• Nenhum resultado encontrado

Lembrando o que foi citado na introdução, as políticas públicas relacionadas à política urbana brasileira presente no Estatuto da Cidade, apresentaram, entre outros, três grandes caminhos: os instrumentos para minimizar as desigualdades; instrumentos para promover o desenvolvimento urbano e instrumentos para exercício da democracia participativa.

Aos estados e municípios cabem, por exemplo, criar os conselhos da cidade para que possam acessar políticas públicas urbanas. Portanto, os governos locais têm interesse em manter ou criar tais espaços, mesmo que seja apenas para cumprir uma obrigatoriedade. Já os demais instrumentos do Estatuto da Cidade são implementados de acordo com as forças existentes em cada cidade. Podem ser aplicados para melhorar as condições de vida de determinada parcela da população ou como negócio, apresentando, nestes casos, resultados contraditórios, que podem violar direitos de grupos mais fragilizados e promover desigualdades.

Como lembra Fix (2011), o tamanho das carências, o volume de recursos necessários combinados ao discurso de Estado mínimo fortaleceu a aproximação entre promotores imobiliários e Estado ainda na década de 1990. Nesse período os instrumentos como Operações Urbanas Consorciadas e ‘revitalização’ de áreas centrais já faziam parte do “receituário do planejamento estratégico e das “cidades globais”. (FIX, 2011:55).

Estes dois instrumentos foram integrados ao Estatuto da Cidade juntamente com outros que apresentam potencial para evitar desigualdades. Da mesma forma como citado na introdução sobre a primazia por grandes projetos no lugar de mecanismos para implementar função social da propriedade, ocorre situação semelhante com estes instrumentos.

Os instrumentos como as Operações Urbanas Consorciadas e revitalização de áreas centrais, sobretudo a partir do Programa de Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais,

63 tem sido muito mais utilizados no Brasil para viabilizar capitalização de determinados grupos, e menos para promover justiça social, como a moradia social em áreas centrais ou geração de renda.

Segundo o Artigo 32 do Estatuto da Cidade, as Operações Urbanas Consorciadas devem ser implementadas por lei municipal, tomando como referência o plano diretor. Quem vai certificar da adequada aplicação do Plano Diretor na OUC é o conselho da cidade (ou assemelhado). Através da lei municipal fica delimitada uma área da cidade onde será aplicada a operação urbana consorciada.

§ 1o Considera-se operação urbana consorciada o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental. (BRASIL, 2001. EC).

Sintetizando, poder público e empresários definem regiões da cidade onde pretendem implementar OUC. Nesta região, fica possibilitada a construção além do que é permitido pelo Plano Diretor ou outras leis de zoneamento.

Para as OUC são mobilizados, principalmente, moradores, governos e empreendedores. Aparentemente o projeto poderia ser resultado do acordo entre os envolvidos, no entanto o jogo já começa sabendo que um dos jogadores está em vantagem, os empreendedores, pois as condições já estão praticamente garantidas nos Planos de Negócio19.

Em locais onde a população é mais frágil do ponto de vista de força política, prevalecerá muito mais os interesses dos empreendedores e governos. Mesmo em casos onde há participação de movimentos sociais organizados, experientes e com regras claras elaboradas de forma a atender demandas da população, ainda assim ocorrem casos onde há desrespeito às decisões definidas no projeto. A Operação Urbana Consorciada Porto Maravilha, cidade do Rio de Janeiro, pode ser citada como exemplo. Por se tratar de área portuária envolveu governo federal e municipal. Ao lado do setor empresarial estavam as empreiteiras Odebrecht, OAS e Carioca Christiani-Nielsen (grandes empresas). Segundo Werneck (2017) todos os prazos relacionados às intervenções para moradia social foram

19 Plano de Negócios apresenta a viabilidade do empreendimento e aponta caminhos de menor incerteza e riscos.

64 desrespeitados, e os resultados de produção habitacional estão atrasadas e não correspondente ao que foi planejado.

As OUC também mobilizam outros instrumentos, entre eles estão os institutos tributários e financeiros que possibilitam incentivos e benefícios fiscais e financeiros. Além desses instrumentos, o Art.34 do Estatuto da Cidade, que também trata das OUC, diz que a OUC poderá prever emissão pelo Município de Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPAC), que serão alienados em leilão ou utilizados diretamente no pagamento das obras necessárias à própria operação. Significa dizer que são lançados títulos no mercado financeiro antes mesmo do empreendimento ser implementado. As OUC podem ser propostas para qualquer região da cidade, porém, só vai ocorrer em locais onde há algum interesse por parte do mercado imobiliário, evidentemente.

