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2 Desenho Infantil: Do início da expressão e da percepção ao “bloqueio”

A criatividade é inerente ao ser humano. A primeira forma de expressão criativa e pessoal do ser humano é o desenho infantil. A criança desenha por puro prazer, sem os limites que mais tarde impomos a nós próprios ou são impostos pela sociedade. A característica principal desses desenhos é a mais pura expressão do “eu”. Segundo Lowenfeld e Brittain, as crianças estão livres de influências externas nas suas primeiras garatujas aos dois anos de idade, que têm origem num prazer puramente cinestésico, devido à possibilidade de poder registar os próprios movimentos.

Arnheim reconhece a importância do desenho infantil:

“As primeiras formas de representação visual chamam-nos a atenção não só porque possuem

um interesse pedagógico evidente, mas também porque todos os rasgos fundamentais que operam de maneiras refinadas, complicadas e modificadas na arte madura, despontam já com claridade elementar nas imagens feitas por uma criança ou um bosquimano.

O anteriormente dito vale para as relações entre forma observada e forma inventada, para a percepção do espaço em relação com os meios bidimensionais e tridimensionais, para a interacção do comportamento motor e controle visual, para a estreita ligação entre percepção e conhecimento, etc.

Não existe, pois, introdução mais esclarecedora à arte do adulto que as primeiras manifestações daqueles princípios e tendências que hão-de governar sempre a criação visual.”

(Arnheim, R.: Arte y percepción visual, Alianza editorial, Madrid, 1979, págs.185-186) Sir Cyril Burt, em Mental and Scholastic Tests, defende que o desenho, ou “rabisco”, das crianças entre os 2 e os 5 anos de idade pode ter um carácter Cinestésico sem objectivo, ainda que o rabisco possa, por outro lado, ter um nome, tendo sido feito com um propósito específico, com objectivo. De seguida deriva para a imitação dos movimentos dos adultos, em que o movimento do braço é substituído pelo movimento da mão e o rabisco torna-se localizado, onde se procura a reprodução de partes de objectos.

Figura 11 e 12 -"Sem título", Hayley, 2 anos / "Hannah's Talking Sun", Hannah Brewer, 3 anos

Aos 4 anos desenvolve-se um controlo visual progressivo. Surgem as primeiras experiências representativas, que apesar de ligadas a garatujas não impedem a identificação dos elementos representados, sendo aqui que a criança começa a converter o pensamento em formas concretas. Segundo Burt, a Figura humana torna-se o tema favorito ainda que muito rudimentar, sendo comum as cabeças terem forma circular e os olhos traduzidos por dois pontos. Não há procura de representação naturalista. É neste momento que há a tendência nefasta dos adultos de incutir nas crianças a noção do que está bem ou mal, seja do ponto de vista formal ou técnico, porque que se identificam as formas nos desenhos.

O homem, tal como qualquer ser vivo, procura resolver o problema da sobrevivência através de um processo de adaptação constante que segundo Piaget é onde reside a inteligência. Este processo de adaptação opera-se, de forma sucessiva, através dos mecanismos de assimilação e acomodação. Ao assimilar, o sujeito tenta transformar o meio para o tornar semelhante a si mesmo. Na acomodação, o sujeito ao deparar-se com uma resistência ao seu esforço assimilador, modifica-se e acomoda-se, de uma forma mais ou menos consciente, às circunstâncias e às exigências exteriores. É importante frisar que, nesta fase, a criança deve ser livre de experimentar dentro das suas capacidades sem limitações naturalistas impostas pelos adultos, devendo-se dar incentivo e proporcionar experiencias em vários suportes e materiais, para enriquecimento das suas capacidades expressivas. Nesta fase de desenvolvimento, tal como nas outras, a influência de regras impostas pelos adultos (ainda que inconscientemente) são prejudiciais à criatividade e à assimilação das experiências de natureza gráfica, levando a criança a acomodar-se às exigências que lhe são postas, prejudicando o desenvolvimento natural e fazendo surgir os esquemas e estereótipos. Com o crescimento há tendência a criar o hábito da acomodação em todo o processo de ensino/aprendizagem que prejudica as capacidades criativas e de compreensão. Estas podem

ser potenciadas com o hábito da assimilação através do acesso moderado a experiências variadas orientadas para o melhor conhecimento do mundo e do próprio sujeito, sendo a linguagem gráfica uma ferramenta essencial para este desenvolvimento.

