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Desenvolvimento psicossomático e patologia psicossomática

4. Psicopatologia

4.2. Desenvolvimento psicossomático e patologia psicossomática

O desenvolvimento psicossomático humano caminha sempre do somático rumo ao mentalizado. O desenvolvimento psicossomático do bebê é extremamente plástico: pode ser retomado à medida que as condições externas e internas se tornam mais favoráveis novamente. Deve favorecer a construção de um “dentro psíquico” um espaço sólido para assentar pensamentos cada vez mais complexos. O corpo tem um papel de delimitação entre dentro e fora, e o papel dos cuidados maternos é imprescindível para essa discriminação por parte do bebê (DEBRAY, 1988, p. 151).

Segundo Kreisler (1999), o conhecimento psicossomático integra os sintomas na economia relacional e mental. No início da vida, as instâncias defensivas são administradas pela mãe no seio da interação com o bebê para, posteriormente, serem geridas pelo ego da criança. A partir do segundo semestre da vida, há indícios de um funcionamento mental próprio do bebê e modalidades de funcionamento expostas às desordens psicossomáticas; no entanto, o funcionamento interativo vigora por algum tempo. O autor propõe que os meios para se avaliar a economia psicossomática do bebê são as interações, o desenvolvimento e o comportamento.

A clínica psicossomática da criança abrange uma diversidade enorme de distúrbios, dos mais sérios aos mais leves, de uma doença com risco letal até variações dentro da normalidade, nas quais uma criança, mesmo “equilibrada”, pode desenvolver uma resposta somática a um conflito passageiro em algum momento da vida.

Para Debray (1988), é esperada uma mudança de investimento dos pais no bebê durante as primeiras semanas após o parto: é preciso que se atinja seu ponto máximo para, posteriormente, os pais reinvestirem outros pontos de interesse, mantendo o bebê num lugar sempre privilegiado, mas não num lugar único. Isto fará com que o bebê tenha que se ajustar à nova realidade; na grande maioria dos casos, traz-se então à cena algum sintoma psicossomático, o qual traduz justamente uma tentativa de ajuste a uma nova realidade na vida do bebê.

Esses sintomas são bastante comuns e, geralmente, dispensam intervenções especializadas: podem ser reduzidos apenas com uma ajuda eventual do pediatra. Entretanto, em alguns casos, em vez de ser a sede de hiperinvestimento dos pais

(primeiro contínuo; depois, descontínuo em alguns momentos, em função do reinvestimento em outros pontos de interesse), o bebê é foco de hiperinvestimento extremamente ambivalente e contínuo, no qual não há lugar para outros investimentos paternos. Nesses casos, costuma prosseguir e até agravar-se a sintomatologia psicossomática inicial acima citada.

Logo após o nascimento, o bebê é objeto primordial das preocupações maternas: a mãe está não só fisicamente presente e inteira para ele, mas também mentalmente. Aos poucos, a situação deve modificar-se, e o bebê tem notícias de que sua mãe está com ele nos braços fisicamente, mas “mentalmente ausente” (FAIN apud DEBRAY, 1988, p. 45), com diferentes preocupações e não mais exclusivamente voltada para ele. Nos casos mais favoráveis, ela está tomada pelo retorno de desejos eróticos referentes ao marido. Essa situação faz o bebê experimentar uma mãe parcialmente presente; ele tem que suplantar a experiência de falta que se apresenta. Será o início de uma atividade propriamente psíquica: o momento em que o bebê utiliza mecanismos auto-eróticos para suplantar a falta da continuidade materna. Dessa forma, instaura-se o que Fain (apud DEBRAY, 1988, p. 45) chamou de “censura do amante”.

A “censura do amante” pode ser compreendida a partir do momento em que o bebê, fruto dos desejos amorosos e eróticos de seus pais, se afasta ligeiramente para que eles retomem suas relações amorosas. A mãe plena de desejos amorosos torna-se uma “mãe calmante” para o bebê, tranqüilizando-o em seus desejos pulsionais. Espera-se que se instaure progressivamente, em determinado momento, a “censura do amante” no bebê, a fim de impedir a instalação, na grande maioria das vezes, de uma sintomatologia psicossomática precoce e gritante, dando sinais de

que algo não caminha a contento, fazendo surgir sintomas que afetam primordialmente grandes funções vitais como sono e alimentação (DEBRAY, 1988).

(...) são realmente características do bebê: o “mosaico primeiro”, os ritmos, a reatividade e o estilo das descargas, segundo a terminologia de P. Marty, que vão entrar de saída em ressonância com as particularidades paternas e maternas em sua singularidade do momento. É o que se passa do lado da mãe ou do lado do pai, quando surge uma sintomatologia precoce no bebê, está na maioria das vezes relacionado com a reativação de uma problemática antiga ou mais recente, brutalmente reativada pelo surgimento deste bebê, munido de características pessoais como as suas. (DEBRAY, 1988, p. 131)

Para introduzir brevemente a patologia psicossomática, citaremos Kreisler (1999), que contribui com o tema afirmando que ela inclui desordens autenticamente orgânicas, mas desprovidas de qualquer significação simbólica: são “vazias”. O autor distingue os distúrbios conversivos histéricos (nos quais o sujeito usa seu corpo para falar) do paciente psicossomático (que sofre em seu corpo, o corpo passa a ser uma vítima). Complementa dizendo que um dos postulados norteadores da psicossomática atual é a relação intrínseca entre o equilíbrio somático e os fundamentos psicoafetivos da personalidade: “uma constituição afetiva plena, equilibrada e estável ocupa um lugar essencial entre as defesas que se opõem às desordens psicossomáticas” (KREISLER, 1999, p. 15).

