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DESCONSTRUINDO A AMÉRICA CATÓLICA

3 AMÉRICA, OUTRAS AMÉRICAS

2.4 DESCONSTRUINDO A AMÉRICA CATÓLICA

No que se refere a Podres Poderes, tem-se uma canção que, embora se trate de um rock and roll, mesmo assim rarefaz as suas configurações de gênero. Esse longo rock de Caetano possui um certo traço de canto falado e seu título ņ um anagrama paronomástico ņ como é do feitio da arte verbal que engendra as melodias do compositor, sinaliza para a degradação a que ele remete quando fala sobre algumas canções voltadas para as questões sociais do Brasil. Muitas vezes é o próprio cotidiano que incide nessa menção ao mundo degradado. “Podres Poderes” é uma investida forte enquanto crítica da mediocridade de nossa falta de cidadania.

As dez estrofes que compõem essa canção procuram descrever um quadro ilustrativo do Brasil como nação americana. Entre afirmações e questionamentos, ressoa o grito inconformista do sujeito. Para além da queda do muro de Berlim, a existência de um país de língua portuguesa, de dimensão gigante, inserto na periferia do mundo desenvolvido faz com que se cante, em retórica crítico-criativa, suas contradições e desajustes. Os versos da canção apontam os males da degradação que vão desde a boçalidade, do que está além do trivial, até a história da concentração de poder. Assim, questiona: “Será que nunca faremos senão confirmar/A incompetência da América Católica/Que sempre precisará de ridículos tiranos?” O discurso se coloca, na seqüência de seu canto falado, como uma

“estúpida retórica” e a semelhança sonora entre “América católica” e “estúpida retórica” conformam uma rima política.

O questionamento se faz quanto à permanência das tiranias que se estabelecem na América, numa consonância de poder que se divide entre o capital estrangeiro e a ideologia cristã. Efetua-se a retomada de uma canção de Chico Buarque, O que será que será, que se explicita no sujeito que canto-fala: “Será, que será que será que será/Será que essa minha estúpida retórica/Terá que soar, terá que se ouvir/Por mais zil anos?”

Acenando, mais uma vez em seu universo das canções, para as identidades marginais, olhando a periferia do mundo social, afirma:

Enquanto os homens exercem seus podres poderes Índios e padres, bichas, negros e mulheres

E adolescentes fazem o carnaval

A “estúpida retórica” volta-se para as singularidades, os devires marginais que envolvem a “problemática da pluralidade”, segundo Guattari (1993, p.74). A diversidade invade a praça e articular a festa, o carnaval, a orgia, em que os padres, como metonímia do poder (e não devemos esquecer a paronomásia entre

padres e podres), sinalizam para o confronto com essa singularidades, consituindo

eles próprios uma ambigüidade, em que o desvio e a norma se debatem numa só categoria.

O sujeito textual da canção desenha duas temporalidades, nas quais o fascismo dos “podres poderes” é exercido em concomitância com a festa das tribos, que não se deixam abater nem silenciar ao abuso de pode. Isso remete às recentes décadas do século XX, no Brasil, num périplo de 70 a 90, por exemplo. O sujeito projeta colocar-se junto às tribos, aderindo a sua festa, ao desejo das minorias, sem perder o olhar crítico:

Queria querer cantar afinado com eles

Silenciar em respeito ao seu transe, num êxtase Ser indecente

Mas tudo é muito mau

Mesmo que o olhar do sujeito da canção seja de adesão ao desejo dessas tribos, o que em sua reflexão implica em “ser indecente”, uma vez que não concordaria com os sentimentos hipócritas determinados pelo poder, ele reconhece

que “tudo é muito mau”, porque não se trata de, simplesmente, aderir à cena delirante da orgia. Em vez de empregar o intensificador “mais” já utilizado noutra estrofe, agora o julgamento de sua “retórica estúpida” conclui pela relativização em que se faz preciso pensar melhor a respeito de uma tal adesão.

O sujeito prefere fazer ressalvas ao endosso total da festa, como quem reconhece que o problema não se reduz somente a isso. E em seguida, pergunta:

Ou então cada paisano e cada capataz Com sua burrice fará jorrar sangue demais Nos pantanais, nas cidades, caatingas E nos Gerais?

Será que apenas os hermetismos pascoais

Os tons, os mil tons, seus sons e seus dons geniais Nos salvam, nos salvarão dessas trevas

E nada mais?

Seu questionamento encaminha-se para a compreensão de que, visando à superação da mediocridade que se sustenta à base da produção de misérias pelos “podres poderes”, é fundamental a contribuição do contra-poder musical. As referências a ícones da música brasileira ņ Hermeto Paschoal, Tom Jobim, Milton Nascimento ņ fazem com que o seu projeto utópico seja reforçado com a necessidade do exercício de sua “estúpida retórica”. É reiterada a crença do sujeito da canção enquanto persona do intelectual Caetano no valor estabelecido pela qualidade e pela competência do produto musical produzido em nosso país, o qual, pelo menos desde a Bossa Nova, se constitui em produto de exportação e promove a repercussão de uma imagem positiva do Brasil no mundo.

Nas estrofes finais, retoma-se o primeiro verso da canção que, dessa vez, faz com que o sujeito desloque a crítica de um problema cotidiano e aparentemente banal, embora grave, como é a boçalidade irresponsável dos que avançam o sinal de trânsito, para a questão dos genocídios que são cometidos pelas arbitrariedades dos que “exercem os podres poderes”. Veja-se:

Enquanto os homens exercem seus podres poderes Morrer e matar de fome, de raiva e de sede

São tantas vezes gestos naturais

Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo Daqueles que velam pela alegria do mundo Indo mais fundo

O “cantar vagabundo” do sujeito da canção enfatiza a idéia de que os responsáveis “pela alegria do mundo”, aqueles que produzem um objeto simbólico, a canção, que, segundo Wisnik (2004, p.199), está “muito próxima daquilo que conseguimos experimentar em matéria de felicidade humana”, referindo-se à música, confere ao mundo do entretenimento a capacidade de poder estimular a sublimação da tragédia de abusos irreparáveis de sofrimento provocado pelos gerenciam a dor e a miséria do mundo.

É interessante como Caetano problematiza a canção, desde o seu formato tropicalista, investindo-a de reflexão, muitas vezes compondo-a como um discurso, no qual a retórica é um dispositivo crítico que envolve vários discursos num mesmo texto. Assim, a economia, a política, a crítica social e o cotidiano interpenetram-se num conjunto de vozes e ritmos que correspondem às inquietações estéticas da contemporaneidade.

Contrapondo-se ao “critério de classificação das ‘civilizações’”, de Samuel P. Huntington, Veloso (2005) afirma: “Vejo a América como um estágio radicalmente novo da história da cultura ocidental. Traumaticamente lavada em sangue negro e sangue índio”,