Ou seja, para reestruturar uma parte da cidade através desse mecanismo, o setor financeiro é fortemente mobilizado e não garante o cumprimento das obrigações sociais tratadas. Lembrando que o capital originado de construções demora mais tempo para retornar, este mecanismo de financeirização acaba por agilizar a circulação do capital. Trata-se de “um novo tipo de especulação imobiliária financeirizada” (FIX, 2009:53).

Este instrumento faz parte do Estatuto da Cidade e é um claro exemplo de que “el giro neoliberal en las políticas públicas guvernamentales há tendido a subyugar a la mayoria de la población al poder de las fuerzas del mercado mientras que preserva la proteción social de los poderosos” (GILL, 1995, In: BRENNER, PECK e THEODORE, 2015:215)

Os processos denominados de revitalização urbana de áreas centrais também podem ter resultados distintos do que se espera sobretudo quando estas áreas apresentam população de baixo poder aquisitivo, alta densidade e onde se desenvolvem atividades de comércio informal, entre outros. Boa parte desses casos encontram explicações nos processos de gentrificação.

O termo gentrificação foi empregado pela primeira vez por Ruth Glass para representar o processo em que famílias de classe média londrinas povoavam bairros desvalorizados do centro da cidade, contrariando o modelo vigente na época onde se observava um processo inverso, ou seja, as famílias se deslocavam para o subúrbio da cidade e não o contrário. Além disso, observavam a mudança da “composição social” dos bairros centrais, moradores pobres eram substituídos “por camadas médias assalariadas”. Uma outra característica dizia respeito aos “investimentos, reabilitação e apropriação por

65 estas camadas sociais de um estoque de moradias de bairros operários ou populares” (BIDOU,2006).

HAMMET (1984 in BIDOU 2006) considerava que a gentrificação tratava-se de um fenômeno físico, econômico, social e cultural. A mudança não era somente social, mas também física dos locais e moradia dos bairros de trabalhadores). Se refere à processo de elitização onde segmentos superiores das classes média buscavam residir em condomínios de luxo no centro das grandes cidades.

Independente das especificidades de cada abordagem, todos se referem à gentrificação como transformação no perfil familiar, aumento do número de mulheres que trabalham, frequência de casais com duplo salário, o crescimento da individualização dos modos de vida.

Neil Smith lembra que em muitos casos o processo de gentrificação se transformou na própria política urbana (Smith, 1999 in Bidou, 2006). De um fenômeno considerado aparentemente natural, tendo em vista o comportamento do mercado imobiliário e de atores privados, a gentrificação se converteu em política urbana. E isto faz lembrar o próprio Estatuto da Cidade.

No livro “La Nueva Frontera Urbana. Ciudad revanchista y gentrificación”, Smith cita inúmeros outros exemplos que colaboram não só com a caracterização de gentrificação mas, também, mostra claramente o caráter ideológico que envolve o termo.

“… esta nueva palabra, gentrificación, capturaba com precisión las dimensiones de clase de las transformaciones que se estaban produciendo em la geografía social de muchos centros urbanos de las principales ciudades. Muchas de las personas que se mostraban favorables al proceso recurrieron a una terminología más anodina - “reciclaje del barrio”, “mejoramiento”, “renacimiento” y outras por estilo - , em tanto forma de moderar las connotaciones clasistas y tambíén raciales de la “gentrificación”, pero muchos outros se vieron atraídos por el aparente optimismo de la “gentrificació”, el sentido de modernización, de renovación, la limpieza urbana llevada a cabo por las clases medias blancas” ( SMITH, 2012:76).

O conjunto de termos usados para as intervenções denotam uma idéia de que antes da gentrificação não há nada. Smith compara o discurso em favor da gentrificação ao da conquista do Oeste nos Estados Unidos, a idéia de pioneirismo que supõe que nada existe nos locais que serão “desbravados”. Da mesma forma, a idéia dos “pioneiros urbanos” é muito presente no discurso dos defensores da gentrificação.

