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Das demandas comuns a hormonioterapia

5. A Vivência Travesti na Busca por Saúde: Dores e Lutas

5.1 Sobre a Construção do SUS e a Atenção Primária em Saúde

5.3.1 Das demandas comuns a hormonioterapia

Os hormônios femininos são uma das ferramentas tecnológicas mais utilizadas pelas travestis para alcançar traços femininos. Os avanços nas

tecnologias biomédicas permitem atualmente a alteração dos caracteres sexuais secundários mediante hormonioterapia. Como ressaltou Benedetti (2005), tratamentos hormonais parecem constituir um ritual de passagem através do qual o devir travesti é conquistado. Os hormônios femininos são facilmente encontrados em qualquer farmácia. Basicamente, há três tipos de hormônios: os comprimidos, os injetáveis e os adesivos. As travestis não costumam utilizar somente um desses tipos, mas, sim, combiná-los das mais variadas formas (Bento, 2010).

A falta de orientação quanto à utilização dos hormônios apareceu frequentemente nos discursos como uma necessidade de tratamento hormonal adequado. Vejamos alguns deles:

A gente vai vendo as mais antigas que tomavam. Pronto, fulana já é mais antiga do que eu, vou nela. Aí ela toma só 1, eu tomo 5 pra ver um efeito mais rápido. Em você pode crescer o peito, já em mim pode ser outra parte do corpo. Logo quando eu comecei a tomar hormônio, eu tomava 8 injeções em um mês de hormônio, então é uma dosagem absurda. Uma mulher só toma 1 num mês, ou então de 2 em 2 meses. Aí eu fui diminuindo, agora é 1 num mês. (...) E pode ser também que ataque os rins. Ou o fígado, tá entendendo? Então altas dosagens. E como a gente não frequenta ambulatório pode ser que já tenha atacado. A gente não-não-vai! (Fragmento de entrevista - Julia Roberts)

Por isso eu aconselho, quem tiver pensando em tomar hormônio, não tome assim, na louca. Porque tem travestis,

Nathalia, que tomam de 8 em 8 dias, tomam de 3 em 3 dias, tem outras que tomam de 1 mês, de 15 em 15 dias. É uma coisa relapsa. Porque hoje em dia a saúde pras travestis não é bom. (Fragmento de entrevista - Angelina Jolie)

Olhe, eu vi uma bomba caseira, que isso pra mim é o coquetel molotov. Diane, perlutan, gestadinona e androcur, 4 hormônios, toda semana ela tomava essas 4 bombas de uma vez só. Gente, imagina como é que tá o corpo dessa criatura? (Naomi Campbell - fragmento de discussão depois da realização das cenas7)

Tanto que a gente toma o hormônio alta dosagem por conta própria, tudo por conta própria. As vezes a gente se aplica sozinha também, uma aplica na outra. É muito louco as coisas da gente, mas a vida da travesti é assim. Porque assim, vai, tem médico que é bom, tem médicos que são maravilhosos. Mas tem uns que já não são, então pra você não ter aquele constrangimento, aquele estresse, aquele negócio, você vai encarar, vai fazer e pronto. (Fragmento de entrevista - Julia Roberts)

As entrevistadas falam sobre a forma como acontece a hormonioterapia

7 Para buscar o aprofundamento na vivência travesti, utilizamos ainda as cenas projetivas, como já citado no capítulo sobre o percurso metodológico. Aqui, nos referimos à discussão que ocorreu após a realização das cenas.

entre as travestis. Elas procuram as travestis mais “antigas”, mais experientes, chamadas “madrinhas” e se “consultam” com elas, ingerindo dosagens muito altas na expectativa de que o hormônio tenha um efeito mais eficaz (aumentando as características femininas nos seus corpos), ou que hajam de forma mais rápida. Angelina ainda faz uma importante advertência: “Quem tiver pensando em tomar hormônio, não tome assim, na louca”. Mas como não tomar “na louca?”, como ter um acompanhamento profissional adequado? Para isso precisar-se-ia, além de condições dignas de acesso, profissionais capacitados para tal. Porém, o desinteresse dos profissionais de saúde em auxiliá-las em seus tratamentos hormonais também foi um marco forte nas entrevistas:

E fora também em relação a endocrinologia, que eles deveriam tratar a gente bem, eles deveriam fazer o nosso tratamento hormonal. Eles têm que usar a lógica, porque se a gente fica sem acompanhamento na saúde, vai gerar que a gente vai ficar doente. Porque a gente vai tá se drogando, injetando remédio por conta própria. (Fragmento de entrevista - Angelina Jolie)

Eu não sei se é verdade, mas me contaram que ela [uma travesti de quem falavam] foi atendida por um endocrinologista, voltou com os resultados do exame e disse: “Doutor, eu quero uns hormônios bem barra pra mim tomar, pra mim não perder a feminilidade”. Aí ele foi curto e grosso: “Você acha que eu vou passar hormônio prum cabra macho?”. Aí eu perguntei a ela se ela já tinha voltado em outro endócrino, ela disse: “nem voltei e

nem vou, porque fui super mal tratada.”. Então é todo um processo pra conseguir um endócrino, e quando consegue eles ainda não querem fazer. (Nicole Kidman - fragmento de discussão depois da realização das cenas)

É... por exemplo, nesse posto de saúde a gente procurou saber sobre a questão da hormonioterapia, a maioria dos médicos fala que não... eles não tem intenção, de trabalhar aquilo. Porque sabe que se você vai trabalhar a questão da hormonioterapia, você vai trabalhar a questão da diabetes, da hipertensão, porque todos esses remédios causam essas decorrências, então é muito mais fácil pra mim enquanto médico dizer que não trabalho aquilo e nem tenho conhecimento de quem estuda hormonioterapia (...). Acontece que elas, a maioriiia, 90%, tomam [hormônio] por conta própria. Uma se consulta com a outra e assim vai. E foi assim desde que eu me entendi de gente. E até hoje continuam fazendo. (Fragmento de entrevista - Gisele Bundchen)

Nos discursos aparecem questões relativas a falta de acompanhamento médico no que se refere ao tratamento hormonal necessitado pelas travestis para a feminilização dos seus corpos. Fala-se do efeito que isso traz para a própria saúde, na medida em que, não havendo disponibilidade dos endocrinologistas para atendê-las, elas continuarão ingerindo hormônios e precisarão da saúde posteriormente devido às diversas reações negativas desencadeadas pela automedicação.

As sequelas da hormonioterapia é um problema comprovado epidemiologicamente, apesar das poucas estatísticas nessa área – sobre os danos da sobredose de hormônios que muitas vezes mata muitas e muitos travestis e transexuais (Arilha, Lapa & Pisaneschi, 2010). Questão que é também reafirmada por Carvalho (2011, p.113), quando ele ressalta “a recorrência de casos de deformidade física e até de morte resultante do uso do silicone industrial, assim como de complicações de saúde devidas ao uso irracional de medicamentos à base de hormônios sexuais.”

A falta de interesse dos profissionais em lidar com questões relacionadas a travestilidade é retratada na fala de Fernanda Benvenutty, em Arilha, Lapa e Pisaneschi (2010, p.253):

Dentro do SUS, vemos profissionais que, quando se deparam com uma travesti, ficam jogando uns para os outros – “Ah, não, isso aqui é para fulano”. E onde é que nós vamos esbarrar? Qual é o profissional que vai cuidar da travesti? Simplesmente nos mandam para os profissionais da Aids, porque até hoje somos vistas como “grupo de risco”, como pessoas vivenciando ainda aquele processo passado de que a Aids era exclusividade dos homossexuais. E as travestis esbarram aí porque, quando chegamos aos profissionais, muitas vezes ouvimos “eu não tenho experiência de lidar com hormonioterapia”.

