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“Para se escrever a história do Brasil, é necessário primeiro escrever a história desta nobre província, porque foi ela quem deu a nacionalidade de que tanto se orgulham os brasileiros.” (PEREIRA, José Hygino Duarte)1

2.1 – Avanços historiográficos, resistência da memória

A virada do século XIX para o século XX significou uma reabilitação dos estudos sobre o tempo da ocupação neerlandesa no Brasil Colonial. Como vimos, uma euforia motivada principalmente por uma nostalgia nassoviana predominou no imaginário social. Contra a tradição historiográfica imperial, promotora de um grande apelo à matriz portuguesa de nosso país, uma memória local começou a ser construída exaltando o sentido de uma possível colonização holandesa, a partir da permanência flamenga por vinte e quatro anos no litoral nordeste seiscentista da colônia.

Entretanto, iniciado o século XX, a apologia da colonização neerlandesa foi contestada por historiadores como Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), para quem as verdadeiras Raízes do Brasil nunca deixaram de ser portuguesas. Na publicação datada de 1936, Sérgio Buarque considerou que não houve herança significativa da experiência holandesa do século XVII para a constituição do Brasil como nação.

Neste sentido, a ausência de traços holandeses no caráter do brasileiro pode ser interpretada como uma reafirmação da influência portuguesa decisiva na brasilidade. Embora orientado por outras preocupações próprias do fazer historiográfico em pleno século XX, a narrativa de Sérgio Buarque de Holanda, no que tange à análise da colonização holandesa, exemplifica a resistência da memória nacional construída a partir dos discursos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) no século anterior.

No capítulo intitulado “Trabalho e Aventura”, Buarque de Holanda comparou a curta experiência holandesa na América com os séculos de colonização portuguesa do Brasil. De acordo com o historiador, teriam os flamengos uma capacidade de trabalho e um nível de coesão social superiores aos lusitanos, uma vez que eram dotados de um

1 PEREIRA, José Hygino Duarte. Arquivos Holandeses, 1885-1886 (Original de 1886). In: GALINDO,

Marcos; HULSMAN, Lodewijk (org.). Guia de Fontes para a História do Brasil Holandês: acervos de

manuscritos em arquivos holandeses. Brasília; Recife: Minc, Projeto Resgate; Fundação Joaquim Nabuco,

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“espírito de empreendimento metódico e coordenado”, em contrapartida a “pouca disposição para o trabalho” misturada a um gosto pela aventura dos portugueses2.

Contudo, o maior problema da ocupação holandesa no Brasil, segundo Sérgio Buarque, teria sido o envio de “homens cansados de perseguições”3 como colonos para povoar. De modo que, mesmo os superiores da Companhia das Índias Ocidentais (WIC) não passavam de “aventureiros de toda espécie” para o historiador. No fim, o Pernambuco colonial foi cenário de uma população extremamente cosmopolita e instável, majoritariamente urbana.

Segundo o historiador, o progresso urbano no tempo de dominação flamenga foi mesmo inegável. A “metrópole pernambucana”, dotada de palácios monumentais, parques opulentos, institutos científicos e culturais, contrastava com o restante do Brasil português, de cidades simples e pobres e predominantemente rural.

Desta forma, o período de ocupação holandesa marcaria uma separação irreconciliável entre o engenho e a cidade, em referência à essa divisão clássica entre o rural e o urbano, a qual os holandeses não souberam lidar, segundo Buarque de Holanda. Ao final: “[...] a Nova Holanda exibia dois mundos distintos, duas zonas artificialmente agregadas”4.

Entretanto, o historiador adverte para que não deixemos nos enganar por esse “zelo animador dos holandeses”, afinal, todas as construções desse tempo, mesmo as obras e os organismos políticos e administrativos inaugurados sob a égide do governo flamengo, representariam, na verdade, uma “grandeza de fachada”5. Na opinião de Sérgio Buarque, os holandeses foram incapazes de lidar com a riqueza da terra e, a partir dela, gerar prosperidade para a colônia.

Por não terem sido competentes para vida da lavoura, os neerlandeses não teriam conseguido penetrar na sociedade colonial de modo a deixar vestígios tipicamente flamengos. A partir deste argumento, Buarque de Holanda justifica o insucesso da experiência holandesa. Se “os europeus do Norte são incompatíveis com as regiões tropicais”, o mesmo não se pode dizer dos ibéricos, na opinião do historiador6.