Figura 13 e 14 - "Boy and Balloons", Ashley Belle, 5 anos / Snickelfritz, Jessica, 5 anos. Retirado das aulas de Didática I.

Entre os 7 e os 8 anos verifica-se aquilo a que Burt chama de Simbolismo Descritivo. Os desenhos tornam-se mais lógicos que visuais, pois a criança põe o que conhece e não o que vê. A criança começa a estruturar os seus processos mentais e adquire a capacidade de constatar relações entre os elementos que a rodeiam. Pensa genericamente na figura humana e não no individuo presente. Este é o momento em que se potencia o bloqueio visual para o desenho pois estas características permanecem na maioria dos casos, verificando-se pouca evolução na capacidade de observação para o desenho a partir deste momento. A criança tende a catalogar por temas tudo o que conhece, o que lhe interessa e se lembra verificando-se que os esquemas se tornam mais verdadeiros em relação aos detalhes. Este termo (esquema) é usado, casualmente, por Sully na tentativa de representação da relação entre elementos, como mãos e dedos (que nas primeiras representações lembram garfos).

Fora raras excepções, quando as crianças começam a desenhar intencionalmente, satisfazem- se com sinais gráficos que identificam com as suas imagens. Estes sinais podem variar, não tendo muitas vezes e principalmente antes desta fase, significado directo ou relação reconhecível, traduzindo-se num rabisco ou contorno linear onde as características do objecto estão sintetizadas. Estes esquemas de representação correspondem a noções que fazem parte do seu vocabulário figurativo de ideias concretas, como a ideia de homem, ideia de árvore, etc., que dão aos desenhos um carácter essencialmente ideográfico (realismo intelectual). Esta característica pode ser, para os educadores, um veículo para interpretar o grau de conhecimento das crianças e a sua relação com o mundo. Nesta fase verificam-se também tentativas de desenhos de perfis e um gosto particular por detalhes decorativos. Os desenhos são estruturados e podem-se verificar transparências. Uma casa pode ser representada em corte, com o que está lá dentro. Há representações simultâneas de espaço e tempo tal como

variações discrepantes do tamanho dos elementos muitas vezes associadas a características afectivas (aquilo que é mais importante ou aterrorizante para a criança é normalmente maior). É nesta fase que as crianças desenvolvem explicações criativas para o que não conseguem entender, criando um universo imaginário específico onde é comum a humanização (animização – dar alma e atropomorfização – dar aspecto humano) de coisas e animais. Esta lógica explicativa é denominada de Ultracoisas, termo utilizado por Juan Del Val, em El animismo e el pensamiento infantil (siglo XXI editores, Madrid, 1975, págs.187

e 196) relacionando-o com astros, principalmente o sol, e com fenómenos como o vento, a

chuva, nuvens, etc.

Figura 15 - “Palm Tree”, Alicia C., 7 anos. Retirado das aulas de Didática I.

Figura 16 – “A man with aliens”, Andrew W., 8 anos. Retirado das aulas de Didática I.

Entre os 9 e os 10 anos abandonam os símbolos e ganham maior consciência autocrítica que deriva de um sentimento de maturidade, discrepante com as suas capacidades no desenho, que sentem como infantis pela estilização que fazem das transparências, rebatimentos e simetrias, aproximando-se assim de uma consciência/exigência de objectividade. A criança passa do desenho de memória para o desenho da natureza distinguindo-se duas fases, uma bidimensional onde domina o contorno e outra tridimensional onde há a tentativa de transmitir perspectiva por sobreposição, gradação de tamanho e, embora raramente, sombras

e escorço. Esta consciência da aparência visual do mundo tem pouca relação com as verdadeiras tendências naturalistas por falta de conhecimento de meios. Reconheça-se a rara tentativa de exprimir relações lumínicas, efeitos de movimento, pregas na roupa, etc., que acabam por atribuir dureza e formalidade aos desenhos.

Figuras 17 e 18 - “Sem Título”, Robin, 10 anos / “Amber and Me”, Rachel, 9 anos. Retirado das aulas de Didática I.

