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PARTE III – PERCURSO METODOLÓGICO

11.3 Desenhos

Os desenhos foram realizados no primeiro momento das sessões coletivas, sendo seguidos pelos grupos focais. Para tal, as turmas foram subdivididas em dois grupos, em função do grande número de participantes. Na maioria das vezes, foram usados apenas papel branco e lápis preto, com o objetivo de evitar fatores de distração e favorecer que as crianças se concentrassem no essencial (SARMENTO; TREVISAN, 2017). Inicialmente, foi solicitado às crianças que desenhassem sobre o tema em foco, sendo-lhes pedido que considerassem a investigadora como alguém vindo de uma realidade muito diferente (“de outro planeta”), a quem explicariam o que é família e o que é escola.

Para a temática da relação família-escola, optamos por solicitar o desenho a partir de duas vinhetas, elaboradas pela pesquisadora e contadas, uma de cada vez, às crianças. Trata-se de um recurso similar às frame stories propostas por Kangas, Kultima e Ruokamo (2011), cujo objetivo é estabelecer uma atmosfera criativa, tornando as situações mais lúdicas, favorecendo a conexão com a temática que se pretende abordar. Cada uma das pequenas histórias abordava uma situação de encontro entre pais e professora (Apêndice G), tendo como personagens centrais as crianças Adriana e Marcelo, alunos do 1º ano do Ensino Fundamental, assim como os participantes do estudo. Na história de Adriana, os pais

solicitam um encontro com a professora, enquanto na história de Marcelo é a escola, por intermédio da professora, que solicita a presença da família para uma conversa. Inicialmente, foi lida a história de Adriana, propondo-se que as crianças a explorassem oralmente e apresentassem um desfecho para ela. A seguir, foi contada a história de Marcelo, sendo solicitado, então, que as crianças desenhassem o seu final. Assim, foram produzidos dois desenhos, que representavam o desfecho das situações propostas pelas vinhetas.

Após a elaboração dos desenhos, foi solicitado a cada criança que relatasse oralmente ou escrevesse um pequeno texto, frases ou palavras que, de algum modo, auxiliassem a compreender sua representação (SARAMAGO, 2001). Quando a criança optou por falar, a pesquisadora fez o registro escrito da fala no verso da folha do desenho.

Corsaro (2011) argumenta que, por meio do desenho, as crianças podem manifestar-se sobre temas e ideias complexas, sobre os quais poderiam ter dificuldade de expressar-se verbalmente. Por isso, propusemos combinar as estratégias, no intuito de criar um contexto de liberdade e confiança e, ao mesmo tempo, oferecer diferentes linguagens para que as crianças expressassem suas ideias.

Os desenhos foram analisados a partir de um amálgama de autores; foram especialmente relevantes as contribuições de Coates e Coates (2011), Garcia (2012), Sarmento e Trevisan (2017) e Staccioli (2011; 2014), por possibilitarem visualizar a análise de desenhos de crianças. Faulkner e Coates (2011, p. 28, tradução nossa) afirmam que a adequada compreensão das produções infantis requer uma articulação interdisciplinar para que se faça “justiça à rica, complexa, multimodal e personificada natureza dos processos de pensamento das crianças como revelado através de seu desenho e narração, fazer musical, dança, drama e imaginação”.

Consideramos os desenhos como formas de expressão simbólica ou narrativas gráficas das crianças (SARMENTO, 2011b; SARMENTO; TREVISAN, 2017). Para Sarmento e Trevisan (2017), as narrativas gráficas transitam entre o real e o imaginário, sendo um canal para a elaboração de fatos, emoções, afetos e desejos. Por meio dos desenhos, as crianças “contam uma história” e sua análise deve contemplar “o contexto social de emergência, os sentidos explícitos, os elementos formais e suas gramáticas (códigos de cores, figuras, traços identitários, etc.), mas também o que é apenas sugerido” (SARMENTO; TREVISAN, 2017, p. 23, grifos dos autores). Para Kangas, Kultima e Ruokamo (2011, p. 92, tradução nossa), “o pensamento narrativo é natural e forma parte da mente humana; é uma ferramenta para dar sentido ao mundo circundante, ao possibilitar lidar com significados complexos; é uma forma de elaboração”.

Derdyk (2014) lembra que desenhar é, simultaneamente, um ato perceptivo e cognitivo; o desenho é, portanto, uma construção do pensamento. É uma das mais antigas linguagens humanas, presente em todas as civilizações, utilizando distintos suportes, materiais e instrumentos, servindo a necessidades múltiplas, de adultos e de crianças. Para Sarmento (2011b), trata-se de uma das mais relevantes formas de expressão simbólica das crianças. Gobbi (2014), por sua vez, aponta que os desenhos infantis são tão presentes entre nós que tendemos a naturalizá-los e vê-los com menos cuidado e interesse do que merecem. Segundo a autora, “raramente nos ocorre que resultam de complexas relações, dependendo de características sociais, históricas, culturais e econômicas de seus criadores” (GOBBI, 2014, p. 151).

