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CAPÍTULO 2- O PÓS-MARXISMO DE ERNESTO LACLAU E CHANTAL MOUFFE

2.1 A DEMOCRACIA RADICAL DE LACLAU E MOUFFE

2.1.3 A democracia radical pós-marxista

Toda a imbricada relação teórica estabelecida pelo pós-marxismo entre as

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LACLAU & MOUFFE, 2001, p. 141.

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Para uma análise mais clara da relação entre Lefort e Laclau e Mouffe ver MARCHART, Oliver.

Post-Foundationbal Political Thought: Political diference in Nancy, Lefort, Badiou and Laclau.

teorias pós-modernas e o marxismo tem a intenção de servir de base para o lançamento de uma agenda política de intervenção na contemporaneidade. Assim sendo, o pós-marxismo desde o início se distancia da defesa de projeto socialista, ou, em outras palavras, este ideal passa a ser submetido a um projeto mais amplo que é o de uma democracia radical.

Para dar sustentação a este novo objetivo, os autores precisaram refletir sobre a formação do discurso a respeito da democracia. O marco para entender este processo é, para os autores, o período que vai da Revolução Francesa, em 1789, à chamada ―Primavera dos Povos‖, de 1848, onde a democracia tornava-se um discurso que trazia à tona ―o povo‖ como uma embrionária articulação de movimentos populares dos mais variados tipos. Posteriormente a este período, ocorreu o surgimento do discurso socialista sustentado pelos partidos sociais democratas que apostavam no papel da classe como detentora de prioridade na articulação de um movimento de mudança211.

Seguindo as conclusões do historiador Arthur Rosemberg (1889-1943), Laclau e Mouffe acabam por perceber a valorização exacerbada da figura do trabalhador fabril como o grande pecado do discurso de esquerda na Europa, especialmente, nas primeiras décadas do século XX. Tal escolha acabou impedindo articulações hegemônicas em muitos países da Europa e enfraqueceu não só o movimento classista como, da mesma forma, todos os outros movimentos antagonistas do período. O grande erro teria sido a falta de percepção do novo cenário que se constituía pluralizado e fragmentado, marcado pela expansão do discurso democrático e de novas articulações e antagonismos.

Se anteriormente à revolução o cenário político acabava por ser polarizado em uma bem estabelecida divisão ancien régime/plebe, na qual as identidades eram estabelecidas exteriormente a partir da figura de Deus e da ordem, a Revolução transforma este panorama que ganha contornos múltiplos com a emergência de novos discursos que se articulavam não mais a partir de um sistema fechado, mas por meio de articulações abertas ao jogo da hegemonia.212.

Entretanto, alguns discursos articularam-se em torno da crença em uma transcendentalidade. O projeto de uma democracia radical visa romper com estes discursos, em especial com a crença jacobina e marxista em um único fator

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LACLAU & MOUFFE, 2001, p.149.

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fundante. Do mesmo modo, com a restrição do político a um espaço determinado da existência humana. Em oposição, o que se defende é a indeterminação e a pluralidade do social, a impossibilidade de se adotar, após o período da revolução democrática, qualquer tipo de sujeito privilegiado.

Para apreender a forma como esta situação se apresenta no cenário contemporâneo, instaura-se uma divisão entre relações de subordinação, opressão e dominação. As relações de subordinação são aquelas em que determinado sujeito está submetido às decisões de outrem- ex: mulher com um homem, empregado com seu empregador. Já as relações de opressão são aquelas que passaram por processos de transformação, saindo de uma relação de subordinação para um lócus de antagonismo. Por sua vez, as relações de dominação são aquelas em que relações de subordinação são consideradas ilegítimas do ponto de vista de um ator externo à relação213.

Para Laclau e Mouffe, o principal problema é compreender como a relação de subordinação se torna uma relação de opressão. Nos termos pós-marxistas, isto significaria um processo de articulação ―consciente‖ de uma nova estrutura discursiva amparada nos pressupostos da revolução democrática. Para que esta transição ocorresse, haveria a necessidade de construção de um discurso exterior às relações de subordinação, ao conjunto de positividades sociais que vedam, por sua própria constituição, o antagonismo.

Para os autores, este papel fundamental passou a ser exercido na contemporaneidade pelo discurso democrático dos fins do século XVIII que funcionou como alavanca de um movimento de equivalência e articulação dos direitos dos grupos subordinados. Com isto, o discurso democrático se tornou um ponto nodal na produção de novos antagonismos. Uma nova matriz do imaginário social. A lógica da equivalência entre os vários discursos, que habitavam um mesmo campo, transformou-se em principal instrumento de produção do social214.

