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O DESEQUILÍBRIO DO SISTEMA PROVOCADO PELA IMPUTAÇÃO À OPERADORA DE CARGAS

O problema que agora será abordado e que foi percebido com acuidade por LORENZETTI, se refere à segunda forma de provocar o desequilíbrio objetivo do sistema dos planos de saúde: a imputação às operadoras de cargas excessivas que logo se voltam contra os contratantes integrantes da rede. Trata-se do reverso da moeda.

Não é possível esquecer-se do outro pólo da relação, ou seja, das operadoras dos planos de saúde e da necessidade de manutenção da sua saúde financeira, para que o sistema continue bem funcionando. A imposição às operadoras de cargas que não tenham sido alocadas nos cálculos atuariais para obtenção do valor da contraprestação dos segurados faz com que as “engrenagens girem em falso”, produzindo um prejuízo financeiro e um problema nacional, com milhares de segurados desamparados, sem a assistência que buscaram com o plano de saúde. Isso se dá, por exemplo, quando se anulam todas as cláusulas que delimitam os riscos cobertos pela seguradora58.

A correspectividade objetiva das prestações, nos contratos de plano de saúde há que ser analisada durante todo o tempo do contrato, ao longo de seu desenvolvimento, sob pena de ruptura do sistema. É necessário ainda que haja uma

58 LORENZETTI, Ricardo. Redes contractuales: conceptualización jurídica, relaciones internas de colaboración, efectos frente a terceros. Revista de Direito do Consumidor, n. 28, p. 40.

“correspectividade sistemática das prestações”, que deve ser entendida como “la reciprocidad existente entre lo que cada

uno de los integrantes del sistema paga y lo que lo sistema puede satisfacer de acuerdo com su racionalidad econômica”.

Frente a esse fenômeno, aparece o seguinte problema: como encontrar uma fórmula que harmonize os preços pactuados no contrato, no momento do seu nascedouro, com os avanços tecnológicos que surgem com o passar dos anos?

Em outras palavras, diante do desenvolvimento tecnológico, como deve ser solucionado o embate que surge, tendo de um lado o consumidor, defendendo a incorporação pela operadora dos novos tratamentos e equipamentos, sem aumentar o preço; do outro, a operadora, exigindo o aumento dos preços para que sejam incorporadas as novas tecnologias?

Em resposta a essa pergunta, LORENZETTI afirma que os contratos de longa duração requerem uma permanente adaptação, uma cooperação renegociadora contínua, com vista à manutenção do equilíbrio da rede. Essa espécie de negócio jurídico, segundo o autor, exige que a comutatividade seja interpretada através de um conceito relacional e dinâmico, que capte o fato de que as transformações tecnológicas na área médica geram um impacto na relação de equivalência:

“si la empresa dice que hay una nueva enfermedad, o

tecnologia, o listado de médicos y suministra aténcion por um nuevo precio, el conflicto se produce porque se afecta la relación precio/calidad pactuada inicialmente”59.

Para LORENZETTI, as mudanças tecnológicas têm sim de ser incorporadas ao vínculo para que os serviços atendam a justa expectativa dos consumidores, e as operadoras se desincumbam de seu dever de ofertar aos seus clientes as melhores alternativas no tratamento à saúde. Porém, alerta o doutrinador que tal alteração deve ser feita preservando-se a relação de equivalência estabelecida na celebração do contrato. Isso significa que a

59 LORENZETTI, Ricardo Luis. Los servicios de salud. Congresso Inter-Americano de Direito do Consumidor, 1, março de 1998, Gramado. Anais... Gramado: Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, 1998. p. 292-293.

prestação a cargo do consumidor poderia ser majorada, com vista à preservação da comutatividade.

