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4. Caracterização da inalegabilidade de nulidades formais

4.2. Delimitação negativa: breve distinção face às figuras afins

Tendo em consideração que da nossa parte reconduzimos o problema da inalegabilidade de nulidades formais ao instituto do abuso do direito160, cremos que esta se poderá facilmente confundir com outras modalidades de exercício inadmissível de posições jurídicas, como sejam o venire contra factum proprium e o tu quoque. Por estes motivos avançaremos de seguida com algumas considerações que permitem, em nossa opinião, distinguir a situação de inalegabilidade de nulidade formal, de outras modalidades de abuso do direito161.

4.2.1. Distinção face ao venire contra factum proprium

No que toca ao venire contra factum proprium, este caracteriza-se pela inadmissibilidade de, em certos casos, se praticarem comportamentos lícitos, porém contraditórios. Os comportamentos são contraditórios e como tal inadmissíveis (apesar de lícitos), em virtude o princípio da tutela da confiança162.

De acordo ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, com o qual concordamos, a base legal para a aplicação da doutrina da confiança de forma a vedar situações de venire contra

160 Como vimos anteriormente no presente estudo, nem todos os doutrinadores remetem a situação da inalegabilidade de invalidades formais ao instituto do abuso do direito.

161

Tal como acima referido, retomamos aqui a posição por nós anteriormente defendida em “A inalegabilidade de nulidades decorrentes da preterição de forma legalmente exigida”, in Revista de

Direito Civil, N.º 0, Almedina, 2015. Porém, na presente dissertação, desenvolveremos a nossa posição

recorrendo a um percurso argumentativo diverso e reforçado. 162

Salvaguardada fica a possibilidade de o venire contra factum proprium assentar numa circunstância justificativa. Isto é, em que os comportamentos são contraditórios, porém não representam uma situação de exercício inadmissível de posições jurídicas.

ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO diz ainda neste contexto que, substituir a referência à boa-fé pela menção “confiança” permite um melhor critério de decisão pois um comportamento não pode ser contraditado quando este seja de modo a suscitar a confiança das pessoas e como tal, trata-se de imputar aos respectivos autores as situações de confiança que tenham assumido. Para a concretização dessa “confiança” alude a vários requisitos, que são: a situação de confiança, justificação para essa confiança; investimento de confiança e a imputação da confiança – critérios que explicaremos adiante, in Tratado de

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factum proprium, reside no artigo 334.º do Código Civil e dentro dos elementos nele

previstos, na boa-fé163

Após a análise de variada jurisprudência nacional, é possível constatar que em inúmeros casos os Tribunais recorrem à modalidade de venire contra factum proprium para paralisar a invocação de nulidades decorrentes da preterição de forma legalmente exigida. Tal posicionamento da jurisprudência não poderá merecer a nossa concordância, uma vez que em nossa opinião a situação de inalegabilidade de nulidades formais se distingue da situação de venire contra factum proprium.

O Professor ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO distingue também estas duas modalidades de exercício inadmissível de posições jurídicas164, sustentando a sua posição nos seguintes argumentos:

- Para este autor na inalegabilidade de nulidades formais deve exigir-se um dever de indagação e cautela mais fortes por parte de quem beneficia da inalegabilidade da nulidade (do que aquele que se exige na situação de venire contra factum proprium por parte de quem beneficia da proibição de venire). Relativamente a este critério não alinhamos na totalidade com a posição defendida por este ilustre Professor, como veremos melhor adiante, pois defendemos que para haver lugar à inalegabilidade de nulidades formais basta que se demonstre a situação objectiva de confiança.

ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO aponta ainda um factor relevante e que, no contexto da inalegabilidade de nulidades formais é bastante ponderado, sendo este a necessidade de respeito efectivo pelo escopo que a forma legalmente prescrita pretende prosseguir.

Ora, pela nossa parte entendemos que a inalegabilidade de nulidades formais assemelha- se à situação e venire contra factum proprium (daí a importância de proceder à sua delimitação face ao mesmo), funcionado, em nossa opinião, como um subtipo do venire

contra factum proprium. Contudo, a inalegabilidade de nulidades formais apresenta

uma autonomia dogmática face à situação de venire contra factum proprium uma vez

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In Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo IV, Almedina, Coimbra, 2007, p.294. 164 In Da Boa-Fé no Direito Civil, Almedina, 3ª reimpressão, 2007, pp.719-860.

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que a mesma apenas se aplica às invalidades decorrentes da preterição da forma legalmente exigida.

Vejamos, o que nossa opinião aproxima e afasta estas duas modalidades de exercício inadmissível de posições jurídicas.

Relativamente às semelhanças entre a inalegabilidade de nulidades formais e o venire

contra factum proprium, podemos referir que, em nossa opinião, ambas as modalidades

pretendem evitar a frustração da confiança da contraparte merecedora de tutela.

Ademais, também em ambas as modalidades cremos que, estruturalmente, o que se pretende evitar é a prática de comportamentos contraditórios susceptíveis de frustrar a confiança criada na contraparte merecedora de tutela.

Quanto às diferenças entre a inalegabilidade de nulidades formais e o venire contra

factum proprium, podemos referir que, em nossa opinião, na situação de inalegabilidade

de nulidades formais o que está em causa não são comportamentos lícitos contraditórios, mas antes a contradição entre dois comportamentos em que pelo menos um deles é ilícito (uma vez que houve a violação de uma regra de forma).

