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3 Algumas implicações do modelo para políticas públicas e pesquisa

3.4 Descrições longitudinais

Aceitar a implementação como um processo político aberto e interativo levanta problemas sobre como descrevê-lo ao longo do tempo. Se as partes estão propensas a intervir em todos os níveis, durante todas as fases de implementação, e se o equilíbrio político pode mudar repentinamente, que estrutura pode ser visualizada em desenvolvimentos de longo prazo? Esse problema tem tanto um aspecto descritivo, discutido nesta seção do artigo, quanto um aspecto preditivo, discutido na próxima seção.

O problema descritivo é simplesmente sobre como narrar uma história de implementação. Dadas as inúmeras interações que compõem uma implementação, em que pontos um narrador “paralisa” o sistema para construir um retrato coerente? Muitos estudos de caso de implementação são bastante coerentes, mas raramente ou nunca discutem como suas histórias foram construídas. A maioria dos narradores trabalha com dois tipos de conceitos organizadores: (1) análise das questões jurídicas em relação às forças políticas que as criaram; e (2) criação de algum modelo de estágios e níveis de implementação.

As questões jurídicas centrais de uma implementação podem ser pensadas em termos de “conflitos políticos”, “divisores de águas”129 e “evasivas”130. Conflitos políticos emergem das posições políticas intrin-

secamente envolvidas em qualquer área de política social com objetivos específicos. Quando o movimento social A deseja uma mudança social da instituição B, imediatamente surgem questões sobre até onde o

direito pode ir para alcançar o comportamento desejado e que combinação de incentivos legais será sele- cionada para encorajar o cumprimento. O confronto político é implícito, e até previsível, em qualquer área de mudança sociojurídica. Os principais interesses divergentes das partes afetadas não somente podem ser vistos com antecedência, como também serão inevitavelmente os principais determinantes da luta política, tanto em relação à lei quanto à sua estrutura final de implementação. “Interesses” são outra denominação para o que é importante para as pessoas – e o que é importante motiva a ação.

Considere-se a ação afirmativa em matéria de emprego com base em um ponto imaginário no tem- po, anterior à produção da lei. Qualquer campanha legalmente implementada para aumentar o número de trabalhadores do sexo feminino e de minorias pode comprometer e ameaçar certos grupos e instituições facilmente identificáveis. Homens brancos têm um interesse distributivo inevitável e empregadores têm interesse em manter o controle sobre as decisões relativas à contratação de empregados. Novos grupos no local de trabalho presumivelmente desafiarão as culturas organizacionais informais desenvolvidas na sua ausência131. A elaboração e aplicação de uma lei de ação afirmativa, portanto, estruturar-se-á em torno dos

conflitos políticos mais importantes para os grupos oponentes: dispositivos que produzirão o maior número de empregos para mulheres e minorias e dispositivos que causem menos problemas aos grupos adversários. 128 A maioria dos mais conhecidos teóricos da implementação parece chegar a essa conclusão. BARDACH, E. The implementation

game: what happens after a bill becomes a law. 1977, p. 3-6; MOYNIHAN, D. Maximum feasible misunderstanding-community action in the war on poverty. 1969, p. xv-xvi, xxxi-xxxiii; PRESSMAN, J.; WILDAVKSY, A. Implementation. 2. ed. 1979, p. 163-176; DERTHICK,

M. Washington: Angry Citizens and an Ambitious Plan. In: Social Program Implementation. 1976, p. 219-239, em especial p. 232-239.

129 [N.T.] No original, watershed decisions. 130 [N.T.] No original, punts.

131 POWERS, K. Sex Segregation and the Ambivalent Directions of Sex Discrimination Law, Wisconsin Law Review, v. 1979, p. 55-

124, 1979, em especial p. 64-70. NEWMAN, W.; VONHOF, J. “Separate, But Equal” – Job Segregation and Pay Equity in the Wake of Gunther, University of Illinois Law Review, v. 1981, p. 269-331, 1981; POWERS, K. The Shifting Parameters of Affirmative Action:

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UNE III, WILLIAM H..

Um modelo político de implementação para as políticas públicas: os papéis do direito e dos juristas

. R evista Brasileira de P olíticas Públicas , Brasília, v . 11, n. 1. p .19-81, 2021.

O direito, como realmente elaborado, é geralmente analisado em termos do que se pode chamar de “divi- sores de águas” e “evasivas”. Divisores de águas são resoluções de grandes conflitos políticos – decisões que delimitam uma maneira de fazer as coisas, ao invés de outras formas possíveis – com um resultado social di- ferente resultante da escolha. Na ação afirmativa, o divisor de águas crítico, de cunho substantivo, era impor cotas absolutas ou permitir justificativas de várias espécies, como indisponibilidade e esforço de boa-fé132.