Como ele próprio reconhece, avaliar essa relação econômica entre o preço pago mensalmente pelo consumidor e os benefícios concedidos, após vários anos de desenvolvimento do vínculo, não é simples. Uma das alternativas para se verificar se o preço imposto pela operadora ao consumidor, em contrapartida ao câmbio tecnológico, é justo e capaz de preservar a relação de equivalência entre as prestações das partes, seria

“a través del standard del consumidor medio, examinando si un consumidor de esas características contrataría en las condiciones que se presentan. De tal manera, si la empresa quiere modificar el vinculo porque ofrece nuevos médicos, otras tecnologias, por un precio distinto a una persona con la que tiene una relación contractual prolongada, puede obternerse un índice de razonabilidad analizando si un consumidor actual contrataria en esas condiciones”60

LORENZETTI propõe ainda a utilização de dois critérios complementares para a avaliação do equilíbrio contratual diante das inovações na área médica: (a) o dever das operadoras de adaptar os contratos às modificações tecnológicas não pode ser interpretado de uma maneira tão ampla que permita à operadora unilateralmente substituir um plano antigo por um plano novo, pois, caso isso ocorra, estar-se-á alterando substancialmente as condições do contrato antigo, cuja vigência deve ser assegurada; e (b) a atenção para que as alterações sejam generalizadas, isto é, colocadas à disposição de todos os consumidores antigos – pretende-se com isso evitar critérios discriminatórios baseados nas condições pessoais de alguns afiliados61.

GHERSI, WEINGARTEN e IPPOLITO, também argentinos, discordam parcialmente da posição defendida por LORENZETTI. Com relação à decisão de assumir as transformações tecnológicas, dizem que isso é um imperativo à operadora, que não pode recusar-se a absorvê-los, sob pena de ser responsabilizada pelos prejuízos causados aos usuários:

60 Ibidem, p. 295.

61 LORENZETTI, Ricardo Luis. Los servicios de salud. Congresso Inter-Americano de Direito do Consumidor, 1, março de 1998, Gramado. Anais... Gramado: Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, 1998. p. 295-296.

“Entendemos que ésta es una situación que no puede quedar unilateralmente en manos de la empresa y trataremos de dar nuestros fundamentos: el primero es que la atención médico- asistencial en si misma entraña la obligación de utilizar metodologias y técnicas actualizadas, pues de lo contrario se vería seriamente comprometida la responsabilidad del médico y de la empresa, ya que el objetivo de la prestación es actuar, minimamente, sin la omisión de diligencias en cuanto a la naturaleza de la obligación y las circunstâncias de persona, tiempo y lugar.(...)

En segundo lugar, si el ofrecimiento de los servicios era el adecuado y acorde con el conocimiento científico y tecnológico en el momento de la subscrición del contrato para la incorporación al sistema, esto contiene implícitamente la obligación de mantener actualizado el nivel de prestaciones. En lo atinente al momento en que debe operarse la decisión, si bien ésta es una evaluación muy dificil de hacer en abstracto, podemos señalar como regla general que la empresa tiene la prioridad de seleción del momento; sin embargo, se ésta no se concreta, entendemos que existe um derecho del usuário a reclamarla, aun com fijación de plazo por via judicial”62

Ou seja, vê-se que até este ponto os autores não divergem de modo essencial. Todos concordam que as inovações devem sim ser assumidas pela operadora, que ela deve utilizar a tecnologia e os conhecimentos médicos existentes no momento da prestação do serviço, e não aqueles disponíveis na época da celebração do contrato (que pode ter sido firmado décadas atrás).

O objeto da celeuma está realmente na assunção do custo. Para GHERSI, WEINGARTEN e IPPOLITO, a majoração da contraprestação deve ser arcada pela operadora:

“no nos cabe ninguna duda que debe ser soportado por la empresa, y de ninguna manera debe materializarse en un incremento valorativo de la cuota. Esto es así por varias razones: a) está dentro del denominado riesgo-costo empresário; b) al incorporar al usuário, asumió la obligación implícita de un adecuado servicio, es decir que tácitamente estaba involucrada la actualización tecnológica (...); y c) la incorporación constante de nuevos usuarios, va financiando la incorporación tecnológica. En última instancia, el cálculo actuarial – como en los seguros – demuestra que la expectativa de servicios es menor que la masa de dinero incorporada”63

62 GHERSI, Carlos Alberto; WEINGARTEN, Célia; IPPOLITO, Silvia C.. Contrato de medicina

prepaga. 2. Ed. Buenos Aires: Astrea, 1999. p. 43-44.

