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4 AS FONTES ORAIS: AS MARCAS DA RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA

4.5 Os depoimentos do cigano Batista

Figura 4 – Cigano Batista, residente no Bairro Sumaré

Fonte: Elaborada pela autora.

O reconhecimento do valor das entrevistas como fonte histórica possibilita ao pesquisador principiante um roteiro seguro no campo da História Oral como opção metodológica, pois nessa perspectiva sua especificidade está no próprio fato de se prestar diversas abordagens adentrando num terreno multidisciplinar.

Entretanto, o terreno multidisciplinar que denominamos transdisciplinar da História Oral situa-se nos diferentes campos do saber, ao mesmo tempo que se revela como estratégia de captação de informações relativas às experiências vividas, pelos ciganos do Bairro Sumaré sejam elas pessoais ou sociais, pressupõe o apoio de um referencial que não se

alicerça na história tradicional dos fatos, das datas, dos personagens e dos heróis, mas na história como fruto de suas vivências, onde cada um possa ter voz e vez e ser protagonista, interlocutor e membro ativo da sociedade (JUCÁ, 2009 ).

Dessa forma tomamos como referência os ofícios exercidos pelo cigano Batista, pois percebemos a importância que ele tem no dia a dia da comunidade quando oferece seus serviços mágicos, a leitura das mãos e os jogos da sorte (búzios e cartas).Segundo o dicionário Houaiss, a palavra ofício significa: 1) qualquer atividade especializada de trabalho, ocupação, profissão; 2) função de que alguém se encarrega; e 3) conjunto de orações de um dia. Para os ciganos, a palavra ofício está relacionada ao modo de vida e não simplesmente ao trabalho e/ou à profissão.

Recorrendo ao conceito de Pesavento, a identidade implica nos costumes, hábitos e maneiras de ser e de viver dos grupos sociais, mais do que isso, se constitui e se revela em ritos e práticas sociais (PESAVENTO, 2008). A partir das práticas exercidas pelos ciganos, vamos percebendo como se constituem a identidade dos ciganos do Bairro Sumaré. Desse modo, as palavras do cigano Batista bem expressam essa formação identitária.

A vida cigana é uma vida boa porque o cigano vive de troca, ler mão, bota baralho tem o atendimento ajudando o próximo, botando cartas, jogo de búzio na linha branca, na linha do bem e a linha do bem você pode ajudar qualquer outra pessoa que é a linha branca chamada por nós ciganos que já nasce com o dom aí desenvolve também nos cultos Africanos Brasileiros de mãe menininha em Salvador na Bahia.42 (Cigano Batista, entrevista realizada em maio/2015).

Toda sociedade possui uma cultura, assim todos os indivíduos só vivem em sociedade devido à cultura, ou seja, à cultura é à vida em sociedade, nessa perspectiva cultura é o que se cultiva no social possibilitando os indivíduos a viverem em sociedade (BOSI, 1996). Vale ressaltar que todo universo cultural tem suas regras e códigos, entretanto, vale ressaltar que o universo cultural cigano é rico, complexo e plural. É por isso que, ao nos depararmos com uma pessoa de cultura diferente, acontecem confusões e mal-entendidos, pois o desentendimento provém do choque cultural, do contato entre duas culturas distintas. Nesse sentido, é possível lembrar das comunidades ciganas, pois é por meio da herança cultural que os ciganos se comunicam entre si e com os outros.

Embora os ciganos mais jovens não conservem a tradição, o grupo não se deixa diluir por suas fortes marcas identitárias. Dessa maneira, o alcance da tradição ainda permanece atuante na formação sociocultural dos ciganos do Bairro Sumaré. Entretanto,

42Batista, neto do coronel Valdemar Pires Cavalcante. Preserva a tradição e a cultura cigana na cidade de Sobral-

CE Trabalha com leitura de mãos, jogos de búzios e jogos da sorte. Entrevista realizada sem sua residência em maio de 2015.

pensar na identidade de um povo ou de um grupo social é pensar nas teias de relações partilhadas e vivenciadas dentro do grupo.

Os ciganos do Bairro Sumaré há mais de 30 anos frequentam a porta do Hospital Santa Casa de Misericórdia de Sobral43, local onde já são conhecidos por realizarem seus ofícios. Dona Zezita44, Dulcineide45 e Batista todos os dias descem a ladeira do Alto do Sumaré para atender seus clientes e os que deles se aproximam. Como podemos observar

neste depoimento: “nós atendemos o comércio todo, na santa casa, eu, a minha irmã e a cumade Zezita nós joga lá, os cliente sabe que ali é o nosso ponto”46

(Cigano Batista, entrevista realizada em maio/2015). É revelador na fala do depoente a tônica dominante ao

reconhecimento do “ser cigano” a partir das experiências sociais partilhadas e dos ofícios

exercidos por eles percebemos como a vida cigana se constitui.

