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Depois do longo transcurso em que os Tupinambá de Olivença conseguiram em diferentes espaços seu reconhecimento como indígenas, teve inicio um novo processo político para garantir os direitos que o Estado brasileiro reconheceu a eles por serem “um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional”17, assegurando a

demarcação das “terras tradicionalmente ocupadas”18.

Com o reconhecimento legal dos Tupinambá de Olivença em 2001, inserindo-os formalmente nas relações que os demarcaram como indígenas oficiais, começou também uma disputa pela definição formal da sua indianidade, isto é, pelo significado de ser indígena para eles e para as partes envolvidas, tanto no processo de inserção das instituições do indigenismo e dos movimentos indígenas nacional e regional, como do próprio processo de definir o que se tornaria “estar na cultura” para eles.

Essa negociação pelas definições legitimas do indígena, caracterizada por entendidos e mal entendidos, consensos e dissensos, acordos e desacordos entre os mesmos indígenas e entre indígenas e não indígenas, marcou um trajeto no qual conceitos como os de cultura, ritual, território, pessoa, entre outros que delimitam o campo dos “usos, costumes e tradições”19 indígenas, levaram aos envolvidos a preenchê-los com seus sentidos para

formular essas diversas indianidades.

Deste modo, tanto entre os Tupinambá e seus colaboradores como nos outros campos ao redor desse processo, configurou-se um contexto no qual diversas vozes criaram definições do que é e como “retomar” esse ser índio, para uns um processo de “resgate”, para outros um processo de reconhecimento. Um transcurso ao longo do qual múltiplos

17 Estatuto do Índio, Lei nº 6.001/73.

18 Da Ordem Social, Sec. Dos índios Constituição de 1988. 19 Da Ordem Social, Sec. Dos índios Constituição de 1988.

participantes se fizeram presentes, não só com opiniões políticas ou imagens do que é o indígena para cada um desses atores, mas também com os sentidos que os diferentes participantes imprimiram ao processo.

No contexto regional, esse processo de definição entre um grande numero de não indígenas afirmou uma inautêntica indianidade dos Tupinambá, por ela manifestar formas que não tinha sido registradas na região como o uso de cocares ou a participação em rituais como o Porancim, levando a ser vistas como expressões introduzidas pelas organizações indigenistas com o objetivo de afirmar uma fronteira cultural inexistente.

Nesse quadro, a racialização da diferença encontrou um dos argumentos de maior força para afirmar a ambiguidade desses indígenas, declarando na “mistura da sangue” uma ascendência “impura” dos Tupinambá. A existência de fenótipos diversos provaria a não indianidade desse grupo: eram apenas pessoas que aproveitavam o contexto político favorável aos indígenas para reivindicar terras.

Mas, o reconhecimento oficial dos Tupinambá como indígenas trouxe, além de uma disputa pela definição do indígena na região, também um enfrentamento com o indigenismo. Assim, ao conferiram aos Tupinambá formas organizativas distantes da sua realidade, como a do cacique, definiram-se princípios dessa indianidade oficial, trazendo uma representação que não formava parte das expressões políticas e representativas dos Tupinambá, mas que se tornou uma figura central na interlocução com o indigenismo.

Dentro dessa proposta de indianidade pelo indigenismo, a ideia de uma organização política indígena equivalente em todo o Brasil marcou os requisitos para que os Tupinambá construíssem sua relação com as autoridades, desqualificando outras possíveis formas organizativas nas quais eles se tinham representado ou podiam se representar como coletividade.

Também em sua inserção no movimento indígena do Nordeste e nacional, foi exigido aos Tupinambá apresentar marcas de uma indianidade nos termos de uma definição equivalente à do resto dos povos indígenas no Brasil, levando a direcionar sua “luta” ao “resgate” de ornamentos, rituais e tradições que, por um lado, os definissem como indígenas, mas também, por outro, que os identificassem como Tupinambá.

se inseririam para, assim, poder formar parte da coletividade maior de “parentes” brasileiros. Essas formas os integraram formalmente como mais um dos povos indígenas para os próprios povos indígenas no Brasil.

Esses diversos campos de disputa cotidiana pela definição do que é o índio foram respondidos de diversas maneiras pelos Tupinambá, construindo suas próprias definições de indianidade. O desafio de suas contestações aos questionamentos de todos esses atores os foi tornando indígena frente a eles mesmos, frente aos outros indígenas, frente aos não indígenas, frente ao indigenistas, assim como frente aos especialistas.

Desse modo, as definições dos Tupinambá trabalhadas no capitulo II são conceitos com os quais eles criaram uma parte importante de sua proposta de ser e estar índios. Definições ainda em construção e envolvidas por consensos e dissensos, mas que têm criado o contexto em que sua organização coletiva do sentido se estende junto a outros contextos dos quais participam.

Nesse percurso, eles foram fazendo sua indianidade e se fazendo indígenas ao definir o que é “estar na cultura” e se tornando Tupinambá dentro dessa nova relação. Uma questão colocada também à presente analise: eles, ao trasladar sua interlocução de “fora” para “dentro”, se tornaram também Tupinambá para a pesquisa.

Esse processo de se tornar indígenas e Tupinambá se expressa numa série de situações que trabalhamos ao longo do capitulo, mostrando como, em diferentes espaços, os indígenas criam um jogo entre a imagem de um indígena canônico e sua própria imagem. O processo, conforme mostraremos nas seguintes páginas, envolve um percurso ao longo do qual essas disputas moldam sua “luta”, mas também revela que a “luta” por seu reconhecimento como indígenas e o desafio de sua indianidade vai além de direitos e vantagens, e envolve conflitos e riscos dentro de sua relação com a sociedade regional e nacional – a qual considera aos indígenas sujeitos coletivos tutelados, tirando deles o direito a se autodeterminar, se autodefinir e criar seus próprios ideais do indígena ao impor a eles os conceitos derivados da imagem de um índio canônico.