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Descoberta da tumba e o início do empenho monárquico

Capítulo 3: Uso político do culto jacobeu Organização do Caminho, estruturação do poder

3.2 Descoberta da tumba e o início do empenho monárquico

Uma vez que a notícia de que o bispo Teodomiro havia encontrado a tumba jacobeia, o poder temporal já buscou formas de estruturar o culto ao apóstolo. O rei Afonso II, o Casto logo tratou, com o auxílio do próprio bispo, de conhecer o lugar e de mandar edificar uma igreja, ainda muito humilde e de arquitetura pré-românica, onde se encontrava o corpo do apóstolo. A construção, feita de pedra e barro, fora prioridade naquele momento para que houvesse uma rápida formação de uma comunidade eclesiástica permanente, composta inicialmente por 12 monges, no locus sanctus.

A partir de então, a despeito da ruralidade ainda presente, nasce ali um núcleo urbano que, para o historiador Francisco Singul, não havia sido planejado, uma vez que a intenção do rei era tão somente constituir um grupo monástico que cuidasse das relíquias e se dedicasse à devoção do santo. Ele cita López Alsina, o qual aponta que a criação de uma cidade acabou sendo um ato espontâneo de fé e não intencional137. De qualquer maneira, ainda no reinado de Afonso II, o local vai tomando seus primeiros contornos apontando uma tendência urbanística e encontramos aqui mais uma participação deste monarca: uma doação de três hectares para a igreja de São

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Tiago. Desde então, o crescimento da cidade passou a ser contínuo, chegando a 30 hectares no ano de 1050.

O mesmo autor cita um documento feito pelo rei Casto no ano de 834 no qual ele indicava que Tiago Maior não era patrono apenas do reino das Astúrias, mas de toda a Hispania – Patronum et Dominum de totius Hispaniae138. Já nos deparamos aqui com o uso da religião como maneira de legitimar o reino cristão ibérico e a resistência pretendida com a Reconquista, que naquele momento vinha sendo cruel com os cristãos. Afonso II, que “presidiu horas de angústia”139, desejava uma forte unidade para lutar contra os muçulmanos e ter a benção do apóstolo naquele momento significava uma fonte de integração político-religiosa em torno da legitimação da predicação apostólica peninsular. A herança política visigoda restaurada pelo rei Pelayo fazia-se então cada vez mais presente no Asturorum Regnum.

Afonso III, o Magno (Astúrias, 866 – 910) foi responsável pela construção de uma nova igreja, mandando derrubar a construção tão humilde feita algumas décadas antes. A peregrinação ainda era local, mas vinha se avolumando. Paralelamente, a reputação das peregrinações a Santiago levaria à mudança da sede episcopal de Iria Flavia para Compostela. Vázquez de Parga menciona140 algumas doações feitas em honra a São Tiago por este monarca, mesmo que ainda não em prol de uma prática caritativa, mas já com a intenção de melhorar o local do culto e divulgá-lo. Entre as doações, sabe-se da cruz de ouro que fez parte do dote concedido à nova igreja em 874, pelo rei e sua esposa, dona Gimena. A cruz, infelizmente, foi roubada no início do século XX e não mais encontrada.

Outras concessões foram feitas pelos mesmos reis, em geral, territoriais, como em Bierzo e Coimbra. Um fato chama atenção aqui: há doações, como no caso de Coimbra, de territórios recém-reconquistados, talvez uma estratégia de povoar rapidamente com cristãos locais que há pouco estavam sob domínio mouro. Aliás, foi no reinado de Afonso III que os cristãos surpreendentemente conseguiram uma guinada e obtiveram uma boa fase expansionista na luta contra os muçulmanos, mesmo período em que a difusão do culto jacobeu experimentou um forte avanço. Isso se deu provavelmente dado o esforço monárquico em divulgá-lo, através da historiografia oficial.

138Ibid., p. 49.

139SÁNCHEZ-ALBORNOZ, C. Op. Cit., t. 2, p. 272.

Foi uma fase em que a monarquia identificou o perdão divino dos pecados cometidos pelos últimos reis visigodos, os quais teriam sido a causa das vitórias muçulmanas que assolaram a região e acabaram com o reinado de Rodrigo. A descoberta da tumba e a crença de que ela era de São Tiago tornou-se o símbolo deste perdão, indicando que o castigo começaria a ser revertido. Deus, “compadecido da aflita cristandade espanhola, delegava a seu Apóstolo que a protegesse dali em diante como patrono celestial, como os senhores terrenos defendiam e protegiam os seus apadrinhados”141. A partir de então, consolidar-se-ia pouco a pouco nas décadas seguintes a personalização do auxílio jacobeu e, a mais longo prazo, a já mencionada transformação do santo evangelizador para o santo guerreiro. Para além de grandes reflexões teológicas que a Revelatio - ou a Inventio - poderiam suscitar, fez-se necessário atingir o imaginário daqueles que lutavam nas batalhas da Reconquista de maneira muito mais palpável, através de “uma explicação antropomórfica e realista do milagroso auxílio apostólico”142.

Os sucessores de Afonso III mantiveram-se nessa mesma linha de reforçar constantemente a proteção jacobeia e o desejo divino de libertar os cristãos dos mouros. Assim, até o fim do século X, temos notícias de sucessivas vitórias daqueles e, ao mesmo tempo, o crédito muitas vezes era dado a São Tiago. A fé em sua participação no processo que vinha dando bons frutos aos cristãos começava a ultrapassar os limites dos Pirineus e o número de visitantes a Compostela aumentava, tendo sido registrado o primeiro peregrino externo à Península Ibérica entre os anos de 950 e 951, o bispo Gotescalco de Le Puy. Apesar disso, no último decênio deste mesmo século a crescente vitória dos cristãos sobre os muçulmanos sofreu uma breve reviravolta com a invasão de Almançor, que adentrou a cidade e destruiu o templo apostólico.

Pode-se pensar que tal vitória dos mouros no ano de 997 poderia ter causado um abalo da crença na certeza de vitória que se consolidava na Cristandade. Contudo, poucos anos mais tarde, aquele que fez questão de adentrar na cidade que tornava-se símbolo da resistência cristã peninsular do norte e destruí-la viria a falecer. Almançor, que morreu em 1002, e sua estirpe não conseguiram atingir o que provavelmente seria sua meta: assolar não só a cidade, mas a própria fé que crescia e dava cada vez mais ânimo aos combatentes cristãos. Pelo contrário, o enfraquecimento muçulmano com a morte do califa e o período de instabilidade e reorganização administrativa da porção árabe da Península foram considerados uma vingança vinda de São

141SÁNCHEZ-ALBORNOZ, C. Op. Cit., t. 1, p. 273. 142Ibid., p. 274.

Tiago. A confiança no apóstolo continuava a se intensificar, a cidade começou a ser reconstruída e a peregrinação era retomada, inclusive por visitantes do além-Pirineus.

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