• Nenhum resultado encontrado

Derivações do cânone na construção de Mariana

1. Traduzir o cânone, canonizar as traduções

1.3. Derivações do cânone na construção de Mariana

Reflectir acerca do valor canónico e pensar a tradução, tanto enquanto processo como enquanto produto, quando abordamos as Lettres Portugaises no contexto português, assume um particular interesse e a obra quase não pode ser lida sem se considerar este diálogo entre o texto francês e as suas inúmeras traduções para português. As Lettres representam um caso especial e invulgar na literatura nacional, principalmente por dois motivos: primeiro, porque o texto de partida surge como um texto em segunda mão, como tradução francesa de um original português perdido, ao qual se procura chegar por meio da re-tradução ou da re-versão portuguesa e cujo lugar na tradição literária é preciso definir; depois, porque é necessário perceber o modo como a tradução das Lettres participa na formação do cânone literário em Portugal.

33 A publicação das Lettres Portugaises, apresentadas na sua primeira edição como uma tradução francesa, constituiu um fenómeno editorial de popularidade que se prolongou no tempo e se estendeu no espaço, não só pelas múltiplas edições subsequentes, em diversas línguas, mas sobretudo pela polémica que se criou em França, em torno da autenticidade ou ficcionalidade da obra e do direito francês ou português à originalidade literária, gerando uma vaga de textos, desenvolvimentos, respostas, discursos, comentários, traduções e reescritas.

O contexto de recepção das Lettres Portugaises em França é extremamente importante para se entender o sucesso editorial e a fortuna literária que o texto obteve junto do público francês da segunda metade de Seiscentos. Na realidade, o século XVII francês é marcado pelo romanesco dos grandes e volumosos romances como L’Astrée, de Honoré d’Urfé, publicado entre 1607 e 1627, ou Clélie, de Mlle de Scudéry (1654), bem conhecido pela famosa descrição do «Pays de Tendre»17. Verdadeiros compêndios

de amor e de «savoir-vivre», estes romances oferecem ao leitor lições teóricas e práticas do comportamento amoroso para os apaixonados, constituindo verdadeiras «escolas do amor» (Pelous 1980: 38). No entanto, esta concepção idílica e perfeita da sensibilidade amorosa e da conquista, frequentemente apresentada e descrita, cansou o público da época, sobretudo por não se adequar à nova mentalidade emergente e por não corresponder ao que realmente se passava na sociedade mundana do século XVII, tornando-se uma verdadeira utopia, segundo a qual o mundo seria governado e gerido pelas leis do amor inacessível. Deste modo, opera-se uma espécie de ruptura na mentalidade da época de Luís XIV, o amor platónico deixa de agradar e as relações passam a identificar-se com uma nova forma de entender e de expressar o amor, mais aberta, mais próxima, mais feliz e mais livre, associada ao prazer dos sentidos e à concretização física, que ficou conhecida por «amour galant» ou «galanterie»18. O

17 O «pays de Tendre», alegoria do percurso amoroso, representa uma verdadeira geografia do reino do

amor que se inicia em «Doux-regards», passa pelas «Inquiétudes», pelos «Soupirs», chega a «Entreprendre» e, finalmente, a «Jouissance»(a capital do reino) e segue para «Satiété» até que reparte para uma nova aventura. O perfeito amor de «Tendre» impõe aos amantes uma atitude de adoração e sofrimento, deve ser entendido na sua pureza inicial e evoluir lentamente, colocando a mulher numa posição de superioridade relativamente ao homem. O amante, possuidor de três virtudes – constância, discrição e submissão – deve submeter-se e obedecer inteiramente à amada e subjugar-se a uma adoração quase muda, a uma devoção religiosa e a um sofrimento consentido, pois nenhum amante é feliz no universo de «Tendre». Mas o código de «Tendre» também impõe à mulher uma certa resistência aos sentimentos e pretende-se que responda, de início, negativamente aos avanços do amante, no sentido de firmar a sua autoridade, quase tirânica, e mostrar o seu poder, sem, contudo, desencorajar o candidato. Ver a este propósito Pelous (1980: 23 e 46).