2 HOLANDA, Sérgio Buarque de. “Trabalho e aventura”. In: Raízes do Brasil (Original de 1936). 26. ed.

São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 41-70.

3 Ibidem. p. 62. 4 Ibidem. p. 63. 5 Ibidem. 6 Ibidem. p. 64.

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Os portugueses, em particular, tiveram muito êxito na colonização do Brasil, haja vista o resultado na língua, nos costumes, na religião, entre outros aspectos de ordem cultural. Portanto, no que os holandeses teriam errado, os portugueses acertaram, segundo a interpretação de Sérgio Buarque. Assim, a língua portuguesa teria sido mais acessível para a missionação que a língua neerlandesa, como bem perceberam os predicantes do século XVII.

Com relação ao terreno religioso, o historiador acusou a religião reformada de ter fraca aptidão para aderência, isto é, pequeno apelo à religiosidade popular, não cativando os moradores, nem os índios, nem os negros, uma vez que “não exercitava os sentidos ou a imaginação dessa gente”7, o que explica o fato do protestantismo não ter conseguido significativos prosélitos no Brasil. Neste sentido, Buarque de Holanda considerou a Igreja Católica como mais universalista, cujo catolicismo seria mais aberto à assimilação, isto é, integrava crenças, metamorfoseava seu discurso e, assim, alcançava públicos diversos. Outro fator que teria contribuído para o sucesso da colonização portuguesa, segundo a análise de Sérgio Buarque, foi a plasticidade social cuja frouxidão do caráter português os levou a estabelecer uma relação substantivamente mais próxima da população que os holandeses. Através da proximidade com os índios e os negros, os lusitanos conseguiram aquilo que os neerlandeses sequer passaram perto: a mestiçagem. Enquanto tese central em sua argumentação, o historiador advoga que a mestiçagem foi um “notável elemento de fixação ao meio tropical”, do qual os portugueses souberam retirar vantagens. Ao carecerem de qualquer “orgulho de raça”, os lusitanos conseguiram se misturar e, efetivamente, criaram “uma pátria nova longe da sua”8; em contrapartida, os holandeses não fizeram esse esforço assimilacionista, eis o motivo pelo qual nada conseguiram deixar de herança na colônia. Nas palavras de Sérgio Buarque:

“Ao contrário do que se sucedeu com os holandeses, o português entrou em contato íntimo e frequente com a população de cor. Mais do que nenhum ouro povo da Europa, cedia com docilidade ao prestígio comunicativo dos costumes, da linguagem e das seitas dos indígenas e negros. Americanizava-se ou africanizava-se, conforme fosse preciso.”9

Não que o historiador exaltasse a colonização portuguesa, mas a portugalidade teria sobressaído como elemento constitutivo da nacionalidade brasileira, algo que os

7 Ibidem. p. 65. 8 Ibidem. p. 66. 9 Ibidem. p. 64.

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holandeses jamais atingiram. Contudo, é necessário perceber que Sérgio Buarque, em sua obra, parece lastimar a colonização portuguesa, considerada origem dos arcaísmos deletérios do Brasil.

Na verdade, o resultado desse processo dirigido pelos portugueses na colônia, de maneira predatória, improvisada e descompromissada, teria sido um país com uma estrutura organizacional consideravelmente frouxa e uma sociedade caracterizada pela ausência de coesão. Portanto, não haveria do que se orgulhar em relação à colonização portuguesa, mas seria preciso reconhecer sua eficácia.

Desta feita, é preciso pontuar que seria exatamente na recuperação da colonização lusitana, mais ainda, no reconhecimento das raízes portuguesas do Brasil, que Sérgio Buarque de Holanda toca a tradição historiográfica nacional. A distinção, no entanto, estaria na abordagem da temática: enquanto Varnhagen enaltece a hereditariedade portuguesa do Brasil, Sérgio Buarque a lastima profundamente.

Trata-se, pois, de uma memória nacional muito bem enraizada que emerge no ínterim dos trabalhos historiográficos produzidos no novecentos. A ancestralidade lusitana permanece, ainda que os novos historiadores produzam interpretações altamente originais e radicalmente distintas do fazer historiográfico do século XIX.