66

“El término gentrificación expressa el obvio caráter clasista del proceso, y por esse motivo, si bien el que se muda al bairro puede no ser técnicamente un “miembro de la alta burguesía” [gentry] sino un profesional blanco de clase media, el término es de lo más razonable”(SMITH,2012:77).

Outros autores levantam considerações e especificidades sobre o processo de gentrificação, tipos e, sobretudo, formas de resistência por parte dos afetados. Acadêmicos se dividem entre aqueles que identificam integração entre população pobre que vive nos locais revitalizados; aqueles que consideram como oportunidades de trabalho; e aqueles que entendem como positivo até para mudar o estigmatização dos lugares de vida dos pobres (Mendoza, 2016).

No entanto, por parte da população pobre que vive nestes locais, os elementos relacionados com reinvestimentos em áreas centrais degradadas, reativação do mercado imobiliário provocam mudanças no perfil de moradia, invisibilidade e desprezo pela população e atividades que já desenvolvem nos locais de intervenção. Estudos empíricos citados por Mendoza (2016) identificam casos em que dificilmente ocorrerá a renovação urbana sem algum tipo de exclusão. A menos que se considere a possibilidade de articular outros mecanismos como regulação de preços, valorização da posse, inclusão e geração de trabalho e renda, entre outros.

Assim, gentrificação acabou sendo uma expressão utilizada pelos movimentos sociais para descrever um processo que consideram excludente, que transformam os espaços centrais em áreas elitizadas, onde tudo ao entorno sofrerá aumentos de preços, viabilizando negócios, porém inviabilizando, sobretudo, a moradia.

Portanto, renovação urbana conforme possibilidade apresentada pelo Estatuto da Cidade, acabou sendo associado à gentrificação exatamente por ter sido apropriada por setores ligados ao capital (valor de troca) e não pelos atores diretamente envolvidos e que vivem nestes locais, atendendo suas necessidades e valorizando a posse, por exemplo (valor de uso).

Ainda quanto à Política Urbana, os instrumentos advindos da estrutura jurídico- institucional criaram as condições para o financiamento das cidades. O ordenamento do solo urbano e, principalmente, a implantação dos Planos Diretores trouxeram “novas possibilidades de gerar recursos para o setor público, pelo uso e ocupação do solo” (KHAIR, 2013:61). O Plano Diretor definirá as áreas onde incidirão cada instrumento. Em outras palavras, o Estatuto da Cidade e o Plano Diretor estabelecerão formas de

67 financiamento da cidade que deverão compor com outros recursos as fontes para que o governo possa atuar.

Os instrumentos principais são o IPTU progressivo, emissão de títulos, outorga onerosa do direito de construir, operações urbanas e consórcio imobiliário. Exceto o IPTU progressivo no tempo, todos os demais instrumentos citados têm a possibilidade de criar círculo vicioso se não for implementado considerando a função social da propriedade e limitando a desigualdade socioespacial.

É importante esclarecer que o IPTU cobrado sobre o valor venal dos imóveis cumpre apenas objetivo fiscal. Já o IPTU progressivo é importante porque apresenta caráter de punição e induz o proprietário a fazer com que o imóvel cumpra com a função social. Ou seja, o IPTU progressivo é o instrumento que todos os prefeitos deveriam se empenhar em implementar.

Pontua-se o instrumento outorga onerosa do direito de construir por ser amplamente utilizado nas cidades brasileiras. É aplicada nas ocasiões em que o proprietário busca construir acima do coeficiente de aproveitamento estipulado pelo Plano Diretor para cada região da cidade ou para possibilitar a alteração do uso do solo.

Estes são exemplos de alguns instrumentos criados que, quando aplicados, podem contribuir com o financiamento das cidades, ou seja, uma fonte de recursos que pode ser destinado para melhorias urbanas de comunidades carentes. Portanto, há uma mobilização de recursos vinculados diretamente ao processo de implementação dos instrumentos presentes nos Planos Diretores, elaborados à luz do Estatuto da Cidade e da Constituição brasileira, que ainda precisam ser entendidos, discutidos nos espaços de participação popular e disputados.

Fica evidente com os exemplos acima, quão desafiador é a desconstituição da simbiose entre neoliberalismo e política urbana.

3.2 ESTADO E MERCADO NA PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO EM PORTO

Documentos relacionados