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Desinstitucionalização da loucura e a reforma psiquiátrica

O Movimento pela Reforma Psiquiátrica surge em diversos países: Itália, Inglaterra, Estados Unidos, França e, dentre outros, no Brasil, visando não mais o aprisionamento dos sujeitos nesses espaços, mas a substituição desse modelo por serviços territorializados de saúde mental com base na liberdade. Essa desinstitucionalização consiste em um processo de desconstrução de práticas manicomiais para a construção de novas ações que privilegiassem a subjetividade, a autonomia e o livre exercício dos direitos civis dos sujeitos envolvidos (GUEDES et al, 2010). Diante do exposto, podemos dizer que essas novas práticas de assistência às pessoas em sofrimento psíquico, foram e são conquistas alcançadas por meio de esforços e lutas ao longo da história.

Nas políticas de saúde mental, tanto nos países europeus quanto americanos, houve uma disputa acirrada entre o modelo clássico de internação e segregação e a

proposta de intervenção baseada em serviços comunitários. Essas divergências políticas e teóricas produziram conteúdos diferenciados que contribuíram para os avanços na desconstrução da lógica de funcionamento das instituições manicomiais. Mesmo com esses avanços, isso não quer dizer que os manicômios estejam mortos. Muito desses modelos ainda persistem de maneira mais sutil, isto é, mais limpos, modernizados ou humanizados (BARROS, 1994). Ainda sobre esse fator histórico, CAMPOS (2014, p. 10) acrescenta que:

Desde a década de 70, com a organização do Movimento da Reforma Psiquiátrica, o tratamento focalizado na internação em hospícios e asilos manicomiais passou a ser fortemente questionado. Cabe ressaltar que este Movimento foi inicialmente formado por profissionais da área da saúde mental, visando a incorporar também as famílias dos pacientes e os próprios pacientes. O Movimento da Reforma Psiquiátrica ganhou força a partir dos avanços da Reforma Sanitária, consagrada na Constituição de 1988 e, posteriormente, com o advento do Sistema Único de Saúde – SUS, instituído com a lei 8.808, de 1990.

A importância do movimento de desinstitucionalização do modelo psiquiátrico consiste no fato de mostrar, a partir das práticas realizadas dentro dos manicômios, a lógica de funcionamento que a sustenta. Essas práticas eram violentas, desumanas, repressivas, sistemas de punição, banhos coletivos, lobotomia14, eletrochoques etc. “O movimento de desinstitucionalização revelou o manicômio como ‘locus’ de uma psiquiatria que é a administração das figuras da miséria, periculosidade social, marginalidade e improdutividade” (BARROS, 1994, p. 176). Podemos dizer que essas lutas foram o início para uma nova perspectiva do cuidado em saúde mental baseado na libertação e reinserção social.

Quando tratamos da história da psiquiatria no Brasil, não podemos nos esquecer do nome de uma mulher que revolucionou a forma de lidar com os pacientes esquizofrênicos. Nascida em alagoas, Nise da Silveira foi uma grande revolucionária na psiquiatria brasileira. Segundo Hidalgo (2011), Nise fundou no Hospital do Engenho de Dentro a Seção e Terapia Ocupacional e Reabilitação, uma série de ateliês de arte para pacientes esquizofrênicos, como uma forma de expressarem por meio da linguagem do

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Intervenção cirúrgica no cérebro para seccionar as vias que ligam os lobos frontais ao tálamo. Eram práticas utilizadas com frequência em pacientes com certos tipos de doenças mentais, como forma de acalmá-los. A lobotomia é uma técnica bárbara ainda utilizada no país (ARBEX, 2015).

inconsciente, pinturas, desenhos e esculturas. Munidos de materiais, os pacientes davam cor e forma como uma maneira de construção de si mesmos. Os resultados surpreenderam especialistas da área da saúde mental e críticos de artes, uma vez que muito das produções dos pacientes apresentavam qualidades estéticas expressivas.

Nise da Silveira era totalmente contra os métodos de tratamento psiquiátricos rígidos daquela época. Ao invés dos eletrochoques, lobotomia e do isolamento, ela utiliza-se da arte e de um olhar clínico sensível para enxergar os pacientes de um ponto de vista humanizado. Para Weinreb (2003) o método adotado por Nise consistia na integração íntima entre o olho e a mão, entre o sentimento e o pensamento, como forma de exercitar a ação criativa. Sua intensão não era, de certa maneira, criar obras de artes, mas que essas oficinas fossem uma forma dos pacientes estabelecerem uma linguagem com o meio, ajudando no convívio social.