Uma das maiores autoridades do século XX no assunto em voga é o historiador José Antônio Gonsalves de Mello (1916-2002). Autor do grande Tempo dos Flamengos:

influência da ocupação holandesa na vida e na cultura do norte do Brasil, publicado pela

primeira vez em 1947, Gonsalves de Mello verticalizou a análise da dominação holandesa no Brasil.

Baseada em exaustiva pesquisa histórica, a obra de Gonsalves de Mello se propõe a analisar a relação que os holandeses estabeleceram com os atores coloniais. Assim, na interpretação social construída pelo historiador, são abordadas as atitudes flamengas para com os negros e a escravidão, os índios e a catequese, os portugueses e a religião católica, e os judeus e a religião israelita, além de estudos particulares investigando a interação dos holandeses com a vida urbana e com a vida rural em Pernambuco seiscentista.

Embora chegue a conclusões divergentes, sobretudo porque a análise sobre a experiência flamenga no Brasil executada por Gonsalves de Mello é bem mais depurada que a breve comparação das colonizações portuguesa e holandesa estabelecida por Sérgio Buarque, o historiador pernambucano segue a linha investigativa do paulista ao verticalizar o foco de análise sobre os aspectos culturais, apenas apontados por Buarque de Holanda.

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Entretanto, é preciso notar que aonde Sérgio Buarque não enxerga permanências relevantes da ocupação holandesa no Brasil, Gonsalves de Mello fareja os vestígios e considera que durante os vinte e quatro de dominação flamenga se formou a consciência de nação brasileira, despertada em oposição ao invasor. Portanto, a presença dos holandeses teria deixado marcas que dificilmente desapareceriam em nosso povo.

Em relação aos paradigmas historiográficos, a distinção das interpretações é basilar, até porque Gonsalves de Mello não insiste na clássica visão da invasão holandesa, optando por uma perspectiva da ocupação flamenga. Em Tempo dos flamengos, a dimensão da conquista é ressaltada no sentido em que a dominação do centro econômico da colônia portuguesa aparece como um empreendimento cuidadosamente preparado pelos holandeses.

O projeto original dos holandeses, conforme o historiador, visava dominar o centro político da colônia, isto é, a Bahia. No entanto, os flamengos somente teriam alcançado êxito em Pernambuco, principalmente devido à remessa de informações que chegavam a Holanda sobre seus portos, antes mesmo da década de 1630, cuja colaboração dos judeus teria um papel de destaque. Desta maneira, o historiador pontua o caráter de permanência da ocupação holandesa e a dificuldade da conquista do interior do território em face à conquista do litoral, consumada em poucos dias10.

Segundo Gonsalves de Mello, foi o embaraço inicial para apossar-se do terreno que levou a uma “lastimosa situação dos invasores”11, isto porque os holandeses optaram por se conservarem próximos aos seus navios e, por isso, se limitaram ao litoral. O motivo principal dessa limitação inicial dos flamengos pode ser atribuído, segundo o historiador, ao pequeno poder defensivo da cidade de Olinda. A insegurança preliminar só teria melhorado à medida que os invasores conseguiram dominar todo o nordeste da colônia.

A partir desta narrativa da conquista, muitas distinções a respeito da história reproduzida pela historiografia tradicional podem ser traçadas. Primeiramente, não foi do ponto de vista português que Gonsalves de Mello escreveu, de modo que a invasão não foi ressaltada como fora na escrita de Varnhagen. Neste sentido, é possível conhecer as estratégias e os planos holandeses, bem como muitos dos aspectos do governo e da administração flamenga.

10 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos: influência da ocupação holandesa na vida

e na cultura do norte do Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007. p. 39-43.

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Quanto à resistência, Gonsalves de Mello considera que, não apenas os portugueses, mas toda a “população pernambucana levantou-se firmemente contra os invasores: durante cinco anos lutou para deter os flamengos superiormente armados e adestrados”12. Ao invés da tradicional exaltação da luta das forças portuguesas, encontramos, na obra de Gonsalves de Mello, “o louvor à constância e à fidelidade pernambucanos”13.

O próprio período caracterizado pelo impasse militar, nos dois primeiros anos da invasão, dos quais Varnhagen exaltara a eficiência da defesa portuguesa em isolar os elementos holandeses no litoral, encontraram uma justificativa diferenciada na narrativa de Gonsalves de Mello. Assim, a retenção inicial dos neerlandeses foi explicada, pelo historiador, do ponto de vista da estratégia de ataque, isto é, como uma opção militar mediante a avaliação das circunstâncias: não avançar no território naquele momento e aguardar o tempo oportuno, visto que a partir de Olinda não havia garantia suficiente.