A busca de uma identidade coletiva, mesmo partindo de depoimentos individuais, não está desvinculada de um espaço cultural, mas eles se utilizam da preservação de uma memória, como uma possibilidade de garantir as sementes de um resgate profícuo à

compreensão do passado (JUCÁ, 2011). Como podemos observar nesta fala “o cigano

legítimo não deixa a tradição de ler cartas, botar baralho e ler mão e jogar búzios aí vai desenvolvendo porque isso daí já vem desde o início da vida cigana’’47 (Cigano Batista, entrevista realizada em maio/2015).

No teor dos relatos apresentados, os ciganos do Bairro Sumaré se revelam a partir dos seus serviços mágicos e das atividades realizadas em seu cotidiano. Nesse sentido, a cultura é o conjunto de práticas, de técnicas, símbolos e valores que devem ser transmitidos às novas gerações para garantir a convivência social (BOSI, 1996). Tal definição dá à cultura um significa do próximo do ato de educar. Assim sendo, nessa perspectiva, a cultura cigana seria

43Está localizada no coração da Região Norte do estado do Ceará, em Sobral, sendo um patrimônio histórico

desta cidade. Hospital filantrópico e de caráter regional, tem 92% de sua área instalada a serviço do Sistema Único de Saúde - SUS, atendendo uma população estimada em mais de 1.500.000 habitantes, oriundos de 55 municípios. Tendo como provedora a Cúria Diocesana, a Santa Casa de Misericórdia de Sobral sempre caminhou sem perder seu objetivo de prestar atendimento aos mais necessitados, seguindo os princípios da Igreja que prega a solidariedade e a igualdade, ultrapassando seus limites regionais, atendendo pacientes de diversas partes do Ceará e até do Piauí. A Santa Casa é um hospital de extrema importância no Ceará, pois integra o Sistema Único de Saúde como única referência terciária para toda a Região Norte deste Estado (SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE SOBRAL, 2015).

44Cigana moradora do Bairro Sumaré e prima de Batista. 45Cigana do Bairro Sumaré e irmã de Batista.

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Batista, neto do coronel Valdemar Pires Cavalcante. Preserva a tradição e a cultura cigana na cidade de Sobral- CE Trabalha com leitura de mãos, jogos de búzios e jogos da sorte. Entrevista realizada sem sua residência em maio de 2015.

47Batista, neto do Coronel Valdemar Pires Cavalcante. Preserva a tradição e a cultura cigana na cidade de Sobral-

CE. Trabalha com leitura de mãos, jogos de búzios e jogos da sorte. Entrevista realizada sem sua residência em maio de 2015.

o que os ciganos mais velhos ensinam, a partir de suas experiências, às novas gerações para garantir sua sobrevivência.

Ao mostrar que a memória é uma construção social, Halbwachs também infere que os indivíduos recordam daquilo que consideram importante para seu grupo. De acordo com os argumentos nos depoimentos apresentados cada entrevista tem significado especial, pois a ênfase de cada narrador no relato do seu cotidiano associado às práticas coletivas típicas dos grupos socioculturais ciganos revelou-se a maneira do ser e do agir de cada um deles.

Nessa perspectiva, percebemos que o bairro tem uma forte carga simbólica, pois passaram a ter residência fixa, além da preservação da linguagem, o uso das indumentárias e os ofícios realizados por eles são elementos marcantes da identidade cultural do grupo cigano fixado no Bairro Sumaré. Halbwachs, ainda, revela que as lembranças são sempre coletivas, pois, mesmo que em determinadas circunstâncias se esteja materialmente só, o indivíduo recorda tendo como referenciais estruturas simbólicas e culturais de um grupo social.

Desse modo, percebemos como os construtos identitários e culturais dos ciganos se definem, a partir do seu estilo de vida onde se apropriam dos espaços públicos e organizam- se nos mesmos de forma inusitada, graças à arte de saber fazer, reinventar o cotidiano, alterar os códigos e (re)apropriar-se dos espaços, isto é, palmilham seus caminhos buscando viver do melhor modo possível, preservando suas tradições.

A partir das considerações tecidas aqui, exporemos no próximo capítulo nossas considerações finais acerca da memória, da cultura e da tradição cigana do Bairro do Sumaré, em Sobral.