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A língua grega é a primeira a enunciar o paradoxo da assimetria, na medida em que possui um único termo para designar o conceito de reciprocidade, assinala Ricœur (2004b). Trata-se da palavra allelon, “que é traduzida por ‘uns e outros’ ou, mais resumidamente, um e outro’” (RICŒUR, 2006, p. 164). Neste sentido, nosso autor entende que este paradoxo é enfrentado com grande dificuldade pela fenomenologia, “ao derivar a reciprocidade da dissimetria presumidamente originária da relação do eu com outrem” (RICŒUR, 2006, p. 168).

As duas versões fenomenológicas da assimetria são claramente opostas porque tomam como ponto de referência ou o eu, ou o outro. Conforme demonstramos acima, do lado de Husserl, desenvolve-se uma fenomenologia da percepção, a partir de uma abordagem teorética. Levinas, por sua vez, estabelece uma abordagem ética e que ultrapassa, isto é, vai além da ontologia. Nesta acepção, Ricœur menciona que,

as duas abordagens possuem sua legitimidade e nosso próprio discurso não exige de modo algum que decidamos em favor de alguma delas; o que nos importa aqui é a seriedade com a qual cada um dos dois parceiros procura superar a dissimetria que, de uma certa maneira, persiste como pano de fundo das experiências de reciprocidade e não deixa de fazer aparecer a reciprocidade como uma superação sempre inacabada da dissimetria (2006, p. 168).

Dentre as duas abordagens, a mais audaciosa e radical, segundo Ricœur (2004b) é a da

Quinta meditação cartesiana. A audácia husserliana consiste em derivar o alter ego do ego e

depois constituir a comunidade de egos a partir do alter ego. Neste caso, a dissimetria se impõe “pelo caráter originário da autossuficiência do ego sob o regime da redução de toda transcendência natural a uma consciência transcendental para a qual toda realidade é oriunda da autoexplicitação [...] de meu ego como sujeito de todo conhecimento possível147” (RICŒUR, 2004b, p. 247, tradução nossa, grifos do autor).

Diante disso, o desafio à egologia husserliana é, conforme demonstramos acima, a objeção ao solipsismo, uma vez que a constituição do outro como fenômeno depende da esfera do próprio, centrada no corpo carnal e sem referência alguma ao exterior desta esfera, ao outro. A respeito deste desafio, Ricœur assinala que é por meio da apreensão analogizante que a “carne minha oferece-se como análogon primeiro de uma carne outra, cuja experiência

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“Par le caractère originaire de l’autossuffisance de l’ego sous le régime de la réduction de toute transcendance naturelle à une conscience transcendantale pour laquelle toute réalité relève de l’auto-explicitation [...] de mon ego comme sujet de toute connaissance possible”.

imediata, intuitiva, permanecerá para mim para sempre inacessível; desse ponto de vista, ela é a verdade insuperável da dissimetria originária no plano perceptivo e intuitivo” (2006, p. 169).

Esta dissimetria que, de acordo com Ricœur (2004b) se mantém simultaneamente preservada e superada é que deve servir de fundamento para a constituição de um mundo comum com o alter ego e de comunidades históricas que compartilham valores em comum. Por conseguinte, a constituição deste mundo em comum depende de uma relação de reciprocidade. Isto significa, para Ricœur, que se trata

de uma constituição em segundo grau: é necessário que o outro seja meu análogo para que a experiência do eu entre em composição com a experiência de outrem com base na reciprocidade, embora essas constituições em cadeia extraiam seus sentidos da experiência originária de eu mesmo como ego. Para uma tal fenomenologia há apenas um ego, multiplicado associativamente148 (2004b, p. 249, tradução nossa, grifos do autor).