De acordo com o historiador, os primeiros anos de guerra bagunçaram completamente a vida da capitania, caracterizando a situação colonial como um “estado anárquico”, especialmente em relação ao desenvolvimento de quilombos formados por escravos fugitivos. Por isso, todo o programa de política colonial que havia sido planejado pelos holandeses foi rapidamente substituído por uma simples exploração, para a qual dependeu-se dos senhores da terra, e pelo domínio do comércio14.

Em Tempo dos Flamengos, a ambivalência já pontuada por Sérgio Buarque de Holanda entre o cenário urbano e o ambiente rural de Pernambuco foi incorporada à própria narrativa, de modo que os efeitos da rendição do Arraial do Bom Jesus foram abordados por Gonsalves de Mello em relação aos distintos contextos. De um lado, o historiador relatou o incremento do espaço urbano com o aumento do número de imigrantes, o que originou um verdadeiro surto das obras públicas, sobretudo durante a administração nassoviana.

Enquanto isso, no campo, houve uma corrida, por parte dos holandeses, para a obtenção de engenhos, uma vez que o açúcar sempre foi o objetivo final da Companhia das Índias Ocidentais. Conforme Gonsalves de Mello, o interior teria representado, a julgar pelo testemunho da “insegurança da vida rural” que sobressai na documentação

12 Ibidem. p. 242-243.

13 Ibidem. p. 243. 14 Ibidem. p. 138.

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flamenga15, uma maior resistência à dominação holandesa, oscilando em pequenos momentos de trégua com o clima beligerante constante.

Como podemos notar, a mudança na abordagem da temática, provocou uma nova interpretação. Na perspectiva de análise de Gonsalves de Mello, portanto, houve um novo elemento explicativo dos vinte e quatro anos de dominação flamenga: a colaboração dos brasileiros, assim denominados pelo autor. Não se tratava de obscurecer a face da resistência, tão exaltada pela historiografia nacional, até porque o conflito existiu, mas, fundamentalmente, para Gonsalves de Mello, entre os invasores e os invadidos, isto é, todos os moradores da capitania de Pernambuco que, em maior ou menor grau, tiveram suas vidas desorganizadas e acabaram envolvidos na guerra.

Neste sentido, a rendição do Arraial não significou a absoluta derrota das forças portuguesas, ocasionada pela traição de Calabar, grande culpado, conforme a fórmula clássica varnhageniana. Em Tempo dos Flamengos, Calabar perdeu o protagonismo que tivera em História Geral do Brasil e passara a ser um colaborador dos holandeses dentre outros16.

De fato, os holandeses puderam se apossar, particularmente, dos engenhos, a partir da queda do Arraial, mas os moradores foram se adaptando à nova dominação da colônia. Nas palavras de Gonsalves de Mello: “logo que se convenceram da derrota de suas forças, os brasileiros que não puderam emigrar aceitaram as condições oferecidas pelos flamengos [...].”17

Assim, o período nassoviano foi visto como esse tempo de assimilação, de estabilização do domínio político e econômico flamengo, no qual a população interagiu com os holandeses, representados, especialmente, pela pessoa do Nassau. Um período, segundo a narrativa de Gonsalves de Mello, no qual Pernambuco foi palco de algumas inovações em termos arquitetônicos, urbanísticos, políticos e administrativos em relação ao restante da colônia.

De uma maneira geral, a nostalgia nassoviana se perpetuou em Tempo dos

Flamengos18. Há uma ode à ocupação holandesa do Brasil principalmente em decorrência

15 Ibidem. p. 168.

16 A Domingos Fernandes Calabar, grande traidor para Varnhagen, coube apenas duas notas de Gonsalves

de Mello, com o objetivo de exemplificar os soldados locais empregados da Companhia das Índias Ocidentais e de demonstrar que sua esposa recebeu uma pensão da Companhia das Índias em honra dos serviços por ele prestados aos holandeses. MELLO, José Antônio Gonsalves de. Op. cit. p. 43.

17 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Op. cit. p. 63.