63 GHERSI, Carlos Alberto; WEINGARTEN, Célia; IPPOLITO, Silvia C.. Contrato de medicina

A solução preconizada pela tríade de autores, sem sombra de dúvida, protege os consumidores e põe freio na busca de ganhos exorbitantes das operadoras. Eles destacam ainda que é necessário considerar que a medicina pré-paga substitui a função que originalmente cabe ao Estado, encarregado pela Constituição Federal de executar o direito de todos à saúde (art. 196, da CF), motivo pelo qual as operadoras se convertem em agentes sociais da saúde, o que, de alguma maneira, contradiz os princípios da iniciativa privada empresarial64.

Entende-se que a solução encontrada por GHERSI, WEINGARTEN e IPPOLITO é ótima, pois atende aos reclamos constitucionais de proteção ao consumidor e à função social dos contratos, negócios jurídicos esses que devem ter utilidade social e ser voltados para a realização dos direitos fundamentais da pessoa humana. Entretanto, é forçoso salientar que ela parte de um pressuposto que pode não estar presente no caso concreto.

Explica-se: os autores, tal como a maior parte da doutrina nacional, mostram um grande ceticismo quanto à atuação das empresas de assistência à saúde. Partem do pressuposto de que os cálculos atuariais por elas realizados já embutem todos os valores que surgirão com o passar dos anos, a título de avanço na área da saúde, e que o incremento na carteira de consumidores seria por si só suficiente para manter o equilíbrio do sistema. Em síntese, defendem que as operadoras sabem exatamente o negócio que celebram e que não são “ingênuas” ao ingressar nesse ramo de atividade. Tudo seria meticulosamente calculado, para que nunca perdessem seus lucros.

De fato, após o estudo da doutrina argentina, conclui-se que a conduta das operadoras de medicina pré-paga não tem sido merecedora de elogios tanto no Brasil,quanto em outros países, como Argentina e Chile65. Entretanto, essa constatação não autoriza a erigir como regra geral a existência de má-fé em todas as condutas dessas empresas, e a pressupor que nos cálculos atuariais todos os futuros avanços tecnológicos estejam

64 Nesse sentido, op. cit., p. 45.

65 Refere-se ao Chile nesta passagem, pois os artigos e obras consultados fazem menção a diversos julgados chilenos, que indicam a existência de abusividade em cláusulas dos contratos de seguro-saúde celebrados naquele país.

computados, e que o ingresso de novos clientes suportaria o incremento dos custos surgidos com o passar dos anos.

O aumento dos preços dos medicamentos e dos exames em decorrência da modernização do aparato tecnológico não pode ser simplesmente transferido às operadoras, de modo automático e simplista, sem o correspondente aumento da contraprestação do consumidor. O ponto nevrálgico do problema está justamente nos cálculos atuariais: se se constatar que os cálculos realizados pela empresa, à época da celebração contratual, englobam eventuais câmbios advindos da modernização, e também consideram que o acréscimo dos clientes seja capaz de suportar o aumento dos preços, o equilíbrio do sistema estará resguardado da não transferência dos aumentos à massa dos clientes.

Porém, como ressaltou LORENZETTI, tudo isso pode não ter feito parte dos cálculos atuariais. Consequentemente, parte dos ônus terão de ser arcados pelos consumidores, sob pena de falência da rede de contratos e prejuízo a milhares de segurados.

Conclui-se que o foco de atenção dos operadores do Direito sempre deve estar na rede de contratos e na imperiosa manutenção do seu equilíbrio. Somente uma análise pormenorizada dos cálculos feitos pelas operadoras será capaz de detectar se o aumento do plano é legítimo, feito como medida de equilíbrio sistemático, ou se é realmente abusivo. Terão os operadores do Direito de se socorrer de especialistas na área econômica e atuarial, para que as engrenagens da rede mantenham o bom funcionamento, e os planos de saúde possam manter-se no mercado de forma hígida e saudável.

VIII. AS HIPÓTESES DE EXTINÇÃO DOS CONTRATOS INDIVIDUAIS E