Em matéria de execução, decisões-chave eram adotar um sistema regulatório ou um sistema acionado por reclamações, bem como adotar um modelo de persuasão ou um modelo de coerção133. É essencial à análise

de um divisor de águas considerar não apenas o que foi feito, mas o que poderia ter sido feito e não foi. A alternativa aos divisores de águas surge quando o processo de implementação deliberadamente evita decidir uma questão, deixando a solução para algum outro nível institucional ou veladamente aceitando o

status quo. Qualquer lei que exija “não discriminação” e nada mais, por exemplo, está deixando uma imensa

quantidade de não dito. Esses subterfúgios podem ser chamados de “evasivas”. O subterfúgio não é ne- cessariamente ruim para o movimento social ou uma abdicação de responsabilidade. Às vezes, faz sentido deixar os detalhes a serem definidos por alguma outra instituição e processo134.

Histórias de implementações, com base na perspectiva jurídica, tendem a ser contadas em termos de questões jurídicas principais – isto é, conflitos políticos, divisores de águas e evasivas. Um estudo de caso implicitamente “paralisa” o sistema para examinar o movimento quando algo importante acontece, inclusive quando uma questão é evitada, adiada ou delegada. Os manuais jurídicos de direito público costumam ser organizados da mesma maneira135, exceto pelo fato de que o senso de continuidade cronológica é diminuído

e o contexto da tomada de decisões políticas e organizacionais é quase que totalmente ausente.

A menção ao contexto político e organizacional leva ao outro dispositivo organizador principal das descrições de implementação, um senso de estágios e níveis de implementação. Uma característica dos divi- sores de águas é que essas decisões tendem a ser tomadas cedo, no que poderia ser chamado de “estágio de mobilização”. Mesmo que não sejam tomadas cedo, são feitas por pessoas de alto escalão no processo de elaboração de políticas, como membros do Congresso, juízes e legisladores, em oposição aos chamados “bu- rocratas do nível da rua”136. Uma história completa da implementação deve continuar a análise além e abaixo

dos divisores de águas na estrutura das organizações reguladoras e reguladas e na miríade de interações entre elas. Normalmente, divisores de águas afetam profundamente a natureza dessas interações, especialmente se os recursos e a ideologia são considerados divisores de águas, porque a estrutura jurídica básica define os limites externos do que pode ser feito. Porém, os níveis mais baixos e os estágios posteriores têm vida própria, e sua orientação exata em relação às questões jurídicas estruturais é a priori obscura.

Os estudos de caso sobre a implementação completa geralmente traçam divisores de águas a alguma distância “em direção à rua”, mas é difícil descrever as decisões políticas maiores somadas às interações no nível da rua em um estudo de extensão factível. Por essa razão, os estudos no nível da rua tendem, com efei- to, a paralisar o sistema em algum momento da implementação. Essa abordagem pode ser enganosa. Entre outras coisas, ela tende a exagerar o escopo da discricionariedade, porque o pesquisador inconscientemente adota os limites da ação social estabelecida pelos divisores de águas como um dado137. Ainda mais claramen-

132 Vide notas 37-39 supra.

133 Essa foi uma das decisões no estágio de “mobilização”. Vide nota 95 supra.

134 DIMOND, P. Strict Construction and Judicial Review of Racial Discrimination Under the Equal Protection Clause: Meeting

Raoul Berger on Interpretivist Grounds, Michigan Law Review, v. 80, p. 462-511, 1982, em especial p. 463-464. TUSHNET, M. Fol-

lowing the Rules Laid Down: A Critique of Interpretivism and Neutral Principles, Harvard Law Review, v. 96, p. 781-827, 1983.

135 Sobre a ideia de direito público, Clune e Lindquist, nota 3 supra, p. 1112-13, e parte IV(C)(1), (2) desse artigo (papel dos juristas

no direito público).

136 Vide notas 95-96 supra. Para uma análise do grau de orientação descendente nas interações de implementação, vide parte II(B)(8)(b). 137 Eu diria que esse exagero é característico do trabalho de Lipsky e Edelman. Vide, e.g.: EDELMAN, M. Politics as Symbolic Action.

1964; LIPSKY, M. Street-level bureaucracy: dilemmas of the individual in public services. 1980; WEATHERLY, R.; LIPSKY, M. Street Level

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Um modelo político de implementação para as políticas públicas: os papéis do direito e dos juristas

. R evista Brasileira de P olíticas Públicas , Brasília, v . 11, n. 1. p .19-81, 2021.

te, falta-lhe um senso de tendências em longo prazo138.