A lógica da equivalência, em proveito do discurso democrático, atuou através das desigualdades políticas existentes entre grupos e regiões diferentes, criando articulações que conseguiam levar de uma condição de subordinação para a de opressão. Para Laclau e Mouffe, a desigualdade econômica é um exemplo de relação de subordinação que, através do discurso socialista, alcançou a posição de

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LACLAU & MOUFFE, 2001, p. 152-154.

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opressão. Deste modo, o socialismo nada mais seria do que um dos filhos diretos das articulações surgidas com a revolução democrática.

No quadro esboçado por Laclau e Mouffe, o período do pós-Segunda Guerra não seria marcado por um processo de homogeneização das identidades a reboque do sucesso do capitalismo do ―bem estar social‖. Ao contrário, este foi marcado pelo surgimento de novas equivalências, da transição das relações de subordinação para a de opressão. Este processo está atrelado à difusão de discursos igualitários e à satisfação de diversas demandas sociais vinculadas a este período. O exemplo deste processo de democratização foi a emergência dos discursos rotulados como constituindo os ―novos movimentos sociais‖. Estes são um claro momento nas quais novas articulações e equivalências exigiriam uma nova formação hegemônica.

Os ―novos movimentos sociais‖, pelo prisma do pós-marxismo, podem ser compreendidos como tendo uma clara dualidade. De um lado, de continuidade– relacionada diretamente ao processo de igualitarismo difundido pelo discurso democrático– por outro, de descontinuidade- os novos antagonismos surgem a partir das transformações do Estado e do capitalismo contemporâneo215.

O pós-marxismo, com isto, não deixa de ser uma resposta teórica para as mudanças que levaram a sociedade pós-industrial a um tipo de capitalismo que criou uma mercantilização de diversas esferas da vida, da burocratização e da homogeneização da existência social. Para eles, tais características criariam um quadro ainda mais complexo de antagonismos e equivalências, no qual ocorreriam articulações entre os diversos discursos e uma exigência para a formação hegemônica.

Neste sentido, o surgimento de um discurso pluralista é a grande base para um projeto de contestação. Como expresso na longa citação abaixo, é no seio deste processo que se percebe o entrelaçamento entre todas as esferas da identidade.

Only if it is accepted that the subject positions cannot be led back to a positive and unitary founding principle - only then can pluralism be considered radical. Pluralism is radical only to the extent that each term of the plurality of identities finds within itself the principle of its own validity, without this having to be sought in a transcendent or underlying positive ground for the hierarchy of meaning of them all and the source and guarantee of their legitimacy. And this radical pluralism is democratic to the extent that the autoconstitutivity of each one of its terms is the result of displacements of the egalitarian imaginary. Hence, the project for a radical and plural democracy ,in a primary sense, is nothing other than the struggle

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for a maximum autonomization of spheres on the basis of the generalization of the equivalential-egalitarian logic216.

É neste sentido que a revolução democrática significa a expansão da lógica da equivalência, de um imaginário que coloca em jogo as relações de opressão, mobilizando discursos identitários autonomistas. Contudo, o receio do pós-marxismo de cair em um utopismo teleológico o faz negar qualquer sentido a este projeto que, da mesma forma, não pode ser taxado como anacrônico ou desviante, pois não há um caminho pré-determinado, uma estrutura concreta para julgar os desdobramentos futuros do movimento. Assim, estes poderiam descambar para uma tendência de esquerda ou de direita, já que os antagonismos têm uma tendência flutuante. Em outras palavras, ―Every antagonism, left free to itself, is a floating signifier, a 'wild' antagonism which does not predetermine the form in which it can be articulated to other elements in a social formation.217‖

É neste contexto teórico que Laclau e Mouffe compreendem o surgimento de uma ofensiva antidemocrática, direcionada diretamente contra a ―colonização‖ iniciada no século XIX, da ideia de liberdade pelo discurso democrático. O chamado neoliberalismo propalado por autores como Friedrich Hayek e Milton Friedman teve como objetivo articular novos significados sobre a estrutura do discurso democrático. Termos como ―liberdade‖, ―igualdade‖ e ―justiça‖ são redefinidos e passam a compor um novo campo de equivalências que contribuem para a formação hegemônica do discurso liberal-conservador. Este pressupõe como um de seus pontos nodais a articulação de um bloco hegemônico ao redor de uma definição individualista do direito e uma concepção negativa de liberdade218.