Percebe-se a enorme demanda pelo direito a transformações corporais assistidas pelo SUS. Hoje, tais procedimentos são abarcados pelo processo transexualizador, porém, o acesso a tais procedimentos está restrito à

obtenção do diagnóstico de Transtorno de Identidade de Gênero (TIG), que implica no desejo de realização de todos os procedimentos, que culmina na redesignação genital (Carvalho, 2011).

Apesar de as experiências em direção à transformação dos corpos de maneira definitiva dos caracteres secundários sejam praticamente as mesmas entre travestis e transexuais, a resolução do Conselho Federal de Medicina, condiciona a aplicabilidade dos procedimentos médicos de transgenitalização e também de hormonioterapia a pessoas com diagnóstico de “transexualismo”. As travestis, desse modo, permanecem excluídas da atenção à saúde e relegadas à automedicação (Lionço, 2008).

Uma outra questão ligada a hormonioterapia e que mereceria a atenção do Estado, por causar sofrimento psicológico às travestis e ser facilmente resolvida através de orientações prestadas por profissionais da saúde, é a crença que elas têm na perda da sua feminilidade conquistada por hormônios através do gozo. Como nos mostra a fala de Angelina:

Porque a gente que é travesti sabe que se você tomar hormônio feminino, você fica com os traços femininos, mas se você ejacular a gente sente que o nosso peito começa a secar, a bunda começa... tudo aquilo que você ganhou feminino vai secando aos poucos. (...) Ela [a sua endocrinologista] diz que é psicológico. Mas não é. Você pode perguntar a todas as travestis do mundo inteiro que elas vão te dizer. Não pode gozar. Porque no gozo a

gente sente que sai. É complicado. (Fragmento de entrevista - Angelina Jolie)

Existe uma ideia entre as travestis que o ato de ejacular elimina, consigo, os hormônios femininos ingeridos. Kulick (2008) traz um aspecto semelhante em seu livro quando ele diz que as travestis consideram inapropriado ejacular no período em que estão usando os hormônios, pois acreditam que esses poderiam ser expelidos no sêmen. Já Pelúcio (2009) diz que, no relato das travestis, há uma relação entre ter pênis e a necessidade de gozar para não ficar “nervosa”, pois não seria natural esse fluido masculino ficar retido no corpo. Porém, se elas gozam muito, o hormônio feminino sai.

Borba (2011), sobre essa temática, informa que os níveis de testosterona podem interferir nos efeitos trazidos pelos hormônios. Então, as travestis muitas vezes se privam do prazer sexual em uma tentativa de manter a substância em seus corpos. Dessa forma, o sêmen parece ser concebido como o veículo através do qual sua feminilidade pode deixar seus corpos. Para evitar perder suas formas femininas, muitas travestis acreditam que devem manter seu esperma no interior de seus corpos e, em nome da feminilidade, deixam de ejacular por dias, ou até semanas, para que possam manter suas formas corporais.

Pouca informação se encontra sobre essa temática, a maioria delas estão em blogs e fóruns escritos por pessoas trans para pessoas trans, em uma troca de experiências. Essa desinformação é relatada por uma das colaboradoras na discussão das cenas:

No ENJUT [Encontro Nacional da Juventude Trans] teve uma roda sobre hormonioterapia e eu vi como todo mundo tinha dúvida, tinha curiosidade, e a menina não podia tá receitando porque ela não era médica, e faltou ali um endocrinologista pra poder conversar com todo mundo. (Naomi Campbell – fragmento de discussão depois da realização das cenas)

Como se pode ver, em relação a hormonioterapia, muitas são as dúvidas e poucas as respostas quando se trata dos efeitos dos hormônios femininos em um corpo biologicamente pertencente ao sexo masculino. Qual hormônio devo tomar? Em que quantidade? Quais exames devo fazer para um acompanhamento seguro da minha hormonioterapia? Quais os efeitos sobre o meu corpo? O que posso e o que não posso fazer? Essas são questões que precisam urgentemente serem respondidas por profissionais habilitados para tal, a fim de garantirmos uma saúde integral à população trans.

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