Como uma das grandes histórias de superação dos modelos e limites da psiquiatria, podemos citar o nome de Arthur Bispo do Rosário. Segundo Hidalgo (2011), Bispo nasceu em Japaratuba, cidade localizada a 54km de distância de Aracajú, capital de Sergipe. Quando deu entrada no Hospital Nacional dos Alienados, beirava os 30 anos de idade. Foi diagnosticado com esquizofrenia-paranoide e tinha delírios de natureza mística com referência a signos do catolicismo. Mesmo que, para a psiquiatria os seus discursos serem tratados como alucinações, para ele os delírios eram visões. Entre narrativas reais e ficcionais, Bispo criava e recriava o seu mundo.

Transferido para a Colônia Juliano Moreira em Jacarepaguá, na cidade do Rio de Janeiro, certa vez com a falta de materiais para criar sua arte, Bispo teria desfiado o próprio uniforme azul da Colônia para reaproveitar os fios e fazer os seus bordados. De certa maneira, desfiar esse uniforme era quase que desconstruir um dos grandes símbolos do poder psiquiátrico. No isolamento, a arte brotava nas mãos do Bispo e, a partir daí, ele foi criando um mundo paralelo ao mundo do manicômio. Vale ressaltar que em 1982, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM) expôs pela primeira vez alguns exemplares do universo desse artista. Vale pontuar que Bispo não foi paciente da doutora Nise da Silveira (HIDALGO, 2011). Portanto, podemos dizer que essas transformações na psiquiatria se deram por meio de lutas e de enfrentamentos,

como uma maneira de desconstruir esse poder psiquiátrico, permitindo o surgimento de um novo modelo de atenção à saúde mental.

Sobre esse processo de reinserção social das pessoas em sofrimento psíquico, Jodelet (2005) relata que as transformações da prática psiquiátrica ocorridas com a abertura dos hospitais, com a setorização e com a terapia comunitária, foram mudanças de ótica, no que se refere ao verdadeiro problema da relação com esses sujeitos. Isto é, da representação da doença ao estado mental, para se construir a alteridade e o status social desses indivíduos. Essas transformações correspondem a uma mudança de paradigma na abordagem das relações intergrupais, ao repor o doente mental no tecido social.

Essas transformações correspondem ao terceiro período apontado por Thornicroft e Tansella (2010), que teve início a partir de 1980. Referindo-se ao desenvolvimento do cuidado em saúde mental comunitária. Esse período é marcado por transformações significativas na substituição de asilos por serviços menores. Ocorre a redução de leitos hospitalares e entra em cena a importância da família em termos de oferta de cuidado e da participação no tratamento dos indivíduos; construção de centros comunitários de saúde mental; avaliação das necessidades dos indivíduos; grupos de luta pelos direitos dos pacientes e grupos de autoajuda; outro fator importante para o cuidado em saúde mental comunitária é a ênfase no trabalho multidisciplinar e o surgimento da preocupação com o equilíbrio entre o controle dos pacientes e a independência desses indivíduos.

No âmbito das políticas públicas de saúde mental no Brasil, podemos citar a Lei Federal 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Esta lei aponta os direitos assegurados aos portadores, tais como: receber tratamento com humanidade e respeito, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade; ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis; receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento; fornecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros (BRASIL, 2001).

Segundo Campos (2014), essa lei foi uma conquista do movimento social organizado que deu respaldo e legitimidade ao processo da Reforma Psiquiátrica no que se refere à proteção das pessoas em sofrimento psíquico. Essa reforma permitiu o redirecionamento de todo o modelo assistencial na área da saúde mental. Os serviços e atendimentos voltados a esse grupo devem ocorrer na rede de atenção psicossocial criada pelo Sistema Único de Saúde (SUS), em cooperação com as secretarias de saúde de Estados e municípios.

Podemos dizer que é responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, assim como, também, fornecer a assistência e a promoção de ações de saúde aos indivíduos em sofrimento psíquico, com a devida participação da família e da sociedade. As discussões políticas e as ações no campo da saúde mental são fundamentais para a reconstrução de um novo olhar humanizado e para minimizar os preconceitos e estereótipos.

Segundo Guedes et al (2010), as mudanças no cuidado em saúde mental, no que se refere aos serviços substitutivos, trouxeram significativos desafios para os profissionais da área da saúde. Desde essas mudanças, podemos citar o trabalho interdisciplinar, a troca de valores e um olhar humanizado. Se antes as ações eram respaldadas no preconceito, descaso e segregação, agora elas devem ser nortadas no cuidado e na valorização da subjetividade.

