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Capítulo IV – As demais partes do corpo do amado (vv 14-15b)

4.6.1 Descrição das mãos do amado

A descrição do amado se detém no corpo. Esta descrição faz com que a figura imaginária do amado se assemelhe às grandes estátuas dos deuses como se narra, por exemplo, no livro de Daniel (cf. Dn 2,32ss; Jr 10,9). Mas o amado não tem os pés de barro como os reis ou deuses descritos pelo profeta, mas sim de ouro (v. 15b).133 Verifica-se uma analogia com as imagens de pedra incrustadas de metais e materiais preciosos encontradas no Egito e na Palestina, datadas do primeiro milênio antes de Cristo.134 Por outro lado, a descrição de Ct 5,10-16 assemelha-se ao mito da vaca celeste: “seus ossos são de prata, seus membros de ouro, e seus cabelos de lapis lazuli verdadeiro”.135 Na representação da princesa Medinet Habu, na qual figuram diversas cenas de harém, escreveu-se sobre uma das célebres princesas de Ramsés III: “teus cabelos são de lapis lazuli, tuas sobrancelhas são pedras, seus olhos malaquitas verdes, tua boca, jaspe vermelha”.136 No Crescente Fértil antigo, era costume antigo descrever partes do corpo de deus e monarcas em comparação com metais ou pedras preciosas em modo análogo ao que se realizou nos vv. 14-15ab.137

132 Cf. LOPRIENO, Antonio. Searching for a common backgorund: Egyptian Love poetry and the

Biblical Song of Songs. In: PerspeCtive on the Song of Songs. (HAGEDONR, Anselm. Org.). Berlin: Walter und Gruyter, 2005. p. 132.

133 Cf. CAVALCANTI, Geraldo Holanda. O Cântico dos Cânticos. Um ensaio de Interpretação através

de suas traduções. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. p. 392.

134 KEEL, Othmar. The Song of Songs. A Continental Commentary. Trad. Frederick Gaiser. Minneapolis:

Fortress Press, 1994. p. 219.

135 HORNUNG, E. “Der Ägyptschen Mythos von der Himmelskuh. Eine Ätiologie des

Unvollkommenen”. In: Orbis Biblicus Orientalis. v. 46. Fribourg et Göttingen. 1997. 1/37. pp. 5-7. p. 52. n. 6.

136 MONDERSON, Frederick. Medinet Habu: Mortuary Temple of Ramses III. Bloomigton:

AuthorHouse, 2009. p. 33.

137 Cf. GARRET, Duane. Song of Songs. in: The New American Commentary. An Exegetical and

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Fig. 20. Medinet Habu e Ramses III.138

Após descrever a cabeça, o primeiro elemento no qual a amada se detém é a mão do amado. O termo דָי (mão) ocorre milhares de vezes na BHS. Destacam-se, contudo, suas ocorrências em Ct (cf. Ct 5,4.5.14; 7,2). Em Ct 5,4, a amada descreve o momento no qual o amado meteu sua mão na fresta da porta e o seu coração se comoveu de amor. Em seguida, a amada fala de suas próprias mãos embebidas em perfumes (cf Ct 5,5). Em Ct 7,2, o amado fala das mãos do artista que talhou os contornos das coxas da amada. Para Stadelmann, o termo דָי abrange o que chamamos de pulso e antebraço: “acumulam-se os metais preciosos e o mais valioso para descrever idealmente a beleza do mais formoso entre os homens. A imaginação do poeta dispara, e põe na boca da

138 Cf. MONDERSON, Frederick. Medinet Habu: Mortuary Temple of Ramses III. Bloomigton:

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amada a descrição mais deslumbrante que se pode conceber”.139 Deve-se considerar também o simbolismo da palavra mão no contexto bíblico em geral, segundo o qual, se atribuiu um significado sagrado: a mão de Deus expressa poder e ação. Quando Deus estende a mão, pode significar enfermidade, praga, morte para os inimigos de Israel (cf. Ex 3, 20; Sl 21, 9). Mas também pode significar um gesto amigo de quem concede ou quer receber algo. Os ornamentos com os quais a amada compara as mãos do amado, entendido como Deus, pode vir a significar a abundância e a variedade de seu poder e ação: Em uma interpretação espiritual, as mãos do amado são símbolos do poder divino. A fascinação que essas mãos promovem dão-se pelo encontro inesperado (cf. Ct 5,4) e admirativo (cf. Ct 5,14) das obras divinas.140

O termo יֵלי (cilindros) ocorre somente seis vezes na BHS (cf. Is 3,23; 8,1; 1Rs ִלְׁג 6,342x; Ct 5,14; Est 1,6). Devido seu diminuto número de ocorrências, o seu significado é de certo modo ambíguo, mas contém a ideia do que hoje se conhece como arco ou argola. Em Isaías (3,23 e 8,1), parece também ter tido o sentido de tabueta, como aquela usada pelo escriba. O paralelismo com o sexto capítulo do primeiro livro dos Reis é sugestivo, uma vez que este texto traz a descrição do templo de Salomão, quando se fala dos arcos (batentes) sobre as portas (cf. 1Rs 6,1-38).141 O termo também pode se referir a cilindros que se põe nas cortinas, tal como se utilizava no Palácio de Assuero (cf. Est 1,6). Atribuídos às mãos do amado, pode significar a presença de uma joia ou bracelete. Esses braceletes tinham grande valor; eram de ouro maciço circundado com pedras preciosas. Os braceletes de ouro que o rei traz nos pulsos e braços são uma das insígnias da autoridade real (cf. 2Sm 1,10).142

