasileiro, o entendimento jurisprudencial não diferencia o dano moral “sério” do “severo”, senão para fins de prescrição143. O “threshold” de nossos tribunais é significativamente mais flexível comparado à todas restrições estampadas no Restatement (Third) of Torts, tanto que seria impensável uma solução similar àquela do caso Smith v. Amedisys Inc. [298 F.3d 434 (2002)].

Como já se disse, a apreciação do dano moral no direito brasileiro continua a ser “in concreto” 144, tendo a jurisprudência tão-somente vetado a indenização aos “meros dissabores” da vida, tirando tais hipóteses do próprio conteúdo do dano moral. De resto, cabe ao julgador definir se houve real lesão emocional daquele que se diz ofendido.

É possível afirmar, dessa forma, que os limites para o dano moral indenizável no direito brasileiro seriam próximos ao conceito de dano moral “sério”                                                                                                                

142 No original: “[t]he distress suffered must be such that no reasonable person could be expected to

endure it” e “arises only where the mental anguish or suffering is extreme”.

143 Tal é o caso do acórdão no Recurso Especial nº 1.002.009/PE, julgado em 12 de fevereiro de

2008, em que o Superior Tribunal de Justiça decidiu que “a prescrição quinquenal prevista no art. 1º do Decreto-Lei n. 20.910/32 não se aplica aos danos morais decorrentes de violação a direitos de personalidade, que são imprescritíveis, máxime quando se fala da época do Regime Militar, quando os jurisdicionados não podiam buscar a contento a suas pretensões”. Não obstante a terminologia empregada pelo Ministro-Relator Humberto Martins, de que a morte decorrida da tortura seria fato “sério”, trata-se de, na verdade, de fato “severo”, no significado empregado neste trabalho.

144 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo LIII. 3ª Edição.

no direito norte-americano, afastando, por conseguinte, a moldura para o dano moral “severo”. Assim, é compatível a utilização de dois critérios criados pela jurisprudência estadounidense no direito brasileiro, com o fim de delimitar as hipóteses de dano moral indenizável, desde que devidamente ajustados à nossa realidade jurídica.

O primeiro critério diz a respeito da necessidade de uma análise objetiva das circunstâncias que teriam ocasionado o dano, de modo a medir a sua gravidade. Estariam excluídos, por serem fatores meramente subjetivos, sensibilidades ou neuroses particulares, exceto se o autor do dano delas se aproveitou.

O segundo diz a respeito de possíveis conflitos entre a indenização por dano moral e as diretrizes e princípios importantes na sociedade. Em razão da própria constitucionalização da matéria, o filtro passa a ser exclusivamente a dignidade da pessoa humana, de modo que o dano que em nada a afeta não se presta à indenização, pois inexistiria efetivo prejuízo à tranquilidade emocional ou a dignidade do ofendido.

Incompatível, por consequência, a utilização dos critérios de “severidade” em nossa responsabilidade civil, visto que estariam em conflito direto a ampla proteção da dignidade humana estampada em nossa Constituição.

Quanto à análise da conduta do causador do dano, cabe notar que no Brasil é possível inclusive o dano moral presumido, a exemplo dos casos de inscrição indevida nos cadastros de inadimplentes.

Sobre o assunto, destaca-se a doutrina de Rui Stocco:

Mas uma coisa é certa. A doutrina evoluiu no sentido de exigir a prova do dano moral quando não esteja in re ipsa, ainda que essa prova seja presuntiva e possa ser buscada por outros meios mais dúcteis e não se a exija direta, tal como ocorre com o dano material.

Significa dizer, em resumo, que o dano em si, porque imaterial, não depende de prova ou de aferição do quantum.

Mas os fatos e os reflexos que irradia, ou seja, a sua potencialidade ofensiva, dependem de comprovação ou elo menos que esses reflexos decorram da natureza das coisas e levem à presunção segura de que a vítima, em face das circunstâncias, foi atingida em seu patrimônio subjetivo.145

                                                                                                               

145 STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil: doutrina e jurisprudência. Tomo II. 9ª Edição.

Vê-se, portanto, que a doutrina brasileira, meramente para fins de prova, também leva em conta as circunstâncias do dano moral, e que, consideradas em si mesmas, não estão contidas no conteúdo do dano moral.

O direito norte-americano, em contrapartida, estabeleceu como requisito à indenizabilidade do dano moral a própria presença de determinadas circunstâncias, que dizem respeito à conduta do causador do dano.

É nesse sentido que o comentário “d” do parágrafo 46 do capítulo 8º do Restatement (Third) of Torts diz ser indispensável a presença concomitante de conduta “extreme” e “outrageous” por parte do autor do dano. Mister ressaltar que definição de extremo, neste ponto, é diferente da utilizada na gradação da intensidade do dano, podendo ser entendida como uma conduta pouco comum (unusual).

Não bastaria, dessa forma, uma conduta meramente ultrajante (como, por exemplo, a infidelidade marital) ou meramente extrema (como a prática de um esporte de risco), para caracterizar o dano moral indenizável.