18 A «galanterie» constitui-se, no século XVII, como um gosto, um fenómeno literário e cultural que

regulamenta, de certa forma e como um jogo, as próprias relações entre os homens e as mulheres da época, e que se manifesta nos códigos, nos costumes e nos gostos. Embora o termo «galant» remonte ao século XIII, o vocábulo sofreu uma evolução semântica e designa um homem jovem, dinâmico, enérgico, corajoso, bem-falante, de qualidades intelectuais. Depois, representa o homem que gosta dos prazeres da vida e dos divertimentos e que valoriza a beleza, é o apaixonado, o amante e o sedutor. Frequentemente, «galanterie» pode ser utilizado, por oposição à «belle galanterie» ou «fine galanterie» e em sentido lato, para designar as conquistas amorosas, associadas à libertinagem.

34 homem galante é aquele que gosta de agradar, que tem gosto pelo requinte, que sabe estar, falar, que prima pela delicadeza, pelas boas maneiras; é o oposto do amante «tendre», é inconstante, infiel e insincero nas relações amorosas. A mulher deixa de ser objecto da idolatria masculina, a desigualdade de circunstância entre os sexos desaparece e a indiscrição torna-se essencial para o prazer de amar e para a reputação do amante; não há lugar para o ciúme e o sucesso das conquistas torna o «galante» ainda mais atraente e desejado pelas mulheres. Assim, a representação do amor transforma-se e, entre 1650 e 1670, o gosto literário também evolui e o «amour galant» tende a substituir o «amour tendre».

Na literatura galante, era habitual mentir, fingir sentimentos, simular aventuras e imaginar conquistas amorosas, mesmo quando os documentos apresentados, bilhetes ou cartas, eram alegadamente verdadeiros e autênticos. Aliás, era uma prática e uma estratégia discursiva recorrente, na época, apresentar os textos como documentos reais, testemunhos pretensamente verdadeiros, como se de uma exigência literária se tratasse19, sobretudo no romance epistolar. Estamos perante um pacto de ilusão do real

com o leitor, é um jogo de fingimento consentido entre o autor e o público, permitido pela própria ficção. Nas palavras de Jean Rousset, trata-se da «fiction du non-fictif» (2000: 75), isto é, as cartas surgem como um documento autêntico, que não saiu do génio criador do artista mas que resultou das vivências e dos sentimentos de personagens reais que as escreveram, encontradas por um feliz acaso pelo editor que se limitou a recolhê-las, coligi-las e dá-las ao público. O autor demarca-se da sua própria obra, anula-se perante o seu texto, finge não existir para dar lugar a essa ficção do real20

e, através da ficção, excluir a própria ficção, pois é para

«mieux apparaître que le romancier se dissimule; ce n’est de sa part qu’une habileté de plus: il feint de s’abstenir pour opérer plus sûrement, il s’efface devant la réalité pour inventer une nouvelle réalité. Et le lecteur le sait bien, tout le monde le sait,

A «galanterie» é um novo ideal do amor, pautado pelos jogos de sentidos que pressupõe uma certa distância entre o que se diz, como se diz e o significado das palavras. A «galanterie» identifica-se com o gosto dominante da época e com o próprio Estado, e o «galant homme» tornou-se, no reinado de Luís XIV, um modelo prestigiado de homem que frequenta festas, que gosta da boa conversação e de agradar, e as obras que se referem à «galanterie» multiplicam-se – nomeadamente, incluindo cartas e bilhetes. Para saber mais a este respeito, veja-se Viala (2008) e Pelous (1980).

19 Embora esta «exigência anti-romanesca» se intensifique no século XVIII, é na segunda metade do século

XVII que começa a manifestar-se: «le romancier a mauvaise conscience au XVIIIe siècle, le roman prétend

toujours ne pas être un roman; il n’invente rien, il présente du réel à l’état brut. Ce discrédit du “roman”, à une époque où on en publie tant, se rattache à la tendance, perceptible depuis le milieu du XVIIe siècle, à

constituer le roman contre le romanesque, contre l’arbitraire d’une imagination qui invente indiscrètement» (Rousset 2000: 75).

20 Os autores surgem com um papel de simples colaboradores: por exemplo, Montesquieu apresenta-se

apenas como o tradutor das Lettres Persanes; em La Nouvelle Héloïse, as cartas são «recueillies et publiées par J.-J. Rousseau»; Laclos é o «rédacteur» encarregado de «mettre en ordre» a correspondência das Liaisons Dangeureuses.