Através da reforma psiquiátrica foi possível um olhar diferenciado sobre a loucura, privilegiando o cuidado humanizado e individualizado aos indivíduos em sofrimento psíquico. Entretanto esse vai muito além de aspectos inerentes à saúde, deve contemplar todos os âmbitos que perpassem a vida cotidiana dos sujeitos, proporcionando assim um aumento de sua autonomia, resgatando a cidadania destes em todas as nuances do seu viver (GUEDES et al, 2010, p. 550).

No Brasil, as ações de saúde mental na atenção básica devem obedecer ao modelo de redes de cuidado. Devem estar fundamentadas nos princípios do SUS e nos princípios da Reforma Psiquiátrica. Dentre esses princípios fundamentais podemos citar as seguintes ações dessa articulação: noção de território, organização da atenção à saúde mental em rede, intersetorialidade, reabilitação psicossocial, multiprofissionalidade/interdisciplinaridade, desinstitucionalização, promoção da cidadania dos usuários, e a construção da autonomia possível de usuários e familiares

(BRASIL, 2004). Ainda sobre essa reestruturação dos serviços em saúde mental, Campos (2014, p. 11) afirma que as ações

[...] devem estar preferencialmente localizadas na própria comunidade na qual o sujeito está inserido e devem buscar, além do tratamento e de propostas assistenciais e de reabilitação, medidas preventivas e educativas. Este modelo exige também a formação de uma rede de profissionais que possam desenvolver ações que resgatem e/ou desenvolvam a saúde mental da população.

Podemos dizer que ainda há muitos desafios no processo da reforma psiquiátrica brasileira para a construção de uma rede de atenção em saúde mental, no entanto, é perceptível enxergar os avanços teóricos e práticos. A reforma psiquiátrica não deve ser vista apenas do ponto de vista pragmático, mas através de uma construção de um novo lugar social, político e cultural para a loucura. Há uma nova forma de lidar com as diferenças, partindo de profissionais comprometidos com a reabilitação psicossocial e a reinserção dos sujeitos (GUEDES et al, 2010). Sobre esses avanços nas políticas públicas em saúde mental no Brasil, Campos (2014, p. 42) afirma que:

A Reforma Psiquiátrica, política pública do Estado brasileiro de atenção às pessoas em sofrimento psíquico, vai além de uma reforma da assistência pública em saúde mental. Afinal, trata-se de um completo processo de transformação epistemológica, assistencial e cultural que rompe com o modo asilar, lugar este excludente, hegemônico e punitivo, caminhando ao modo psicossocial, lugar este aberto, territorializado, de tratamento e convívio, de realização de trocas que vislumbram a cidadania e o protagonismo social. No âmbito do SUS, a partir da Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011, foi instituída a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) que tem a finalidade da criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas. O art. 3º desta portaria trata dos objetivos gerais da RAPS, que são: ampliar o acesso à atenção psicossocial da população em geral, promover o acesso das pessoas com transtornos mentais e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas e suas famílias aos pontos de atenção, e, garantir a articulação e integração dos pontos de atenção das redes de saúde no território, qualificando o cuidado por meio do acolhimento, do acompanhamento contínuo e da atenção às urgências (BRASIL, 2011). A RAPS é constituída pelos seguintes componentes:

I - Atenção Básica em Saúde;

II - Atenção Psicossocial Especializada; III - Atenção de Urgência e Emergência;

IV - Atenção Residencial de Caráter Transitório; V - Atenção Hospitalar;

VI - Estratégias de Desinstitucionalização; e VII - Reabilitação Psicossocial (BRASIL, 2011).

Dando sequência aos argumentos dos avanços das políticas públicas em saúde mental, Campos (2014), ao tratar dessa portaria, acrescenta que além de definir os pontos de atenção da RAPS, ela buscou organizar o sistema de atendimento no que se referem aos seus componentes básicos, assim como também, os programas principais. Os componentes dessa rede podem ser órgãos do governo federal, estadual ou municipal que seguem as diretrizes do Ministério da Saúde. Para uma melhor compreensão de cada componente da RAPS, apresentamos no (ANEXO A) uma matriz diagnóstica proposta pela Portaria nº 3.088/2011.

Dentro do componente Atenção Psicossocial Especializada da RAPS, encontram-se os CAPS, que são constituídos por equipes multiprofissionais que atuam sob a ótica interdisciplinar e realizam atendimentos às pessoas em sofrimento psíquico ou com necessidades decorrentes do consumo de álcool e outras drogas, em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo e não intensivo. Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), nas suas diferentes modalidades, são pontos estratégicos das RAPS, conforme trataremos a seguir.

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