É que somente o aspecto da “intenção” seria insuficiente para avaliar a utilidade social da conduta do causador do dano moral. Trata-se, pois, de mais um mecanismo de proteção das liberdades individuais à judicialização dos possíveis danos morais dela resultante.

Permite-se, assim, “insults and indignities” voltadas justamente a causar abalos emocionais, porque tais condutas são esperadas da vida em sociedade. Não sendo possível formular uma regra geral ou categorias específicas de condutas extremas e ultrajantes, a jurisprudência norte-americana faz uso dos precedentes em que as cortes submeteram à conduta do causador do dano à análise do júri, para determinar se estaria enquadrada como “extreme and outrageous”.

Como a responsabilidade civil extracontratual no direito brasileiro tem como elemento principal a presença de “ato ilícito”, a conduta do causador do dano não deixa de ser menos reprovável em razão do modo que foi realizada, quando o dano for juridicamente relevante. Nesses casos, a inserção dos requisitos de conduta extrema e ultrajante, para fins de responsabilidade civil por dano moral, seria incompatível com o nosso sistema.

Ressalta-se que, embora o inadimplemento de obrigação contratual, quando levado a cabo pelo devedor, também seja considerado ato ilícito, pois ocasiona dano

aos seus participantes146, a jurisprudência brasileira tem rechaçado possíveis danos morais dele decorrentes.

Isso porque os elementos subjetivos do negócio jurídico somente ganham relevância quando razão determinante do ato ou sob a forma de condição, não sendo, em regra, valorizados pelo ordenamento jurídico147. Não obstante, o aspecto não-patrimonial do inadimplemento contratual se traduz numa não-valorização ou frustração de ganho148, ou seja, lucros e vantagens, não sendo hipótese de dano moral.

Quanto ao descumprimento dos deveres secundários por uma das partes, considera-se que a violação da boa-fé não deve ser valorizada como algo psicológico149, uma vez que os deveres anexos, que representam um plus, integram o fim da atribuição do negócio jurídico, sendo, eles mesmos, “certeza objetiva”. Assim, o descumprimento de deveres anexos são insuficiente para como causa de dano moral, sendo a sua desatenção motivo de simples adimplemento insatisfatório ou imperfeito150.

Destaca-se, por oportuno, que, indo além da divisão da responsabilidade contratual e extracontratual, Clóvis do Couto e Silva faz uso da expressão “actes existentiels” (atos existenciais) para os “contratos” que forem necessários ou indispensáveis para a vida em sociedade, em que não há indagação quanto ao elemento da vontade individual. São denominados pelo direito inglês de “necessaries” 151.

Questiona-se se os deveres resultantes dos contatos sociais seriam realmente contratuais “au sense propre du terme”, ou se deveriam receber o tratamento de um “acte matériel”(ato-fato). Sendo aceita última hipótese, os atos

                                                                                                               

146 USTÁRROZ, Daniel. Responsabilidade Contratual. 2ª Edição. Revista. Atualizada. Ampliada. São

Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 181.

147 COUTO E SILVA, Clóvis do. A Obrigação como Processo. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Editora FGV,

2006, p. 40-41.

148 USTÁRROZ, Daniel. Responsabilidade Contratual. 2ª Edição. Revista. Atualizada. Ampliada. São

Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 183.

149 COUTO E SILVA, Clóvis do. A Obrigação como Processo. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Editora FGV,

2006, p. 41.

150 COUTO E SILVA, Clóvis do. A Obrigação como Processo. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Editora FGV,

2006, p. 41.

151 COUTO E SILVA, Clóvis do. Principes Fondamentaux de la Responsabilité Civile en Droit Brésilien et Comparé. Paris: Faculté de Droit et Sciences Politiques de St. Maur (Paris XII), 1988, p. 36-37.

existenciais estariam enquadrados no campo da responsabilidade civil extracontratual (responsabilité civile delictuelle) 152.

Nesse sentido, considera-se plenamente aceitável a ocorrência de dano moral por inadimplemento contratual, uma vez que, por serem vinculados a aspectos verdadeiramente essenciais da vida social, os efeitos dos atos existenciais ingressam na esfera da própria dignidade humana, desde que haja efetivo prejuízo à tranquilidade emocional.

Contudo, especialmente se tratando de relações de consumo, a exemplo do entendimento da Nona e Décima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul153, a jurisprudência reconhece o dano moral resultante de conduta

ilícita dos fornecedores, em razão de recusa ou demora na prestação de assistência técnica ou substituição de produto com vício, situação em que haveria quebra do princípio da confiança e ofensa às regras norteadoras da matéria consumerista. Não obstante, tais condenações, embora a título de danos morais, mais parecem visar uma punição dos fornecedores pela indiferença no cumprimento dos deveres legais estabelecidos pelo Código de Defesa do Consumidor, do que propriamente uma indenização por efetivo dano à dignidade do consumidor lesado.

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