35

mais il y a toujours dans la lecture, sous une forme variable, un consentement à l’illusion» (76).

Neste contexto, a publicação e a recepção das Lettres Portugaises representam um caso singular na época, por dois motivos: primeiro porque, insólita e extraordinariamente, a ilusão, a simulação deixou de ser reconhecida pelo público, o pacto com o leitor cessou de funcionar e este facilmente confundiu «la fiction littéraire avec la réalité au point de prendre un habile pastiche pour un document authentique» (Pelous 1980: 299). Depois, porque a ideia romântica do amor, o ideal de simplicidade e de sinceridade, de dizer o amor verdadeiro e a desilusão de Mariana bastaram para atestar e acreditar a verdade e garantir a autenticidade das epístolas21. Além disso,

estas cartas vêm, de certa forma, distinguir-se do artifício e da afectação acostumada da literatura galante em voga na época e marcar a diferença numa sociedade absorvida e viciada pela sensibilidade da «galanterie».

As Lettres Portugaises, «traduzidas em francês», são acrescidas de um texto endereçado «au lecteur», estratégico, bastante vago, com informações imprecisas acerca da história das cartas, mas que vem aumentar o interesse e o mistério e completar o quadro romanesco da relação Mariana/Chamilly:

«J’ai trouvé les moyens, avec beaucoup de soin et de peine, de recouvrer une copie correcte de la traduction de cinq Lettres Portugaises qui ont été écrites à un gentilhomme de qualité, qui servait en Portugal. J’ai vu tous ceux qui se connaissent en sentiments, ou les louer, ou les chercher avec tant d’empressement, que j’ai cru que je leur ferais un singulier plaisir de les imprimer. Je ne sais point le nom de celui auquel on les a écrites, ni de celui qui en a fait la traduction, mais il m’a semblé que je ne devais pas leur déplaire en les rendant publiques. Il est difficile qu’elles n’eussent enfin paru avec des fautes d’impression qui les eussent défigurées» (Guilleragues 1972: 145).

O esforço do editor em obter uma cópia da tradução, anónima, das Cartas dirigidas a um misterioso fidalgo que esteve ao serviço de Portugal representa, de certa forma, um protesto de autenticidade, mas, na realidade e ironicamente, garante e denuncia a ficcionalidade da obra. Este lugar-comum, o tópico do manuscrito encontrado, legitima e autoriza a ficção, isto é, a partir do momento em que um texto é anunciado como um

21 Aliás, ao contrário das cartas de amor galantes, publicar cartas de amor verdadeiro e sincero era

considerado indelicado e grosseiro, como declara Mlle de Scudéry: «On n’écrit des lettres galantes que pour être vues de tout le monde et on n’écrit les lettres d’amour que pour les cacher. Ceux qui reçoivent une belle lettre d’amitié se font honneur en la montrant, et ceux qui reçoivent une belle lettre d’amour se feraient honte en la publiant» (in Bordeaux 1934 : 27).

36 documento verdadeiro, o público entende-o como uma ficção. Não se trata de uma mentira, mas antes de um fingimento, de uma possibilidade do real, de uma verdade mascarada pela própria natureza da ficção, que se encontra no cruzamento da realidade com a ilusão, como explica Jean-Jacques Rousseau, em Rêveries du promeneur solitaire:

«mentir sans profit ni préjudice de soi ni d’autrui n’est pas mentir: ce n’est pas mensonge, c’est fiction.

Les fictions qui ont un objet moral s’appellent apologues ou fables, et comme leur objet n’est ou ne doit être que d’envelopper des vérités utiles sous des formes sensibles et agréables, en pareil cas on ne s’attache guère à cacher le mensonge de fait, qui n’est que l’habit de la vérité, et celui qui ne débite une fable que pour une fable ne ment en aucune façon» (1996: 73).