Se, por um lado, Ricœur (2004b) considera que Husserl enfrentou a questão da assimetria com audácia, em contrapartida, nosso autor afirma que Levinas é o filósofo da dissimetria. Neste sentido, a inversão149 operada por Levinas em Totalidade e Infinito, na qual o outro aparece como figura central da dissimetria originária, significa uma conquista da exterioridade sem, contudo, ignorar a questão da subjetividade, ou seja, do eu. A este respeito, Ricœur, assinala que, na filosofia levinasiana, o eu

possui sua consistência própria na identificação consigo mesmo que se fecha sobre a fruição de seu mundo. O eu está ‘em casa’ nesse mundo em que habita. O estranho é aquele que perturba o que está ‘em casa’. O mesmo e o outro entram em uma relação cujos termos jamais formarão uma totalidade (2006, p. 172, grifos do autor).

Por conseguinte, o desafio da reciprocidade também é assumido por Levinas (1980). Neste caso, a relação jamais poderá ser totalizante, isto é, uma redução do Outro ao Mesmo. A este respeito, Ricœur assinala que “uma relação na qual o eu e o outro se tornariam intercambiáveis reconduziria, indo para trás, do infinito à totalidade” (2006, p. 173). Ademais,

148 “D’une constitution au second degré : il faut que l’autre soit mon analogue pour qu’en outre l’expérience du

moi entre en composition avec l’expérience d’autrui sur une base de réciprocité, bien que ces constitutions en chaîne tirent leur sens de l’expérience originaire de moi-même comme ego. Pour une telle phénoménologie, il n’y a qu’un ego, multiplié associativement”.

149 Ricœur considera que “ce renversement est lié à un retournement plus fondamental qui place l’éthique en

position de philosophie première par rapport à l’ontologie. Dans Totalité et Infini, l’idée d’être est assimilée au processus d’assimilation de toutes les différences, y compris celles instituées entre moi et autrui dans une phénoménologie de la perception comme celle de Husserl. À cet égard, les deux idées d’être et de totalité se recouvrent et celle d’infini fait exception” (2004b, p. 251, grifo do autor).

esta filosofia da assimetria originária, que concede a primazia ética ao outro, somente estabelece a reciprocidade entre parceiros desiguais por meio da bondade, do serviço e da hospitalidade. A este respeito, Levinas menciona que

a metafísica ou relação com o Outro se realiza como serviço e como hospitalidade. Na medida em que o rosto de Outrem nos põe em relação com o terceiro, a relação metafísica de Mim a Outrem se molda na forma do Nós, aspira a um Estado, às instituições, às leis, que são a fonte da universalidade (1980, p. 280).

Neste sentido, a universalidade da lei implica no conceito de justiça, uma vez que, segundo Levinas, em Outramente que ser ou mais-além da essência, é necessário que se faça “uma justiça entre os incomparáveis” (2012, p. 179).

Enfim, de acordo com Ricœur, enuncia-se aqui o enigma com o qual se deparam as “duas versões da assimetria originária entre o eu e o outro. Quer se parta do polo ego ou do polo alter, trata-se a cada vez de comparar os incomparáveis e assim igualá-los150” (2004b, p. 256, tradução nossa, grifos do autor).

Este enigma, ou ainda, esta “ponta subversiva da dissimetria originária151” (RICŒUR,

2004b, p. 257, tradução nossa), deverá contribuir para que a alteridade seja preservada por meio da mutualidade do dom e do contradom, evitando que a luta por reconhecimento conflua para a violência da luta de todos contra todos152.

150 “Deux versions de l’asymétrie originaire entre moi et l’autre. Que l’on parte du pôle ego ou du pôle alter, il

s’agit chaque fois de comparer des incomparables et ainsi de les égaliser”. A este respeito, Ricœur afirma que “peut-être fallait-il partir de deux dissymétries : la dissymétrie moi-tu dans le sens de la connaissance, la dissymétrie tu-moi dans l’ordre éthique, pour comprendre par cette dissymétrie croisée, en quelque sorte, la mutualité et la réciprocité, et par là même, je dirai, arracher ce concept de mutualité à sa banalité (1991c, p. 10)”.

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“Pointe subversive de la dissymétrie originaire”.

152 No texto Alteridade e reconhecimento mútuo em Paul Ricœur: viver bem com e para o outro, propomos uma

3 O RECONHECIMENTO