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Capítulo 3 – Pragmatismo e Influência

3.1. A “Fórmula Macau” e o imperativo de manutenção do status quo

3.1.1. O desafio britânico ao status quo

O Reino Unido procurava assegurar desde há muito uma base comercial fixa na China para potenciar o seu comércio no país. Durante o séc. XVIII, a

East India Company

tornara-se dependente do comércio do ópio da Índia – proibido na China por vários Éditos imperiais – para Cantão. A prata que recebia pela venda era de seguida utilizada para adquirir chá. Macau, ao garantir maiores facilidades que Cantão para a entrada do ópio na China, foi durante muito tempo um ponto estratégico neste comércio com a anuência do Senado, do Governador e do vice-rei (Puga, 2009: 123-127). Não querendo permanecer dependentes dos portugueses para introduzir o ópio na China, a apropriação de Macau tornou-se um objetivo britânico e um dos

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principais objetivos da famosa embaixada de George Macartney ao Imperador Qianlong em 1793 era conseguir para o Reino Unido a concessão de um enclave como Macau e melhores condições no comércio em Cantão (Puga, 2009: 152-153). O fracasso rotundo da embaixada britânica, para o qual terá contribuído a ação de Jesuítas portugueses na corte (Abreu, 2004: 144-147), fez com que voltassem as suas atenções para Macau (Puga, 2009: 154).

No contexto das Guerras Napoleónicas, as incursões da França na Ásia ofereceram o pretexto para uma ocupação britânica dos territórios portugueses, alegando que esta era de carácter meramente preventivo e provisório: nos termos do tratado de aliança Luso-Inglês, a Inglaterra comprometia-se a defender o Império Português (Jesus, 1902: 176). O Reino Unido adotou assim uma estratégia de apropriação dos territórios portugueses assente numa “

politique

d’annexion camouflée officiellement en politique de protection

” (Carreira, 2007). Um dos

principais exemplos desta abordagem deu-se em 1802: Lord Mornington, Governador da Índia Britânica, procurou por todos os meios que as conversações em curso entre a França e a Inglaterra (que resultariam na assinatura do Tratado de Paz de Amiens9 em março de 1802) não

fossem do conhecimento dos portugueses na Índia. Em janeiro, num momento em que tropas britânicas ocupavam Goa, Lord Mornington exige ao Governador de Goa Francisco António de Veiga Cabral a transferência do poder civil, político e militar para os britânicos (Carreira, 2007: 116-119). Na resolução desta crise, foi decisivo o papel do Governador de Macau, José Manuel Pinto, e do Senado, que revelaram uma importante convergência num cenário de risco para o Território e souberam utilizar os receios da China de uma alteração do

status quo

de Macau para resistir às pressões presença britânicas, sem que essa ajuda suscitasse contrapartidas desfavoráveis (Ramos, 2012: 134). José Manuel Pinto informou o Comandante das Forças Navais Britânicas que, devido à condição especial de Macau, o Senado não permitiria qualquer desembarque sem ordens superiores expressas (Guimarães, 1996: 79). Desconfiado da permissividade de Cantão face à ameaça britânica, o Senado enviou uma carta ao Bispo de Pequim, Alexandre de Gouveia, a pedir auxílio, resultando numa convenção que colocou Macau sob proteção imperial. O Jesuíta português José Bernardo de Almeida terá alertado a corte de Pequim dos planos de ocupação do Reino Unido a pretexto de realizar comércio. Foi a última vez que os missionários puderam interceder por Macau, reduzidos a partir de 1804 ao estatuto de

9 O Tratado de Amiens foi um tratado de paz assinado em 25 de março de 1802, na cidade francesa de Amiens,

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vassalos (Jesus, 1902: 177-178). A assinatura da paz de Amiens em março obrigaria finalmente à retirada britânica (Carreira, 2007: 119).

O Reino Unido continuou a não reconhecer a soberania portuguesa sobre Macau, cujas debilidades estruturais e militares o convertiam num alvo fácil (Puga, 2009: 156). A estratégia repetir-se-ia novamente em 1808, em desafio da convenção de 1802 entre Macau e a China e novamente no contexto das Guerras Napoleónicas. De Goa chegaram instruções para não oferecer resistência à incursão britânica, que se concretizou apesar da resistência movida pelo Governador Bernardo de Lemos Faria, que procurou por todos os argumentos evitar o desembarque de uma guarnição britânica superior em número à guarnição portuguesa no Território (Guimarães, 1996: 93). Concretizada a ocupação, Macau seria salvo pela ação diplomática do Ouvidor Miguel de Arriaga junto das autoridades britânicas e mandarínicas. O primeiro aviso chegou do vice-rei de Cantão, esclarecendo que cedência de Macau aos portugueses constituía um favor excecional por parte do Império Chinês, nunca concedido a nenhum outro povo europeu, e que em situação alguma poderiam os britânicos tentar tomá-lo. Macau era parte da China e, a ser necessária a sua defesa, seria levada a cabo por forças chinesas, nunca estrangeiras. Um decreto imperial colocou as forças britânicas perante um ultimato ao anunciar a intervenção de forças chinesas caso se recusassem a partir e o mandarim militar de Nanhai declarou que um exército estava a ser preparado. Nesta altura, dá- se uma tentativa de Goa de substituir o Governador, mas a intervenção dos mandarins assegurou a continuidade de Lemos Faria até à retirada das tropas. Miguel de Arriaga foi decisivo ao conseguir moderar a atitude dos mandarins e negociar com eles o levantamento da interdição do comércio britânico em Cantão – decretada pela China após a ocupação – após a sua retirada do Território (Jesus, 1902: 178-196).

Uma vez mais, a reação de Pequim perante a ameaça de alteração do

status quo

em Macau foi decisiva para impedir que o enclave caísse em mãos britânicas. A China suspeitava das intenções do Reino Unido e, calculando o risco que acarretaria essa presença, comparativamente à portuguesa, concluiu que estavam em risco os seus interesses vitais e adotou uma atitude bélica na defesa do Território – a manifestação do “paradigma

parabellum

”. O Reino Unido, vendo novamente goradas a sua tentativa de conseguir um estabelecimento permanente na China, no início do séc. XIX intensificava cada vez mais a sua pressão sobre o país, como abordaremos mais adiante.

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