Mentalização é um termo amplamente utilizado pelo autor, e central para a compreensão dos distúrbios psicossomáticos; refere-se aos mecanismos em jogo na regulação das energias inconscientes presentes no psiquismo. As patologias psicossomáticas se dão pelo fracasso da mentalização, ou pela impossibilidade de transformar “emergências pulsionais em representantes simbolizados” (p. 25). O controle da excitação se dá a partir de caminhos distintos: a mentalização, o comportamento e a expressão somática (KREISLER, 1999).

Os estudos da interação precoce mãe-bebê evidenciam desvios e discriminam os primeiríssimos sinais de psicopatologia. Kreisler (1999) sugere, como já se disse neste estudo, um campo transdisciplinar, para que possa haver um acesso franco ao pensamento de várias disciplinas trabalhando de forma complementar. O autor insiste que os psiquiatras infantis – e, podemos pensar, os psicanalistas –, que trabalham com intervenção precoce, quase nunca têm acesso a casos precoces, a não ser que mantenham uma ligação fecunda com pediatras, neonatologistas e obstetras, com o objetivo claro de prevenir distúrbios psicopatológicos precoces.

Dada a plasticidade do psiquismo infantil, é urgente detectar distúrbios na interação pais-bebê ou sintomas na própria criança, a fim de intervir precocemente para evitar que se agravem os sintomas e se instale um quadro psicopatológico mais definido.

Kreisler (1999) descreve três qualidades fundamentais para um funcionamento interativo e mental de boa resistência psicossomática: a plenitude, a flexibilidade e a estabilidade.

A plenitude é trazida pela mãe a partir de uma riqueza afetiva nas manipulações, no olhar, no contato e na fala. A flexibilidade representa a adequação da resposta materna, ou antecipação materna, às necessidades físicas internas do bebê. A estabilidade é a relação contínua com uma pessoa, como, também, a coerência temporal e espacial dos ritmos de vida em relação ao bebê.

As desordens psicossomáticas podem ser geradas a partir da disfunção dessas três qualidades ou, de uma forma primordial, de apenas uma delas. Podem ser causadas pela insuficiência, pela incoerência presente no vínculo.

Na atualidade, a insuficiência crônica do vínculo por carência libidinal é encontrada freqüentemente na descontinuidade da relação, nas separações da dupla, num vínculo instável da criança ou nas hospitalizações sem motivo aparente, ou ainda no “hospitalismo intrafamiliar, uma relação branca com uma mãe incapaz de investir seu bebê” (KREISLER, 1999, p. 318).

A patologia mais grave desse tipo de insuficiência é a “síndrome do comportamento vazio da criança pequena”; também são muito perigosas a anorexia severa, a ruminação e os vômitos psicogênicos. Há ainda outras patologias, como infecções repetidas, asma complicada por insuficiência respiratória, retrocolite ulcerosa e retardo do crescimento por sofrimento psicológico.

A “síndrome do comportamento vazio da criança pequena” pode ser reconhecida por volta da metade do segundo ano de vida. São elementos essenciais dessa síndrome: pobreza do nível fundamental fantasmático nas atividades lúdicas; indiferenciação da relação de objeto; aceitação de qualquer parceiro; redução aparente desse parceiro à condição de um objeto lúdico qualquer. Um indício fundamental dessa indiferenciação pode ser visto na ausência de inquietação diante do rosto de um estranho, normalmente percebida em bebês dos seis aos oito meses, fase considerada fundamental para o desenvolvimento afetivo; outro é a diminuição, chegando até a ausência, de atividades auto-eróticas e transicionais.

À medida que possa haver um reabastecimento pulsional da relação, somado à potência das pulsões de vida da criança, torna-se provavelmente reversível a síndrome (KREISLER, 1999).

Outro fenômeno gerador de desordens psicossomáticas está ligado ao fator de excesso de estimulação, visto especialmente nos sintomas da insônia primária e

da cólica do primeiro trimestre, que traduzem uma resposta somática do bebê a uma situação de conflito experimentada na relação com sua mãe. A mãe, nesses casos, não consegue desempenhar a função de frear os excessos de excitação do bebê.

O terceiro grupo de patologias psicossomáticas relaciona-se à incoerência, traduzida pelas irregularidades, tanto qualitativas quanto quantitativas, do vínculo, as quais têm influência direta na construção de defesas psicossomáticas por parte do bebê. Representa-se pela descontinuidade dos cuidados dispensados ao bebê por uma infinidade de pessoas e pela irregularidade do comportamento materno, marcado por oscilações: ora há um investimento suficiente e adequado, ora há períodos de grande impaciência, caracterizados por manipulações extremamente rudes.

Na patologia grave denominada “nanismo de desamparo” (KREISLER, 1999, p. 319), ocorre uma reunião de dois fenômenos geradores do distúrbio: a incoerência de cuidados e a carência libidinal na relação. Para Kreisler (1999), o corpo do bebê apresenta-se como um lugar privilegiado para as projeções fantasmáticas dos pais. Como foi anteriormente discutido, preparar o pediatra para uma escuta diferenciada desses sintomas permitiria intervenções precoces, que teriam efeito profilático, diminuindo o risco de desordens psíquicas mais graves.