O termo בָהָז (ouro) ocorre 460 (quatrocentos e sessenta) vezes na BHS. Destacam-se, porém, suas três ocorrências em Ct (1,11; 3,10; 5,14) e suas dez ocorrência no sexto capítulo do primeiro livro dos Reis (vv. 20. 213x. 222x.28.30.32.35). O amado afirmou o desejo de mandar fazer ornamentos de ouro para a amada (cf. Ct 1,11). A amada desejava que se fizesse um estrado de outro para o amado (cf. Ct 3,10). A amada utiliza uma linguagem dúbia, com a qual não se consegue definir se de fato o amado usa joias reais ou se o seu braço somente é comparado ao dourado dos metais

139 CORDERO, Maximiliano García. “Cantar de los Cantares. Introducción y comentário”. In: Biblia

Comentada. Libros Sapienciales. 2 ed. Madrid: BAC, 1967. p. 957

140 Cf. NEE, Watchman. El Cantar de los Cantares. El romance divino entre Dios y el hombre. Anaheim:

Living Stream Minitry, 1997. p. 47.

141 Cf. CASCIARO, José Maria (Org.). Sagrada Biblia. Antiguo testamento. Libros Poéticos y

Sapienciales. Cantar de los Cantares. Traducción y notas. 2 ed. Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra, 2005. p. 795

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preciosos (cf. Ct 5,14). Talvez sejam as mãos do amado, entendido como Deus, que são preciosas devido à abundância e à rica variedade de suas obras. Ademais, ao verificar as ocorrências de palavra בָהָז (ouro) notou-se que esta se repete dez vezes na descrição do primeiro templo de Salomão (cf. 1Rs 6, 20. 213x.222x.28.30.32.35). Esse paralelismo pode fazer com que o autor quisesse que o ouvinte-leitor lembrasse do primeiro templo, cujo interior teria sido revestido em grande parte de ouro (cf. 1Rs 6, 20. 213x.222x.28.30.32.35).

O verbo אלמ (encher) ocorre centenas de vezes na BHS. Destacam-se porém suas duas ocorrências no Ct (Em nifal, 5,2; em pual 5,14). O pual só ocorre uma vez na BHS justamente em Ct (5,14). Sua forma em qal ocorre em significativas passagens do Pentateuco (Gn 1,22.28; 6,13; 9,1; 25,24; 29,21; 50,32x; Ex 8,17; 10,6; 15,9; 32,29; 40,34.35; Lv 8,33; 12,4.6; 19,29; 25,30; Nm 6,5.13). Para Stadelmann, “o particípio incrustadostem quase função de termo técnico da ourivesaria”.143

O termo שיִש ְׁרַת (Tarsis ou pedra preciosa) ocorre somente sete vezes na BHS (Ex 28,20; 39,13; Ez 1,16; 10,9; 28,13; Ct 5,14; Dn 10,6). A veste do sacerdote Aarão, segundo a ordem de Deus, continha essa pedra preciosa (cf. Ex 28,20; 39,13). As rodas avistadas por Ezequiel tinham um aspecto e uma estrutura que se assemelhava às pedras de Tarsis (cf. Ez 1,16; 10,9). Ezequiel, após uma visão profética, foi informado por Deus estar no Éden, o jardim de Deus, que estava coberto de diversas pedras entre as quais a de Tarsis (cf. Ez 28,13). Segundo Stadelmann, “não se indica a espécie de pedra preciosa mas sua procedência: Társis é provavelmente a antiga cidade Tartessos, situada na foz do rio Guadalquivir na Espanha”.144 Há outras teorias que defendem a localização de Tarsis na Cilícia ou na Sardenha.145 Essas pedrarias eram célebres na antiguidade, mas é complexo identificar com precisão de qual tipo de pedra se trata o vocábulo שיִש ְׁרַת.146 Para Rodríguez, a indicação do lugar apenas quer dizer que são pedras exóticas e de inestimável valor,147 proveniente, segundo Ravasi, dos extremos da terra.148 De modo análogo ao que ocorre no livro de Ezequiel, em Daniel, as pedras de Tarsis atraíam o olhar devido ao seu brilho: “seu corpo era como as gemas de Tarsis;

143 Cf. STADELMANN, Luis. Cântico dos Cânticos. São Paulo: Loyola, 1993. p. 140. 144 Cf. STADELMANN, Luis. Cântico dos Cânticos. São Paulo: Loyola, 1993. p. 140.

145 Cf. BARBIERO, Giani. Song of Songs. A close reading. Trad. Michael Tait. Leiden/Boston: Brill,

2011. p. 297.

146 Cf. REICHERT, Klaus. Das Hohelied Salomos. Übersetzt, transkribiert und kommentiert.

Wien/Salzburg: Redizenz Verlag, 1996. p. 117.

147 Cf. RODRÍGUEZ, Ángel Aparecido. Comentário filológico a los Salmos y al Cantar de los Cantares.

Madrid: BAC, 2012. p. 869.

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seu rosto brilhava como o relâmpago, seus olhos, como tochas ardentes, seus braços e pés tinham o aspecto do bronze polido e sua voz ressoava como o rumor de uma multidão” (Dn 10,6). Entretanto, esta citação de Daniel faz lembrar que também Deus pode ter sido configurado nessa descrição da amada. Deus brilha como o corpo e a face do homem visto pelo profeta (cf. Dn 10,5-6).