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2. COLOCAR O SALTO, ENSAIAR O PERCURSO

2.1 O FAZER CIENTÍFICO NO PERCURSO CARTOGRÁFICO

2.1.1 Desmontagem

Em princípio, a desmontagem revela-se como uma pista do método da cartografia, sendo relacionada às políticas narrativas da pesquisa, as quais estão vinculadas às formas de expressão do que se passa em relação a nós e ao mundo. A produção de conhecimento abrange diferentes formas de recortar o socius e, portanto, de produzir realidades. Nesse sentido, compreende-se que o processo de investigação é atravessado por narrativas que

51 envolvem posturas distintas, dentre as quais estão a redundância e a desmontagem (PASSOS, BARROS, 2015a).

Através da redundância, o foco se mantém nos padrões de repetição do sentido de um fenômeno, voltando-se para as identidades e unidades bem definidas, nas quais os limites são apresentados de modo preciso. Nesse viés, um caso específico investigado confirma o padrão estabilizado em torno de um sentido único, havendo a repetição do mesmo por meio da sobrecodificação dos sentidos. Com isso, pode ser que não se encontre nada além do que já se sabe, mantendo-se o fechamento para as imprevisibilidades.

Por outro lado,

o procedimento narrativo da desmontagem das formas permite, em suas bordas, atiçar o que lá insiste/resiste como força de criação. No limite das formas algo vibra e contagia. Essa vibração, esse contágio cria uma ativação intensiva que permite tender (ir em direção)/estender os limites do caso (PASSOS; BARROS, 2015b, p.164).

Dessa maneira, de um caso estudado podem emergir mil casos33, ocorrendo sua dissolvência em fragmentos e linhas intensivas das quais emergem montagens heterogêneas. A partir disso, partículas de sentido se liberam como linhas de fuga, permitindo que a forma se abra e entre em variação, com isso, ela torna-se outra em um processo de devir que viabiliza a germinação de outros mundos possíveis, sendo tarefa aqui proposta destacar essas possibilidades (ver subitem 6.2 – Rupturas de sentido). Para operar na desmontagem é necessária uma postura prática de “estrangeiridade” em relação ao que está dado (PASSOS; BARROS, 2015b), assim é viável produzir estranhamentos das regras e normas preestabelecidas.

Segundo Eduardo Passos e Regina Benevides de Barros (2015a), a desmontagem implica incorporar um conjunto de procedimentos processuais que estão entrelaçados. Para levar os territórios ao seu limite é necessário aumentar o coeficiente de desterritorialização através da desestabilização dos eixos dominantes de organização comunicacional – horizontal (homogeneização) e vertical (hierarquização). Nesse

33 Como sugestão de Rosário em encontros de orientação, talvez seja possível falar em um estado instável de “subcodificação” que resiste à estabilização de um sentido coerente que se impõe sobre as repetições.

52 processo busca-se os vazamentos, o que envolve a quebra de territórios identitários e das micropolíticas que constituem seu modo de narrar.

Além disso, pode-se dizer que esses movimentos de desterritorialização dos territórios estabelecidos estão relacionados com o grau de transversalidade. Segundo as autoras “traçar a transversal é, no que diz respeito aos modos de dizer, tomar a palavra em sua força de criação de outros sentidos, é afirmar o protagonismo de quem fala e a função performativa e autopoiética das práticas narrativas” (PASSOS; BARROS, 2015b, p.156).

No que concerne a isso, assumindo uma atitude de investigar com os corpos eletrônicos drags, busca-se traçar algumas articulações entre as linhas de força acessadas no rastreio dos audiovisuais, evidenciando as estratificações e as linhas de fuga implicadas nos processos de (des)montação dos tutoriais (ver capítulo 6). Entretanto, deve-se ressaltar as diferenças entre a desmontagem e a (des)montação, conforme trabalhadas na presente investigação. Isso porque, sob determinados aspectos, os corpos eletrônicos drag igualmente são capazes de operar por redundância, questão que será retomada no próximo subitem.