Além do acima exposto, a inalegabilidade de nulidades formais tem ainda a especificidade de dizer respeito a apenas a situações em que há um desrespeito pelas regras de forma legalmente prescritas. Ou seja, na situação de inalegabilidade de nulidades formais, tem que ter lugar uma ponderação rigorosa sobre o afastamento de regras injuntivas, que são aquelas que exigem forma especial para determinados negócios jurídicos. Também por esta razão, a inalegabilidade de nulidades formais, apesar de poder ser considerada um subtipo de venire contra factum proprium, merece um tratamento diferenciado face a este último.

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4.2.2. Distinção face ao tu-quoque

Relativamente ao tu-quoque165, este exprime a regra geral pela qual a pessoa que infrinja uma norma jurídica não pode depois sem abuso:

1- aproveitar-se da situação daí recorrente; 2 - exercer a posição violada pelo próprio;

3 - ou então exigir, a outrem o acatamento da situação já violada.

No âmbito da presente dissertação apenas importará analisar a primeira premissa, isto é, quem viole uma norma jurídica não pode depois sem abuso prevalecer-se da situação daí decorrente166.

Numa primeira análise, poder-se-á confundir a inalegabilidade de nulidades formais com o tu quoque, ou entender-se que esta representa um subtipo de tu quoque (e não do

venire contra factum proprium como vimos acima).

Esta possível e compreensível confusão reside na semelhança que existe entre estas duas modalidades de abuso do direito. Isto é, nos casos em que a parte que gera a invalidade seja a mesma que posteriormente a invoque, estaríamos perante um acto ilícito por violação de uma norma jurídica, violação essa da qual depois se pretende prevalecer.

Nesta medida, sendo a violação de uma regra de forma um acto ilícito, a situação de inalegabilidade poderia encaixar, nesta medida, no tu quoque (e não do venire) sendo sujeita aos seus pressupostos.

Para justificar a situação de inalegabilidade de nulidades formais como sendo um subtipo do tu quoque e não de venire, poder-se-ia assim dizer que no venire contra

factum proprium o que está em causa são dois comportamentos lícitos, ainda que

contraditórios. Por sua vez, no tu quoque os comportamentos resultantes da violação de

165 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo IV, Almedina, Coimbra, 2007, p.327.

166 Tal como acima referido, retomamos aqui a posição por nós anteriormente defendida em “A inalegabilidade de nulidades decorrentes da preterição de forma legalmente exigida”, in Revista de

Direito Civil, N.º 0, Almedina, 2015. Porém, na presente dissertação, desenvolveremos a nossa posição

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uma norma jurídica, obviamente, são ilícitos. Ora, se uma determinada declaração não respeitar a forma legalmente prescrita, esta actuação por violar uma norma jurídica, seria ilícita, e como tal poderia parecer mais correcto tratar a inalegabilidade de nulidades formais como sendo um subtipo do tu quoque e não de venire contra factum

proprium.

Porém cremos que assim não é, ou seja, da nossa parte, não nos parece correcto afirmar que a inalegabilidade formal é um subtipo do tu quoque e não de venire contra factum

propium.

Efectivamente, no tu quoque, na premissa por nós analisada nesta sede, existe um acto

ilícito, que é a violação de uma norma jurídica (e posteriormente a tentativa de

aproveitamento dessa situação por quem a causou). Ora, a falta de forma legalmente exigida é também ela, em princípio, um acto ilícito. Porém, na situação de inalegabilidade de nulidade formal (ao contrário do tu quoque) não importa, em nossa opinião, apurar se quem alega a nulidade foi quem a originou. Isto é, não importa apurar se quem violou a norma legal (desrespeito pela forma legalmente prescrita) foi quem depois pretendeu aproveitar-se desse vício. Na inalegabilidade de nulidades formais, o que importa apurar, em nossa opinião, é se existe, ou não, uma relação de confiança merecedora de tutela.

Assim, com a inalegabilidade de nulidades formais, o objectivo é tutelar a confiança da parte contra quem se invocou a nulidade. Ora, também no venire contra factum

proprium o que se pretende tutelar é a confiança da parte que sofreu com a actuação

contraditória de outrem. Ou seja, tanto na inalegabilidade de nulidades formais como no

venire contra factum proprium o que se pretende tutelar é a confiança daqueles que

sofreram com a actuação de outrem.

Em nossa opinião, o princípio subjacente a estas duas modalidades de exercício abusivo de posições jurídicas é o princípio da tutela da confiança.

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Por sua vez, no tu quoque o que está em causa não é em primeira linha o princípio da tutela da confiança167 (da parte que sofreu com a actuação de outrem) mas antes o princípio da materialidade subjacente. Este princípio obsta a que o próprio incumpridor da norma jurídica se aproveite dela. Isto é, no tu quoque não releva em primeira linha a protecção da contraparte (como sucede na inalegabilidade de nulidade formal e no

venire contra factum proprium), releva antes a proibição de o próprio violador de uma

norma jurídica se aproveitar de certa vantagem.

Pelo exposto, como havíamos referido, somos da opinião que a inalegabilidade de nulidades formais deve ser reconduzida a um subtipo de venire contra factum proprium e não de tu quoque.

5. Dificuldades jurídico-científicas da modalidade da inalegabilidade de nulidades