Lowenfeld chama a esta fase a “idade da pandilha”, ainda que alargue a faixa etária até aos 12 anos. É quando a criança toma consciência que é um membro da sociedade e terá que cooperar os adultos, construindo estruturas que tornem isso possível. É nesta idade que nascem os grupos de iguais, ou pandilhas e se desenvolve o desejo de independência social que muitas vezes dão origem a conflitos com o universo dos adultos, que não querem deixar de supervisionar a vida dos jovens. Estes conflitos dão origem a uma menor empatia com os adultos e a consequente falta de cooperação entre as partes podendo resultar na delinquência e rebeldia da criança e do grupo. Para além de inevitáveis, estes comportamentos são necessários à aprendizagem da vida em sociedade.

Estas características enquadram-se no início da fase a que Burt nomeia de Repressão, entre os 11 e os 14 anos, onde os jovens esbarram com o seu próprio desenvolvimento acelerado em todas as áreas. A reprodução dos objectos é agora mais lenta e laboriosa e gradualmente exigente, o que acaba normalmente em frustração. A Expressão pela linguagem verbal substitui o desenho que no caso de persistir perde a espontaneidade aparecendo os desenhos convencionais, onde a figura humana aparece raramente. A forma como se vêem a si mesmas como pessoas, a ânsia de crescer e de deixarem de ser tratadas como crianças, gera vergonha em relação aos seus desenhos, reprimindo assim a sua vontade de desenhar e de se expressarem livremente. Lowenfeld e Brittain afirmam que o professor tem um papel extremamente importante nos sentimentos que as crianças têm em relação às suas expressões artísticas. É neste momento que não se devem estabelecer padrões de “correcto” ou “errado”, de “bonito” ou “feio”, que restrinjam a capacidade criadora e inibam a expressão

individual das crianças tal como a sua auto-afirmação e autoconfiança. Mas sendo nesta fase que são feitas as primeiras abordagens gráficas (espontâneas ou impostas pela escola) baseadas numa observação estudada e natural, aparecem as primeiras tentativas de domínio dos códigos de representação ocidentais: escorço (agora assumidas), sombras projectadas e movimentos articulados. A expressão da profundidade fica dependente da perspectiva, que se afirma através de um ponto de vista único, onde o tamanho dos elementos se altera com a distância. Cabe assim ao professor disponibilizar e valorizar as actividades de expressão gráfica espontânea, como fornecer as bases de domínio e exploração (experimentação) dos códigos de representação naturalista ocidental.

Figura 19 e 20 - Abdullaeva Soema, 10 anos / “Peace in the New Millennium”, Victoria D., 12 anos. Retirado das aulas de Didática I.

Só a partir dos 15 anos é que o desenho aparece como actividade artística consciente pela primeira vez, verificando-se diferenças entre os sexos. As jovens dedicam-se à riqueza da cor, à graça das formas e à beleza das linhas enquanto os jovens vêem o desenho como uma saída mecânica e técnica. Muitas vezes a Repressão sobrepõe-se a esta fase. Segundo Lowenfeld e Britain, é normal que um jovem de 16 anos desenhe da mesma forma que tem desenhado nos últimos 3 anos, excepto se tenha tido acesso ou desejo de melhorar as suas capacidades gráficas. Neste período, a “aprendizagem” da Arte é voluntária, pois para alguns é algo sem ligação a objectivos vocacionais, enquanto para outros, a Arte é o próprio objectivo. No ES, é frequente verificar-se a ilusão de que a área artística é a mais fácil e menos trabalhosa para conseguir concluir o 12º ano. No geral, a Arte não cativou nem fez parte dos principais interesses da maior parte dos estudantes do ES por não ser vista como possibilidade de independência do domínio dos adultos no processo de busca pela própria identidade e lugar na sociedade. Para este autores, o objectivo do ensino artístico (em concreto, das Artes Visuais), não é “criar” ou “produzir” artistas mas dar a possibilidade do adolescente exprimir os seus sentimentos e emoções face ao meio que o rodeia, arrastando-o para um processo fundamental de criação de um produto com valor realmente utilitário e/ou estético, não só para si mesmo mas também para a sociedade em geral. Para que a Arte seja importante deve reflectir o sujeito que a realiza. Isto é tão verdadeiro para o nível escolar como para o artista profissional. Para Lowenfeld, a área artística não pode ser igual às outras, com exames e

projectos sujeitos a correcções, que levam à perca do significado da Arte e do seu efeito sobre os estudantes.