Outro procedimento identificado por Eduardo Passos e Regina Benevides (2015a) é a operação de antonomásia, em que se parte do pessoal para o impessoal. Assim, através dos enunciados que emergem nos audiovisuais e das articulações entre os corpos eletrônicos, é possível acessar os vetores intensivos dos quais surgem essas formas. Por meio disso, busca-se traçar um plano comum de experiência que é vinculado aos agenciamentos coletivos de enunciação.

Nesse ponto de vista, supõe-se que o processo de enunciação precede o enunciado de um sujeito, o qual pode ser entendido como índice de agenciamentos e funções, emergindo ele mesmo das relações entre as multiplicidades agenciadas (DELEUZE; GUATTARI, 2011b). Desse modo, compreende-se que o próprio sujeito está implicado em diferentes agenciamentos que se articulam em um plano de fluxos heterogêneos e múltiplos, sendo as linguagens audiovisuais parte dessas montagens.

Portanto, entende-se que o encontro com os vídeos, tendo como critério a desmontagem, envolve observar as linhas de segmentação duras em relação às linhas de

53 fuga, as quais são capazes de produzir rupturas e vazamentos nas cristalizações que insistem em aparecer como dadas. As linhas de segmentação duras são relacionadas às formas instituídas no plano molar, apresentando delimitações rígidas segundo os eixos de organização vertical (hierarquização) e horizontal (homogeneização), por exemplo, identidade, classe, sexo, idade, profissão etc.

Já as linhas de fuga estão em variação contínua, geram mudanças, rupturas imperceptíveis que decorrem em metamorfoses, elas atravessam as formas estabelecidas em movimentos transversais, fazendo germinar novas relações. Uma não está em oposição a outra, elas funcionam uma em relação com a outra, segundo as dinâmicas de estratificação e desestratificação (ALMEIDA, 2003; ROLNIK, 2016). Para situar essas linhas, faz-se necessário construir os mapas moventes na etapa do reconhecimento atento (ver subitem 6.3.1).

Deve-se frisar que a desmontagem também não envolve regras fixas a serem aplicadas em um momento específico. Entende-se que ela atravessa todo o processo de investigação, incluindo a produção do relatório final, sendo relacionada com a postura de implicação no campo que visa o acesso aos planos de forças de onde emergem a pesquisadora e o objeto.

Como sugerem Passos e Barros (2015b),

chega-se ao plano intensivo a partir da transgressão de formas sociais dominantes. O método implica uma ação sobre o caso abrindo o coeficiente de transversalidade para comunicações extracódigo, fechando-lhe para as ameaças dos significantes sociais operadores de sobrecodificações. Agir sobre os coeficientes de transversalidade dos casos, eis a indicação metodológica (p.157).

Portanto, ressalta-se que o acesso ao plano intensivo de produção das formas se dá por meio da desmontagem dos territórios e padrões sociais dominantes, sendo o foco não as identidades, mas as rupturas de sentidos que permitem a desidentificação e a produção de sentidos outros. Com base nesses procedimentos, intenciona-se desdobrar a noção de desmontagem como uma técnica para a análise do corpus, a qual se constitui no entrelaçamento entre elementos provindos da análise fílmica e práticas de montação drag, como já sugerido anteriormente.

54 2.1.2 (Des)montação

Conforme já explicitado anteriormente, neste tópico busca-se articular as reflexões acerca da desmontagem, como aparece na cartografia, com as montações drag e aspectos da linguagem audiovisual, convergindo na construção do procedimento de (des)montação34.

De acordo com Anna Paula Vencato (2005),

a expressão montaria designa aquilo que se carrega na mala, ou seja, trajes e acessórios; trajes e acessórios já postos/montados sobre o corpo; maquiagem pronta somada a trajes e acessórios; todo o conjunto que se vê montado de/em uma drag (p.232-233).

