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Democracia internacional e direito cosmopolita em Bobbio

4. A Atualidade do cosmopolitismo kantiano: Habermas e Bobbio

4.2. O cosmopolitismo bobbiano

4.2.3. Democracia internacional e direito cosmopolita em Bobbio

Os direitos naturais foram acolhidos pelas constituições de alguns países e transformados de princípios à condição de prescrições jurídicas, ao mesmo tempo em que também passam a ser protegidos de possíveis violações de todos os tipos. Mas o problema ainda a ser enfrentado é o fato de que esses direitos até esse momento não conseguem garantir ao sujeito a efetivação dos seus direitos frente ao seu próprio Estado. Sua devida efetivação, pelo menos em tese, só ocorre quando esses direitos ganham uma dimensão internacional, como pode ser lido na descrição de Bobbio:

Com o acolhimento de alguns direitos fundamentais na Declaração

Universal, cumpre-se o terceiro momento desta evolução: os direitos

naturais, reconhecidos enfim pela Assembleia Geral das Nações Unidas, isto é, pelo mais alto órgão representativo da comunidade internacional, passam a ser protegidos não mais apenas no âmbito do Estado, mas também contra o

próprio Estado, vale dizer, passam a uma proteção que poderíamos

considerar de segundo grau, a qual deveria entrar em funcionamento quando o Estado falhasse em seus deveres constitucionais para com os seus sujeitos607.

A Declaração imprimiu aos direitos naturais uma eficácia que as teorias filosóficas não tinham como alcançar, porque ela transformou os direitos “naturais” em “direitos positivos”.

A Declaração elevou a um âmbito internacional a emancipação do sujeito, tornando-o universal, porque estabeleceu as diretrizes para que esse homem pudesse buscar refúgio numa instância acima do seu Estado. Mas essa emancipação não se dá porque os seres humanos nascem livres e iguais, mas porque “[...] na realidade os seres humanos devem ser tratados como se fossem livres e iguais”608. A Declaração prescreve um dever, ou seja, a liberdade e a

igualdade que concerne a todo ser humano não é um fato, mas um direito natural que antecede o direito positivo.

Bobbio esquematiza o movimento histórico de afirmação dos direitos humanos na modernidade em três fases: fase universal, mas não positiva; fase positiva, mas não universal; e finalmente fase universal e positiva.

A primeira fase se refere às teorias filosóficas jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII, que proclamavam a igualdade e liberdade naturais de todos os homens, mas que não

607 BOBBIO, 2009, p. 83. 608 Ibid., p. 84.

possuíam valor de lei; a segunda fase é a passagem do “direito pensado para o direito realizado”, ou seja, o acolhimento das doutrinas jusnaturalistas no direito interno de alguns Estados a partir das revoluções burguesas e socialistas; a terceira e última fase inicia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Nela:

[...] a afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva: universal no sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens; positiva no sentido de que põe em movimento um processo em cujo final os direitos humanos deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, mas efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado. No final deste processo, os direitos do cidadão terão se transformado, realmente e positivamente, em direitos humanos609.

O fim, o telos, o objetivo final deste processo seria, para Bobbio, a abolição da distinção feita pela Déclaration de droits de l´homme e do citoyen da Revolução Francesa entre direitos do “homem” e do “cidadão”, porque finalmente haveria uma cidadania universal, cosmopolita, que garantiria a todos os homens os direitos que hoje são garantidos somente aos cidadãos de alguns Estados.

Este projeto, porém, não é uma realidade, mas um ideal regulador, porque o crescimento da democracia em escala internacional veio acompanhado da insegurança na mesma dimensão. De fato, não ocorreu até hoje uma terceira guerra mundial, mas ela nunca deixou de ser uma ameaça das mais preocupantes e reais. Nesse sentido, se não há uma ameaça vinda de um único país, há uma ameaça sem território que recai sobre o mundo como um espectro. Assim podem ser classificadas as guerras civis, a guerrilha, o terrorismo, o crime organizado, pois mesmo ocorrendo no interior de um Estado, apresentam consequências internacionais.