Este pacto de ilusão, o acordo tácito com o leitor, que deveria ter funcionado para as Lettres Portugaises, falhou, embora muitos tenham percebido o ardiloso arranjo, como Guéret evidencia em Promenade de Saint-Cloud:

«N’est-il pas surprenant combien il s’en est vendu [les Lettres Portugaises]? Et je ne vois point d’autre raison, si ce n’est le charme de la nouveauté, et qu’on a pris plaisir à lire des lettres d’amour d’une religieuse, de quelque manière qu’elles fussent faites, sans considérer que ce titre est le jeu d’un libraire artificieux, qui ne cherche qu’à surprendre le public.» (in Guilleragues 1972: 62)

Lançadas as sementes da curiosidade e da atenção, este brilhante jogo do editor, representou um golpe de sorte, que funcionou muito bem junto do público e que, provavelmente, ultrapassou as expectativas de vendas do editor. A obra parece reunir os ingredientes necessários à receita do sucesso e torna-se tema na ordem do dia das conversas de salão da época: uma mulher, freira, apaixonada, mal-amada e abandonada, enclausurada num país, considerado exótico – Portugal – e, de certa forma, na moda em França pela recente participação francesa nas guerras da Restauração, escreve, debalde, cinco cartas de amor desesperadas, violentas, onde raia o puro amor e a paixão cega por um ingrato oficial francês. Este enredo tem as qualidades próprias de uma novela que vende: o picante do escândalo, o encanto da novidade, o mistério da identidade desta Mariana, a especulação acerca do destinatário das cartas, do seu tradutor e da sua autenticidade/ficcionalidade. Uma obra com estas características torna-se, facilmente, objecto de jogo em salões literários, onde ocupa e entretém o público leitor.

37 Como referimos acima, se o fingimento, próprio deste tipo de publicações, não foi, aparentemente, reconhecido, dá-se, então, início ao debate pelo estatuto do texto e a crença na autenticidade assentou, possivelmente, num falso silogismo: a sinceridade é necessária à expressão da veemência da paixão, as Lettres representam um amor verdadeiro e uma paixão desregrada, logo as Lettres são autênticas. Como se a sinceridade fosse apanágio exclusivo da verdade e da realidade ou como se a arte e a sinceridade fossem incompatíveis, como propõe Alexandre Cionarescu:

«Il n’y a dans les Lettres Portugaises d’autre sincérité que celle de l’artiste, – et encore! On n’aura jamais fini de se demander s’il n’y a pas incompatibilité entre art et sincérité. C’est peut-être plus important que la sincérité éventuelle d’une amoureuse qui n’a jamais existé.» (1963: 327)

A confusão deu rapidamente lugar à convicção e a autenticidade das Lettres foi comummente admitida pelo público. As Lettres Portugaises tornam-se então um modelo na escrita epistolar e escrever «uma portuguesa» passa a significar redigir uma carta num estilo apaixonado, afectuoso e sincero22. Além disso, quando surge a revelação de

Boissonade sobre Mariana Alcoforado, freira num convento em Beja23, e começam a

ouvir-se em Portugal os primeiros ecos dessa correspondência, através das traduções para português de Filinto Elísio, em 1819, e de José Maria de Sousa Botelho, em 1824, instaura-se uma verdadeira disputa pela pertença autoral das Cartas.

A partir deste momento, ressoa, em Portugal, uma verdadeira luta pela defesa de Mariana Alcoforado, numa tentativa de a inscrever na História e de integrar as Lettres Portugaises no cânone da literatura nacional. Sucede-se todo um trabalho de investigação histórica visando a descoberta da freira de Beja, estudos e traduções da obra são levados a cabo por diversos intelectuais portugueses, ao longo de todo o século XIX e do século XX, tanto para libertar Mariana da posse francesa e restituí-la a Portugal, como para reivindicar o seu estatuto ficcional francês.

Se o valor canónico das Lettres Portugaises parece ser inegável e indiscutível, já o seu enquadramento numa literatura nacional – francesa ou portuguesa – foi bastante mais contestado e discutido ao longo dos tempos. A questão aparentemente duvidosa e incerta do estatuto do texto – referencial ou ficcional –, a ausência de nome de autor e a consequente indefinição de uma identidade linguística, nacional, histórica e literária,

22 Escrever «une portugaise» para Mme de Sévigné significava redigir uma carta de tom apaixonado e

sincero: «Brancas […] m’a écrit une lettre si tendre, que […] si je lui faisais une réponse sur le même ton, ce serait une portugaise» (in Guilleragues 1990: 11).