É em resposta a esta articulação que a democracia radical é pensada como uma alternativa factível para a esquerda.

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[Só se for aceito que as posições do sujeito não podem ser levadas de volta a um princípio fundador positivo e unitário- só então pode ser considerado o pluralismo radical. O pluralismo é radical apenas na medida em que cada termo da pluralidade de identidades encontra dentro de si o princípio da sua própria validade, sem que isso tenha de ser procurado em um fundamento transcendente ou uma subjacente positividade para a hierarquia de significados de todos eles e a origem e garantia de sua legitimidade. E esse pluralismo radical é democrático na medida em que a autoconstituição de cada um de seus termos é o resultado dos deslocamentos do imaginário igualitário. Assim, o projeto de uma democracia radical e plural, em um sentido primário, não é senão a luta por uma autonomização máxima das esferas tendo como base a generalização da lógica de equivalência-igualitária] Tradução livre. LACLAU & MOUFFE, 2001, p. 167.

217

[Todos os antagonismos, deixados livres para si, são significantes flutuantes, antagonismos "selvagens" que não predeterminam a forma em que podem ser articulados a outros elementos em uma formação social.] Tradução Livre. LACLAU & MOUFFE, 2001, p. 171.

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Um primeiro movimento é se colocar no campo da revolução democrática e expandir a cadeia de equivalências entre as diversas lutas contra a opressão. O pós- marxismo não descarta por completo o discurso revolucionário; ele é rearticulado no discurso democrático despido de sua matriz fundacionista e pensado gramscianamente como uma ―guerra de posição‖ sem um estágio final a ser alcançado ou conquistado. O socialismo também faria parte deste projeto democrático ao defender o igualitarismo e o distributivismo no seio da estrutura produtiva. Contudo, seu discurso seria mais um entre outros que compõem a democracia radical219.

Para Laclau e Mouffe, não existe teoria que detenha papel privilegiado no processo de formação hegemônica. Ela seria pragmaticamente utilizada ao sabor das condições de equivalência e das possibilidades de articulação. A própria incerteza teórica leva a um terreno movediço para a esquerda e para a direita, sempre surgindo novos discursos que exigiriam novas equivalências e antagonismos rearticulando todo processo de formação hegemônica.

The important point is that inasmuch as the field of ' society in general' has disappeared as a valid framework of political analysis , there has also disappeared the possibility of establishing a general theory of politics on the basis of topographic categories - that is to say, of categories which fix in a permanent manner the meaning of certain contents as difference witch can be located within a relational complex220.

O objetivo é reforçar a tese de que não há um fechamento do social, uma sutura que de forma determinista suprimiria a contingência e aprisionaria a diferença, confinando a mudança em um tempo congelado. Os espaços democráticos devem ser plurais, não podendo ser reduzidos a um único lócus de orientação.

A democracia radical só pode ocorrer em um espaço político destituído de centro, onde discursos aparentemente tão estranhos quanto o feminista, o étnico e o ecológico consigam encontrar pontos de equivalência que produzam uma formação discursiva hegemônica. Esta formação discursiva deve ter como um de seus resultados uma relação balanceada entre autonomia e liberdade para cada um dos campos discursivos particulares, sem com isto significar restrição e hierarquização

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LACLAU & MOUFFE, 2001, p. 178-179

220

[ O ponto importante é que na medida em que o campo da "sociedade em geral" desapareceu como um quadro válido de análise política, desapareceu também a possibilidade de se estabelecer uma teoria geral da política, com base em categorias topográficas - isto é, de categorias que fixam, de modo permanente, o significado de determinados conteúdos como diferenças as quais pode ser localizadas dentro de um complexo relacional.] Tradução livre. Idem, Ibidem, p.180.

de um campo para com o outro. Para se alcançar tal objetivo seria essencial a renúncia do discurso universalista e da confiança em uma verdade última implícita a este221.

A democracia radical do pós-marxismo é então uma agenda política que seria ―[...] affirmation of the contingency and ambiguity of every 'essence' , and on the constitutive character of social division and antagonism.222‖ Não há um ponto de chegada para o projeto, haja vista que o objetivo deste está sempre em mutação, assim como as articulações discursivas que dão sustentação a este. O espaço do político torna-se um eterno jogo com os jogadores mudando suas posições, relações e objetivos. Este jogo, como afirmam Laclau e Mouffe, é o da hegemonia223.