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Capítulo 3 – Preparação vocal: relato de experiência

3.1 Desenvolvimento do trabalho com cantores

Já foi mencionado que meu relacionamento com o grupo existia antes do projeto ora relatado. Desde 2003, atuei em diversos momentos como preparadora vocal do grupo. Até então nunca de forma constante, mas cada vez que surgia um projeto como

a gravação de um CD ou uma turnê mais longa, eu era chamada para ministrar aulas de técnica vocal. Desta vez, no entanto, o convite era para trabalhar a “expressão corporal” do grupo. O uso das aspas explica-se pela premissa deste trabalho, que questiona a separação entre preparação vocal e corporal. O que, de fato, ocorreu, foi uma continuação do trabalho de preparação vocal, com a diferença de que o processo passou a envolver todos os elementos que perfazem o canto – incluindo-se aí a apropriação do corpo. Entretanto, a percepção dos cantores – e minha, à época – era de um aprendizado da expressão corporal, por estarmos trabalhando com o corpo pela primeira vez.

Uma hipótese que me parece pertinente para explicar a expressividade do grupo até então, é a figura de seu diretor artístico. Sentado ao piano durante ensaios e apresentações, o líder do grupo exercia sua liderança através de um forte carisma, mas não podia exemplificar possibilidades corporais aos cantores. O corpo do mestre, sendo estático por estar preso ao instrumento, resultava em imobilidade nos cantores. Como já foi apontado no Capítulo 1, a corporeidade do mestre influencia a corporeidade do aluno muito mais pela exemplificação do que pelo ensinamento (LARROSA, 2010, p. 11). Assim, embora o maestro já tivesse buscado soluções que resultassem num maior rendimento cênico dos cantores, as mudanças só começaram a acontecer quando ele passou a compartilhar uma função de liderança – preparação vocal – com uma cantora- professora que estava livre para explorar as possibilidades expressivas do corpo-total de LINKLATER (1976, apud: LOPES, 1997, p. 21; vide Capítulo 2).

A função alteritária exercida por Lineu Soares na minha constituição como cantora (explorada no Capítulo 2, subtítulo 2.1.1), parece ter uma contrapartida na função alteritária exercida por mim em sua constituição como maestro e diretor do grupo. A possibilidade se evidencia tanto nas mudanças inseridas por ele nas dinâmicas de ensaio quanto nas exigências que passou a fazer ao grupo, ambas exploradas mais adiante (subtítulo 3.2.4).

A partir de abril de 2007 – enquanto estavam sendo criados roteiro, composições e arranjos vocais – iniciei o planejamento do meu trabalho. O grupo não estava ensaiando regularmente àquela altura, mas apresentava-se com frequência, portanto, filmei algumas destas apresentações para analisar a performance do grupo a partir de

um ponto de vista do espectador (ANEXO D). Por fazer parte do grupo, as filmagens foram essenciais para agregar um olhar externo ao grupo; olhar que fazia-se necessário para entender por onde começar um programa de trabalho.

Estudei algumas possibilidades para encontrar a melhor forma de introduzir este novo elemento no trabalho que já fora realizado anteriormente. Assistindo às filmagens, confirmei minha percepção de que o perfil do grupo, no palco, era bastante rígido. O código – implícito – de movimentos aceitos, incluía movimentação de mãos e braços, pequenos giros do tronco e alguns passos para frente e para trás no palco. Nem todos iam tão longe: alguns ficavam exatamente no mesmo lugar durante toda a apresentação.

A partir dessas primeiras observações, imaginei – corretamente, como pude aferir mais tarde – que essa rigidez se manifestaria também em algum grau de resistência a mudanças na dinâmica dos ensaios. Sabia que deveria trabalhar um repertório corporal que até então não era utilizado pelos cantores, mas o desafio era descobrir como, e por onde, começar. Além disso, havia dois outros fatores limitadores: a falta de experiência do grupo com aquele tipo de proposta e a exiguidade de tempo para alcançar os objetivos propostos. Em relação ao segundo, o tempo era pouco tanto em termos do cronograma geral do projeto, quanto na quantidade de tempo que eu tinha para trabalhar em cada ensaio.

No caso dos primeiros elementos – rigidez no canto e falta de experiência com o engajamento do corpo – era imprescindível que quaisquer mudanças fossem introduzidas de maneira a não causar constrangimentos. Se ficassem envergonhados, os cantores poderiam criar um bloqueio quanto às práticas, recusando-se a envolver-se com as propostas de cada ensaio. Considerei que, se a distância entre rito e jogo é curta (ZUMTHOR, 2005, p. 100), os cantores do grupo encontrariam na “intensidade... e afastamento do comum” (Idem) encontrados no jogo, um caminho para trabalhar o canto engajando o corpo. HUIZINGA (2001), identificando na sociedade uma perda “do sentido do jogo ritual e sagrado,” já afirmara que nada contribui mais “para nos fazer recuperar esse sentido [que] a sensibilidade musical” (p. 178).

Percebia, nos cantores, a sensibilidade musical que os levaria na direção do reconhecimento e apropriação do corpo. Intuí que essa sensibilidade os levaria a

explorar possibilidades expressivas até então não experenciadas. Minha função era facilitar o processo através do jogo, pois o jogo invariavelmente “desemboca na ação, [...] ele já é ação, ação festiva” (HUIZINGA, 2001, apud: ZUMTHOR, 2005, p. 100).

No primeiro encontro com os cantores, comecei por uma atividade de observação, comparando imagens do grupo cantando com vídeos de artistas admirados pelos componentes do grupo. Houve um reconhecimento, entre a maioria, da dificuldade que o grupo tinha com a expressividade naquilo que refere-se ao visual. Usando as filmagens mais antigas do grupo, até as mais recentes, pedi que todos observassem e emitissem opiniões; ao final houve um consenso quanto à necessidade de um trabalho que deixasse os cantores “mais soltos.” Após a observação das filmagens, dei início – pela primeira vez – ao aquecimento engajando o corpo. Para iniciar esta prática – anteriormente havia aquecimento, mas exclusivamente vocal – decidi, como já mencionado, recorrer aos jogos e brincadeiras.

Grande parte dos jogos foram tirados, ou adaptados, de aquecimentos e práticas da disciplina Laboratório II – experimentações sobre o ator, o intérprete e o performer, já mencionada no Capítulo 2. Outros foram extraídos de uma publicação cujo enfoque é a musicalização de crianças (CHAN e CRUZ, 2003). No primeiro caso, vivências experienciadas primeiramente pela cantora foram compartilhadas com os outros cantores, enquanto no segundo, a professora buscou na prática pedagógica as referencias para os aprendizados intencionados. Mais uma demonstração de como a constituição metodológica do trabalho reverbera a partir das práticas da cantora e da professora.

A ideia de trabalhar com jogos e música infantil partiu, primeiramente, da intenção de fazer os cantores brincarem com a música, redescobrindo o prazer ou descobrindo novos prazeres no fazer musical. Em segundo lugar, porque percebia nos cantores sensibilidades musical e espiritual latentes, que, despertadas, os auxiliariam a restaurar a “fusão entre a percepção do belo e o sentimento do sagrado,” os quais dissolvem completamente a “distinção entre o jogo e a seriedade” (HUIZINGA, 2001, p. 178). A brincadeira seria o caminho para aprender a saber-ser expressivo.