23 A propósito das Lettres Portugaises, no Journal de l’Empire, de 5 de Janeiro de 1810, Boissonade refere

que do seu exemplar constava uma nota manuscrita e anónima que deslindava o mistério da autoria (in Guilleragues 1972: 74-75).

38 e, ainda, a inexistência de um original português determinaram os rios de tinta que correram sobre a obra, em torno dos seus presumíveis autores – Guilleragues ou Mariana Alcoforado –, e explica o impasse que se criou na inscrição canónica e nacional do texto. Dito de outro modo, sobretudo a partir do momento em que se descobriram provas reais da existência da freira, os portugueses rapidamente admitiram o seu estatuto nacional, mas a ausência do original e os sucessivos argumentos contra a autoria de Mariana, que foram surgindo, dificultaram esse trabalho.

Parece-nos que a obra possui três dos requisitos essenciais exigidos a um «clássico»: apresenta valor estético, literário e cultural ao ponto de ser considerado a primeira incursão do romance epistolar em França; foi objecto da atenção e do comentário contínuo e continuado por parte da crítica, primeiro nos salões literários franceses do século XVII, depois em vários países da Europa e a propósito das múltiplas traduções a que deu lugar, e, a partir da primeira metade do século XIX, também em Portugal; além disso, a obra inscreveu-se no cânone em função da(s) leitura(s) e da interpretação a que foi sujeita. Todavia, é interessante analisar e perceber o feliz destino não só das Lettres, mas sobretudo de Mariana Alcoforado em Portugal e todo o esforço que se fez para descobrir e naturalizar a freira, encontrar traços de portugalidade nas Cartas, e o entusiasmo com que se cedeu à ilusão de um qualquer direito nacional e canónico ao texto.

Assim, parece-nos que podemos afirmar que, em Portugal, o processo canónico das Lettres Portugaises se construiu através de um duplo processo de nacionalização: por um lado, contemplou o texto epistolar, por outro, a sua pseudo-autora. Do primeiro resultou um intenso trabalho tradutológico e uma certa frustração pela ruína das aspirações à posse do texto; do segundo, derivou um mito nacional, que encontrou na cultura portuguesa um berço e um terreno fértil para prosperar e para se enraizar de forma a identificar-se e a confundir-se com a própria nacionalidade.

Na realidade, como analisaremos mais adiante, a figura da freira Mariana Alcoforado foi sendo construída, por colagem à personagem de Mariana do texto das Lettres, sobretudo a partir de 1888, e tornou-se numa espécie de símbolo da cultura nacional, cujo pretenso sentir foi reconhecido como a sensibilidade tipicamente portuguesa, ideia que perdurou até aos nossos dias. Ainda assim, a identificação da figura histórica de Mariana Alcoforado, freira no Convento da Conceição, em Beja, com a personagem de ficção das Lettres Portugaises encontrou uma minoria resistente em Portugal e nem todos partilharam da tese alcoforadista.

O cânone, entendido como um elenco de obras e autores representativos de uma certa cultura histórica e literária, fixa-se, sobrevive e difunde-se também por meio de instituições do poder, nomeadamente a instituição escolar. A escola, através de

39 programas curriculares, da organização de compêndios, de histórias da literatura, de poéticas ou de antologias, será, portanto, uma forma de legitimação dos clássicos, dos textos com capacidade formativa, de acordo com uma determinada ordem nacional e ideológica instituída.

A partir da criação do Ministério da Instrução Pública, em 1870, a educação foi um das principais áreas de actuação do governo, mas é sobretudo depois da implementação da República que a «educação republicana» 24 assume como

preocupação fundamental uma educação «interessada na criação e consolidação de uma nova maneira de ser português, capaz de expurgar a Nação de quantos males a tinham mantido, e mantinham, arredada do progresso europeu» (Carvalho 1996: 651), assente num projecto de orientação essencialmente nacionalista. No que toca ao ensino da literatura, as matérias estudadas são manipuladas no sentido de instruir o aluno na adoração à pátria e no conhecimento da nação.

Durante a primeira República (1910-1926), a inclusão das Lettres Portugaises nos programas escolares vai acontecendo de forma indirecta, como aponta Maribel Paradinha (2006: 126), através de manuais de história literária. Porém, estes abordam menos o valor literário do texto do que a questão da autoria e o valor cultural e simbólico