Herbert Read, em A Educação pela Arte, critica alguns aspectos aqui referidos, nomeadamente o conceito de esquema e a inevitabilidade da fase de Repressão (pois um ensino adequado pode evitar tanto o esquema como a repressão). Alguns estudos afirmavam que o desenvolvimento da capacidade visual pode ser superior numas crianças em relação a outras, conclusão também contestada por Read. Este autor afirma que não há necessariamente uma fase de rabiscos nem uma associação directa entre símbolos abstractos e esquemas, recusando uma arbitrariedade correlacional. Afirma que há uma tendência para o abandono do símbolo abstracto devido à influência do meio ambiente e de terceiros, como pais e professores que incutem referências/modelos que muitas vezes retardam o desenvolvimento de competências a este nível. Defende também que a actividade imitativa tem base na imitação do adulto desde o primeiro rabisco na imitação dos movimentos da mão e dos dedos.

Luquet, autor referido por Read em A Educação pela Arte, defende a existência de

duplicidade de estilos (duplicité de types) que se baseia numa satisfação contextualizada.

Este autor verificou, através de observação de crianças de 8 anos, que estas reconhecem e se apropriam de estilos de desenho diferentes do seu, principalmente da pessoa para quem desenha. Fora do contexto de aula, os jovens tendem a ter um tipo de registo diferente, verificando-se uma relação deste com o contexto em que se realiza a prática do desenho. Read afirma, ainda, que existe relação do meio envolvente com as capacidades das crianças verificando que estas, quando filhas de pintores abstractos, desenvolvem uma plasticidade abstracta, ainda que não se verifiquem provas de que uma criança “normal” tenha maior apetência para o realismo. Para Read, a única forma de provar qualquer uma destes cenários seria realizar uma experiência com crianças completamente imunes a estas influências. A experiência mais aproximada a este cenário foi realizada por Lowenfeld e Münz com crianças com capacidades visuais limitadas e cegas.

Lowenfeld afirma que as fases de desenvolvimento não podem ser vistas como arbitrárias mas sim aproximadas quer nas capacidades reveladas, quer nas idades em que estas se manifestam. Uma etapa sucede à anterior mas sem prazos a cumprir sendo importante deixar que se sucedam. Note-se que a percepção visual e a criatividade se desenvolvem de modo paralelo, pois nada do que uma criança cria surge do nada. Elas têm referências ainda que inconscientemente, sendo importante a capacidade de observar ao máximo aquilo que as rodeiam (com uma curiosidade que lhes é natural) e não a capacidade de representação. Os estudos realizados sobre este tema são vários e muitas vezes contraditórios. Contudo, são inegáveis diversos pontos comuns entre eles, nomeadamente as fases de desenvolvimento que acabam por se traduzir em estágios semelhantes. Este desenvolvimento é natural nesta área

como em todas as outras capacidades e faculdades do homem. De facto, o desenho é uma linguagem específica, tal como a escrita. As letras fluem dos traços das crianças através da cópia e da observação. O desenho pode ser uma actividade que se desenvolve da mesma forma quando a observação é desenvolvida de modo a que seja possível uma leitura do que nos rodeia.

A repressão é o resultado da falta de estímulo na observação e na leitura bidimensional do desenho. A capacidade de «ver» quando não é trabalhada, resulta num inevitável atraso na expressão através do desenho pelo facto de não se compreender a realidade para a sua tradução no papel, tal como tentar escrever e falar num idioma que não se domina.

Segundo Edwards, autora de Drawing with the Right Side of the Brain, é um facto que as crianças numa fase de aprendizagem da escrita têm mais facilidade em copiar imagens por estarem habituadas a fazê-lo, perdendo gradualmente esta capacidade devido às referências e conhecimentos que vão adquirindo tornando-se cada vez mais difícil desligarem-se do que conhecem em prol do que vêem na prática do desenho de observação.

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