18 O historiador destacou a admiração particular dos brasileiros, dos judeus e dos índios a pessoa de Nassau.

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do governo do Conde de Nassau, quando houve uma organização da capitania, tanto na cidade, que recebeu um incremento populacional e um surto urbanizador; quanto no campo, cuja restauração dos engenhos promoveu um momento de significativa prosperidade econômica, além do próprio fomento à policultura, da qual Nassau era um forte incentivador.

Graças à política conciliatória nassoviana, os senhores de engenhos, maiores lesados pela dominação flamenga, segundo o historiador, por terem perdido o poder político e econômico que possuíam, eram contidos e sua fonte de crédito, mantida. Os moradores estavam afundados em dívidas – além dos impostos e das taxas que deviam pagar aos flamengos pelas suas caixas de açúcar – do mau rendimento das terras, da decadência dos negócios e da pobreza generalizada, motivos suficientes para fermentar um levante armado, que acabou por eclodir em 1645.

Nestes termos, a insurreição pernambucana foi, na interpretação de Gonsalves de Mello, uma revolta iniciada por elementos rurais, na qual participaram negros escravos, lavradores, pequenos proprietários e toda a sorte de moradores do interior. Através da pesquisa em documentos holandeses, o historiador conseguiu perceber que havia rumores circulando sobre a preparação de um movimento contra o governo flamengo.

Apesar das confusas notícias depreendidas de cartas e denúncias da insurreição, o historiador apontou que não se tratava de um levante popular, mas sim de um movimento orquestrado pelos grandes latifundiários. Nas palavras de Gonsalves de Mello: “a insurreição de 1645 foi preparada por senhores de engenho na sua maior parte devedores a flamengos ou judeus na cidade”19. O historiador investigou ainda a relação entre a restauração portuguesa de 1640 com a insurreição pernambucana de 1645, percebendo um notável enfraquecimento do poder holandês no território colonial depois da recuperação da autonomia institucional portuguesa.

Sob este ponto de vista, a interpretação da insurreição pernambucana, outrora convertida em uma luta pela libertação religiosa, no discurso das crônicas; transformada em combate com conotação nacional, berço da brasilidade pela aglutinação dos três elementos formadores da nação orientados para um objetivo comum (a expulsão do invasor), segundo a tradição historiográfica; ganhou um novo sentido: um levante dirigido por uma parcela da sociedade colonial por razões de ordem primordialmente econômicas. “Revolução nascida nas casas-grandes”20, nas palavras de Gonsalves de Mello.

19 MELLO, José Antônio Gonsalves de. Op. cit. p. 173. 20 Ibidem. p. 123.

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Desta forma, foi o período da ocupação holandesa no Brasil uma “época de altos e baixos”21, quando momentos de grande abundância e fartura sucederam outros de extrema penúria. A origem desta vulnerabilidade da dominação flamenga estaria, na consideração do historiador, em dois erros substanciais cometidos logo no início: a incapacidade para conter as forças da resistência, solicitando a ajuda dos moradores e senhores de engenho, e a entrega a mãos pernambucanas da cultura da cana e do fabrico do açúcar22. Tais descuidos holandeses teriam ocasionado uma fragilidade da autoridade, e, possivelmente, teriam contribuído para a perda do controle da região.

Ao contar a História, Gonsalves de Mello não tratou da entrada dos holandeses como uma invasão, embora a referência aos flamengos por meio do termo invasores esteja presente ao longo da narrativa, provavelmente por inspiração da linguagem das fontes. Desta forma, pode afirmar que a escrita do historiador foi profundamente marcada pela comprovação do testemunho histórico através do uso massivo das fontes.

Em crítica aberta à historiografia precedente, Gonsalves de Mello considerou: “é naturalmente um dos vícios da antiga historiografia, que parece considerar mais importante a lição dos ‘mestres’ do que a dos documentos”. Assim, o historiador posiciona-se a favor do compromisso com a fonte e não com alguma espécie de pedagogia cívica ou com o aspecto moralizador da história, preocupações próprias da historiografia nacionalista.

A respeito do suporte documental utilizado para a publicação de Tempo dos

Flamengos, foram consultadas, sobretudo, as grandes coleções trazidas da Holanda por

José Hygino Duarte Pereira e por Alfredo Ferreira de Carvalho, disponíveis no IAHGP, além de bibliografia dispersa sobre o tema reunida pelo autor, o representou uma significativa ampliação no corpus de pesquisa historiográfico sobre o período. A inovação

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