A paz tem sido buscada desde a Carta das Nações Unidas através de ações que visam eliminar a opressão dos mercados sobre os cidadãos. Mas a prevenção de uma terceira guerra mundial exige medidas jurídicas capazes de fazer os Estados, e todos os grupos que não reconheçam nenhum Estado, a respeitarem as regras do jogo. Essas regras foram postas há dois séculos por Kant, e continuam um ideal a ser alcançado, embora sejam evidentes os avanços nesse sentido. No entanto, há também em Bobbio, como em Habermas, uma discussão sobre quem deveria ser este terceiro árbitro, se uma Federação de Estados ou um Estado Mundial. Aparentemente, uma Federação de Estados é uma ideia que fragiliza o projeto de paz de Kant, como fragiliza, hoje, o projeto da ONU; mas tanto Kant quanto a

ONU sempre buscaram evitar que a paz fosse estabelecida no mundo através de uma única superpotência. Isso seria o estabelecimento de um superestado acima de todos os outros Estados. Nesse sentido, se o projeto kantiano de paz encontra-se distante do projeto da ONU pelo tempo, eles se aproximam pelos ideais que ambos buscam. Em um ponto Bobbio concorda com Kant: “uma confederação de Estados é tanto mais estável quanto mais se estabelecer entre Estados homogêneos”610.

O projeto kantiano oferece um ponto de partida para a uma reflexão sobre a paz no contexto atual. Ele aponta a necessidade de uma homogeneidade entre os estados para que a paz se estabeleça como uma condição definitiva. Mas essa condição está longe de ser alcançada, porque as diferenças entre os Estados vão desde sua evolução histórica até a econômica. A igualdade afirmada pelo §1, do artigo 2, da Carta das Nações Unidas: “A Organização é baseada no princípio da igualdade de todos os seus Membros”611, refere-se a

uma abstração das diferenças entre os diversos países, ou seja, trata-se uma prescrição jurídica que não evidencia a verdadeira situação dos Estados membros das Nações Unidas. Nesse sentido, as palavras de Bobbio insurgem com muita força para interpretar essa situação: “Não há nada mais fácil do que fazer com que pareçam iguais rostos muitíssimo diferentes, escondendo-os sob a mesma máscara, tanto mais ocultadora, quanto mais inexpressiva”612.

Há de se reconhecer o importante trabalho realizado pelas Nações Unidas, desde sua criação, no processo de independência dos diversos Estados, o seu investimento na afirmação dos Direitos Humanos, desde a criação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948: é um trabalho considerável que tem como pano de fundo o projeto cosmopolita kantiano.

Bobbio é defensor da tese de que a concepção kantiana de progresso da humanidade é uma ideia vigente. Contudo, não se trata da necessidade de um progresso moral, mas jurídico, porque “as relações humanas são dominadas pela vontade de potência muito mais do que pela boa vontade”613. A tensão entre os homens e entre os Estados é o que permanece vigente.

Contudo, se a impotência das Nações Unidas é um fato histórico, é igualmente no próprio desenvolvimento histórico que ela pode superar essa situação. Ora, há algo de essencial nas Nações Unidas que não pode ser encontrado em nenhuma outra força na história da humanidade que tenha trabalhado em busca da paz universal: trata-se do aspecto democrático

610 Ibid., p. 130.

611 Carta das Nações Unidas e estatuto da Corte Internacional de Justiça. UNIC / Rio / 006 - Julho – 2001.

Disponível em: http://unicrio.org.br/img/CartadaONU_VersoInternet.pdf - Acesso em: 27/08/2013.

612 BOBBIO, 2009, p. 131. 613 Ibid., p. 136.

das Nações Unidas, que mesmo sendo formado por países que se são econômica e politicamente desiguais, podem se fazer ouvir em todos os cantos do mundo.