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Descentramento filosófico dos sentidos em Heráclito

Dentre os filósofos que Jaquet chama de pré-socráticos, alguns são vislumbrados como figuras hipotéticas enquanto ilustram atitudes que servem à elaboração de condições para uma olfatologia (JAQUET, 2010 p.319). Entre os antigos filósofos jônicos, perfilaram-se conceitos que conectaram a teoria da percepção ao sentido olfativo; é o caso do conceito de exalação (anathumiasis) de Heráclito, e do de eflúvio (aporreon), empedoclesiano.

Ateemo-nos aos fragmentos do filósofo de Éfeso.

Heráclito considerou os sentidos da visão e da audição como mais importantes para o conhecimento. Segundo Jaquet, porém, a prova da inexistência de uma sólida hierarquia entre os sentidos em sua filosofia estaria gravada no fragmento segundo o qual “se todos os seres em fumaça se tornassem, o nariz distingui-los-ia.” (HERÁCLITO, 1996, p.88), citado a propósito de sua teoria da exalação em Da Sensação e dos Sensíveis [5, 443a23-30])134. Sob tal teoria, o odor é uma exalação esfumaçada proveniente da terra e do mar, não do fogo. Porquanto as exalações fumegantes não são como a fumaça que conhecemos habitualmente, e sim invisíveis, se todas as coisas viessem a ser fumaça desse modo, incumbir-se-ia ao olfato o papel de distingui-las.

A intimidade entre a filosofia de Heráclito e a sensibilidade olfativa ultrapassa ainda essa pressuposição – lembremo-nos de que Jaquet alertara que sua interpretação, a seguir, é imaginativa. Como o fogo elementar, sendo o logos divino comum a todos os seres humanos, é o princípio de todas as coisas, e a alma do mundo é uma exalação a partir da qual todas as outras coisas são constituídas (informação deste comentário de Aetius: “Heráclito disse que a alma do mundo é uma exalação proveniente dos princípios húmidos que estão nele, e que a que existe nos animais provêm ao mesmo tempo da exalação exterior e da exalação interna, ambas as quais são da mesma natureza” (AETIUS APUD JAQUET, 2010, p.336)), o nariz heraclitiano, além de detectar exalações, permite a participação humana com a razão divina através da respiração – função ativada pelos poros do corpo e a boca –, pelo que o

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Talvez o que levou Heráclito a formular esse silogismo fora a tese da conflagração universal; disso, supõe-se que todas as coisas viraram e virarão fumaça em determinado momento. Mas neste momento, atenta Jaquet, nada poderia ser percebido, nem mesmo a fumaça, pois o mundo sensível teria sido destruído, bem como os seres vivos que percebem.

respirar é “participar do divino e se comunicar com ele” (ibidem, p.338). Em última instância, a olfação é o devir da natureza que “circula da razão ao nariz” (ibidem, p.339). Nesses termos, há uma filosofia das narinas que conjuga a “exalação e a inalação da verdade” (idem) à medida que a verdade se insufla pelo nariz do ser humano quando ele respira a inteligência (noûs). Tem-se configurada uma teoria da percepção e do conhecimento associada à experiência olfativa pelo conceito de exalação.

Mas se com Heráclito a suprema distinção, a distinção entre ser e não-ser, é abolida, e não obstante isso remanesce aquela entre entendimento e sensibilidade, pois que o logos eterno se separa da visão e da audição do mesmo modo como, caso dele não compartilhem, os homens dormem despertos, então o logos é o ser parmenídico de Heráclito assim como a sensibilidade é o devir heraclitiano de Parmênides.

Seguindo uma linha de interpretação diferente da de Jaquet, sugerimos que o fragmento sobre a fumaça é um profundo exercício de descentramento filosófico, conduto ao espanto que não sem razão filósofos posteriores disseram ser a origem da filosofia. Esse exercício lhe era comum e está em fragmentos sobre hábitos de animais, como os seguintes: “Porcos banham-se em lama e aves domésticas em poeira ou em cinza” (HERÁCLITO, 1996, p.91), “Diverso é o prazer do cavalo, do cão, do homem, tal como Heráclito diz que os asnos prefeririam palha a ouro” (ibidem, p.88) e “Os porcos se comprazem mais com a lama”. Neste último, por exemplo, Heráclito não se coloca no lugar do porco para mostrar que o animal tem um valor de bom diferente do que é o bem do ser humano. Não é a “felicidade de porco” de Stuart Mill que daí se depreende, nem a da vaca sem memória de Nietzsche, ambos com suas felicidades singulares incomensuráveis. Tampouco ele comunica uma forma de vida incompreensível para o ser humano como a dos leões de Wittgenstein, nem se trata, ao contrário, de um experimento pitagórico de transmigração e reminiscência de vidas já vividas, como quando Empédocles recorda já ter sido pássaro e peixe mudo no mar. Quase é, e não é, a válida crítica de Xenófanes ao antropocentrismo, de que os deuses dos bois e das vacas parecer-se-iam com vacas e bois.

