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Demandas recentes

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Cecilia Ricardo Fernandes*

4.3 Demandas recentes

A partir de 2009 algumas tendências se tornaram mais evidentes dentro dos trabalhos a respeito da comunidade Kalunga. As três consideradas mais importantes foram: os estudos dos instrumentos legais; os estudos ambientais e de conservação; e os estudos sobre possibilidades de desenvolvimento econômico sustentável para a região. Cabe ressaltar que esses temas já apareciam em trabalhos anteriores, mas de forma mais sutil ou com menor frequência, e, por isso, foram classifi cados como demandas que emergiram mais recentemente.

Dois dos estudos analisados ( SIQUEIRA, 2012; FRANCO, 2012) aprofundam as ques- tões das ferramentas legais que podem, e devem, auxiliar os Kalungas nas demandas jurídicas envolvendo suas terras. Essa apari- ção mais tardia das temáticas legais pode estar relacionada com o fato de que as próprias leis que respaldam o direito à terra quilombola são algo muito recente, que não estava presen- te na Constituição, até 1988. Basta lembrar que as pesquisas de Biocchi se iniciaram em 1982 e que, em 1991, quando o Sítio Histórico Cul- tural Kalunga foi criado, muito pouco tinha sido feito a respeito da titulação das terras dos

remanescentes de quilombos. Logo, a prática jurídica envolvendo direitos quilombolas é recente, assim como seus estudos. Por isso, não é surpreendente que, na análise dos textos amostrados, esse padrão tenha se repetido.

Tratando-se das temáticas relacionadas ao meio ambiente, como a conservação e o desenvolvimento sustentável (BARROS, 2012; AMORIM 2010; SOUZA, 2010; UNGARELLI, 2009), o seu surgimento tardio não se deve à degradação ambiental ser uma problemática recente; afi nal, a relação homem-natureza sempre implicou apropriação dos recursos naturais. Entretanto pensar em desenvolvi- mento é pensar em liberdades, como assinala Amartya Sem. Ou seja, o principal fi m do desenvolvimento é a expansão das liberdades (VEIGA, 2005), e as principais limitações à liberdade, como a pobreza, tirania, carência de oportunidades econômicas, negligência dos serviços públicos básicos e intolerância, são exatamente aqueles desafi os enfrentados no fi nal do século passado pelos Kalungas.

Foi preciso sanar os problemas que limitavam as liberdades da comunidade, impedindo a ela se desenvolver, antes de se pensar em desenvolvimento sustentável. Em outras palavras, como planejar o futuro quando o próprio presente não esta garanti- do? Foi assim na comunidade Kalunga, onde primeiro se estabeleceram condições mínimas de qualidade de vida nos povoados antes de se falar sobre conservação dos recursos, mudanças climáticas, desenvolvimento sus- tentável, poluição da água e queimadas. Isso não signifi ca que tais temáticas não tivessem importância anteriormente; apenas, que são problemas muitas vezes negligenciados quan- do não se tem certeza sobre o dia de amanhã.

Dentro dos estudos analisados, relacio- nados a temáticas ambientais, encontramos pesquisas que focam desde as percepções ambientais dos Kalungas (BARROS, 2012), até catalogações etnobotânicas a respeito de plantas medicinais locais (MASSAROTTO, 2009). Trata-se de um universo temático ex- tremamente amplo, que começa a ser traba- lhado, mas que possui um enorme potencial acadêmico.

5 E o futuro?

Os últimos trinta anos trouxeram diver- sas mudanças para a comunidade do quilom- bo Kalunga, e algumas delas ocorreram devi- do ao trabalho de alguns pesquisadores, que ajudaram a dar visibilidade aos quilombolas, apontando a sua antiga situação de vulnera- bilidade e invisibilidade social. Entretanto o maior esforço parte, sem dúvida, dos próprios quilombolas, que lutam diariamente pelos seus direitos, evoluindo e ressignifi cando suas vidas e cultura frente às muitas possibilidades que se apresentam.

Os três principais tipos de demandas que emergiram dos trabalhos científi cos ana- lisados (constantes, parcialmente sanadas e recentes) dão bons indícios do caminho per- corrido pelo quilombo nas últimas décadas. Elas nos mostram as principais difi culdades, batalhas e conquistas que a comunidade Ka- lunga enfrentou e ainda deve enfrentar nos próximos anos.

Como assinalou Barretto Filho (2006), o grande desafi o que se apresenta para as comunidades tradicionais, nos dias de hoje, é encontrar um terceiro caminho, entre a tradição estagnada no passado e o completo abandono de suas raízes em busca da inserção na sociedade moderna. Essa não é tarefa fácil, mas as pesquisas acadêmicas podem ajudar apresentando novas perspectivas ou apenas diferentes pontos de vista sobre os problemas locais. Entretanto não cabe a nenhum pesqui- sador dizer qual caminho os Kalungas devem seguir. A autonomia desse grupo em decidir sobre o seu futuro é fundamental para o seu empoderamento e responsabilização frente aos novos caminhos que se apresentam. E que novos caminhos são esses?

Desde a pesquisa que levou à elabora- ção deste artigo, em 2012, muitas pesquisas novas foram publicadas e outras tantas iden- tifi cadas. Fica claro que o interesse acadêmico pelo quilombo Kalunga e suas particularida- des está crescendo, assim como os investimen- tos em infraestrutura, educação, capacitação e turismo. Várias pesquisas (UNGARELLI, 2009; ALMEIDA, 2010; BARROS, 2012) res- saltam a importância dos Kalungas na con- servação da agro e biodiversidade locais. A ligação com a terra e com os ciclos naturais, presente na sua cultura, pode ser a porta de

entrada para iniciativas ligadas à preserva- ção do meio ambiente e à sustentabilidade. Entretanto pode ser preciso, antes de seguir adiante, refl etir sobre o passado e as recentes mudanças ocorridas na comunidade, a fi m de que não se perca de vista (ou se encontre) o terceiro caminho, aquele que permita aos Kalunga aliar modernização e tradição em prol de uma melhor qualidade de vida de para as suas famílias.

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