Staccioli (2011, p. 25) compreende os desenhos infantis como metáforas, como “pensamentos visuais”. O termo metáfora é tomado como transferência, mudança de lugar, “como se”. A partir desse entendimento, propõe que se considere que as crianças, ao se comunicarem, usam metáforas como sugestões indiretas daquilo que querem dizer (STACCIOLI, 2014). Desenhar um adulto significativo em tamanho muito maior do que outras pessoas ou elementos pode representar a sua importância afetiva para a criança.

Ao considerar os desenhos das crianças como espelhos de seus pensamentos, o autor afirma que as representações gráficas, tal como as linguísticas, são perpassadas por necessidades comunicativas, por elementos do contexto, pela demanda de apresentar o mundo e de se apresentar a ele. Nesse sentido, a realidade representada é a realidade percebida, elaborada, significada pela criança, e não meramente fotografada. As crianças também usam os desenhos para pensar, na medida em que pensam por imagens. Por isso, podem representar fantasias, lugares que nunca viram ou fatos que nunca ocorreram. Nesse processo, elas interagem umas com as outras, explicando-se e levantando hipóteses, partilhando informações e aproveitando ideias (STACCIOLI, 2014). Por isso, muitas vezes, seus desenhos se assemelham, não por terem sido copiados no sentido que os adultos atribuem, mas por uma construção coletiva. Sarmento (2011b, p. 43) considera que essa autoria coletiva integra as culturas da infância, na medida em que as crianças “partilham, reproduzem, interpretam e modificam códigos culturais”, atualizando-os durante suas interações entre si e com os adultos. Kangas, Kultima e Ruokamo (2011, p. 104, tradução nossa) referem-se à “colaboração criativa”, entendendo que o “pensamento narrativo das crianças pode ser compartilhado” por meio da atividade conjunta do brincar. Graças ao pensamento compartilhado, as crianças ultrapassam os limites da imaginação individual (KANGAS; KULTIMA; RUOKAMO, 2011).

Autores como Sarmento e Trevisan (2017) e Coates e Coates (2011) afirmam que as crianças com frequência fazem verbalizações enquanto desenham, criando uma unidade entre o audível e o visível. A escuta atenta das narrativas verbais possibilita uma compreensão mais profunda e abrangente da forma de pensar da criança (COATES; COATES, 2011). No presente estudo, dada a impossibilidade de realizar essa escuta durante a execução dos desenhos, optamos por solicitar a cada criança que escrevesse algo sobre seu desenho, ou que verbalizasse suas ideias à pesquisadora, que se encarregou do registro escrito. Posteriormente, as escritas ou as verbalizações foram submetidas à ATD (MORAES; GALIAZZI, 2011).

As crianças são capazes de pensar e de representar graficamente as suas realidades, embora nem sempre se disponham a compartilhar seus pensamentos. Usam recursos originais e soluções pouco ortodoxas para mostrar tanto as coisas visíveis quanto as invisíveis:

[...] as metáforas (linguísticas ou visuais, que sejam) são “trocas de pensamentos”, são produções abertas e ambíguas que remetem um significado a outro. As metáforas propõem formas surpreendentes, emoções, e não dão respostas. [...] As crianças assimilam-nas desde pequenas, retomam-nas, consideram-nas um meio normal de contato entre as pessoas. O mundo “não se pode explicar”, as experiências, as percepções, as emoções não podem ser transferidas de uma pessoa a outra, a não ser por aproximação. (STACCIOLI, 2011, p. 34).

De forma convergente, Gobbi (2014) adverte que a compreensão dos desenhos é marcada pela cultura: vemos o que aprendemos a ver, sendo nossos olhos socialmente educados. Desse modo, nenhum olhar é neutro ou isento. Ao trabalhar com desenhos, cabe- nos, portanto, a tarefa de questionar o que, quando e como vemos. Cabe, também, olhá-los sem pressa, com cuidado e atenção: “ver desenhos envolve códigos peculiares que, por vezes, os coadunam a outras linguagens das crianças. Impõe rigor e sensibilidade quanto à observação dos elementos contidos sobre a superfície desenhada” (GOBBI, 2014, p. 154). Sarmento (2011b, p. 36) considera que os desenhos das crianças são, simultaneamente, autorais, na medida em que expressam a singularidade de quem os produz, artefatos sociais, como “testemunhos singulares de uma cultura que se exprime na materialidade dos produtos em que se comunica”, e artefatos culturais da geração infantil. Por isso, sugere articular essas três dimensões na análise dos desenhos infantis: a do sujeito concreto que o produziu, a da cultura em que está inserido e a da sua geração específica.

A partir disso, consideramos os movimentos interpretativos que fizemos em relação aos desenhos das crianças como tentativas de realizar uma leitura, uma aproximação. Nosso esforço foi nos colocarmos como interlocutores para essa comunicação. No processo de análise, procuramos ser bastante cuidadosos, o que demandou muitas (re)leituras de cada

desenho, pois “diante dos pensamentos e das metáforas visuais das crianças não é bom responder logo. É preciso pensar”, como aconselha Staccioli (2011, p. 37).

Como a grande maioria dos desenhos foi realizada com lápis preto, a digitalização por

scanner não produziu bons resultados. Foram, então, fotografados e as imagens

posteriormente submetidas a tratamento com o software Adobe Photoshop, a fim de melhorar a sua nitidez e poderem ser apresentados no presente trabalho.

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