Analogamente, que se todas as coisas em fumaça se transformassem, essa não é uma ideia compreensível sob a teoria do logos ou no contexto de seu aparecimento no Da Sensação. Faz parte de um exercício oracular de descentramento filosófico gerador de assombro. Heráclito cria espanto, que pode ser um fundamento ético

relativamente aos animais não-humanos. Compreendido assim, o fragmento introduz-nos a uma pesquisa sobre o estatuto ontológico da olfação desvinculado de sua determinação antropocêntrica, pela qual passamos a divisar o teor ético de um conceito de arte.

Por havermos descoberto no Nível Estético que a distinção cada vez mais solidificada entre sensibilidade e entendimento espelha em si a entre animal e humano fundamentada de maneira especista, compreende-se que o especismo dificulta indiretamente o reconhecimento do perfumista como artista e do perfume como obra de arte. As reflexões sobre a perfumaria já deveriam partir de uma radical problematização da determinação antropocêntrica do conceito de arte porque boa parte dos sábios que contemplaram o olfato nos incitaram a pensá-lo em sua passividade diante da civilização, passagens em que em geral defenderam que esse sentido teria se modificado significativamente quando o ser humano veio a ser humano. Por outro lado, sabe-se que o homo neanderthalensis apreciava flores por seu cheiro e é de se supor que o primeiro perfume, enquanto “por meio do fumaçar”, tenha sido inventado pelo homo erectus, uma vez que o fogo começou a ser manipulado há cerca de 300 mil anos135.

A via que se nos abre quando questionamos os fundamentos comportamentais especistas daquela distinção não é a pergunta quase mal colocada de se animais fazem obras de arte. O questionamento sobre o que é a arte é o que nos leva a pôr em questão a distinção entre humano e não-humano. Esta, em seu comportamento tradicional, acompanha o da distinção entre sensibilidade e entendimento anteriormente analisada. Sob um pano-de-fundo sensista, tende a se petrificar: presume-se que quanto mais olfativo for um ser humano, tanto mais primitivo e selvagem será (lembremo-nos dos ditos de Von Krafft-Ebing e Max Nordau). Todavia, não optaremos por julgar a perfumaria como autêntica forma de arte para descobrirmos como a olfação pode ser autenticamente humana também, já que como ainda não sabemos o que é a arte, a estratégia de valorização do olfato como autêntico e consequentemente menos animal, está sob suspeita.

A superação da limitação antropocêntrica da olfação conduz-nos à percepção da multiplicidade de relações cognitivas e sensoriais

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A ideia de que os primeiros hominídeos, como o homo erectus, não foram meros ladrões de carcaças, mas hábeis caçadores, está sendo revisada; dado isso, não seria impróprio investigar se o homo erectus possuía cultura olfativa mais ativa (FLANDRIN; MONTANARI, 1998, p.27).

instauradas com ela. Isso acontece em discursos científicos especializados enquanto fisiologia aplicada sobre pessoas ou seres vivos não-humanos. Essa pesquisa, que encontra em meios acadêmicos o seu maior grau de sofisticação independentemente dos usos instrumentais que se faça do conhecimento adquirido (o conhecimento sobre a olfação em outras espécies pode atingir níveis eticamente nefastos, como a criação de insetos geneticamente modificados anósmicos para não mais serem pragas), quando é internalizada filosoficamente no curso de um estudo sobre o estatuto ontológico da olfação, atribui à experiência aquele valor em si mesmo que emerge com a experienciação de certos perfumes ou com a compreensão do odor por meio do procedimento sinestésico. Mas em vez de defendermos algum valor em si mesmo para a olfação, fundando sub-repticiamente uma distinção entre valor acidental e absoluto, instrumental e artístico, as relações entre linguagem e olfação, sob a simultaneidade do estatuto ontológico do perfume e do odor, deverão ser tais que problematizem tais distinções. Deste modo, os pontos trilhados serão afluentes formando um caminho principal de questionamento que desembocará no Nível Teorético, quando tais pontos levarão à formulação de um conceito de arte.