Em relação a isso, pode-se propor então que os procedimentos de montação, ou montaria, referem-se às ferramentas de trabalho, às técnicas envolvidas na articulação de elementos heterogêneos, aos códigos e processos comunicacionais implicados na materialização de territórios existenciais drag. Nesse viés, a montação está relacionada ao ato de montar, construir algo, articular peças segundo linhas de montagem com o intuito de expressar algo.

Considerando-se que os processos de montação conjuntamente envolvem desterritorializações dos corpos envolvidos, é cabível pensar que existe certa relação com a noção de desmontagem na cartografia. Em ambos os casos, a transformação e abertura dos sentidos parecem se fazer presentes. Se assim o for, a partir da sobreposição dos movimentos de montação e desmontagem, é viável pensar em uma espécie de (des)montação que se configura como um procedimento de pesquisa apropriado para a análise dos vídeos estudados.

Contudo, não seria correto pressupor que toda e qualquer montação drag tende aos mesmos coeficientes de desterritorialização, sendo necessário frisar que os termos desmontagem e (des)montação não devem ser entendidos como sinônimos, ainda que apresentem pontos de conexão. Enquanto, por um lado, a desmontagem dos corpos viabilizada pelas montações drag é capaz de gerar níveis de tensão intensos em relação

34 No anexo 9.2 encontra-se um quadro (figura 50) com as variações do termo montagem aplicadas ao longo desta pesquisa.

55 às formas estratificadas, rompendo as codificações e sentidos postos. Por outro lado, esses mesmos processos de desterritorialização igualmente são capazes de se reterritorializar em outras formas por meio de dinâmicas redundantes, gerando novos pontos de cristalização.

Portanto, o que aqui emerge enquanto (des)montação também pode indicar redundâncias, dependendo do modo como opera cada montagem. Além disso, como já foi dito anteriormente, é preciso considerar que os corpos drag em questão estão articulados ao audiovisual, compondo corpos eletrônicos drag. Sendo assim, o procedimento de (des)montação deve ser pensado em associação com a linguagem audiovisual.

Segundo Laurent Julier e Michel Marie (2012), existem alguns elementos formais constituintes da linguagem audiovisual que podem ser identificados em análise fílmica, os quais são divididos no nível do plano, da sequência e do filme. Ainda que o enfoque dessa pesquisa não sejam os filmes, acredita-se viável partir dessas reflexões para pensar a linguagem audiovisual de modo mais amplo.

No nível do plano (considerado como os fragmentos que se situam entre dois pontos de corte) estão situados o ponto de vista - relacionado ao posicionamento da câmera -; o enquadramento; a composição do quadro; os ângulos; a distância focal; a profundidade do campo; os movimentos de câmera; as luzes; as cores; e, o som – ruído, música, palavras. Já no nível da sequência (formada por um conjunto de planos com alguma unidade narrativa) estão os pontos de montagem; a cenografia; entre outros indicadores de leitura da composição como, suspense, efeito clipe, metáforas audiovisuais. Por fim, no nível do filme estão os recursos da história; as figuras narrativas; os gêneros e estilos; a relação com o espectador; entre outros.

Em vista disso, nota-se que há uma amplitude de elementos envolvidos na composição de um audiovisual, seja ele fílmico ou de outro tipo. Para o presente estudo acredita-se necessário dar enfoque para os enquadramentos, composição do quadro, ângulo de câmera e os enunciados em circulação nos vídeos. Isso porque no decorrer do rastreio parece que através desses componentes é possível pensar sobre como operam as dinâmicas de redundância e desmontagem nos aspectos audiovisuais do corpo eletrônico.

56 Além disso, também são levados em conta os gêneros audiovisuais específicos do YouTube, os quais são desdobrados no capítulo 5. Se durante as (des)montações outros elementos se destacarem eles serão apontados no decorrer do processo.

Com base no que foi dito até aqui, entende-se que a desmontagem se apresenta de maneiras distintas, uma delas é em relação às políticas de narratividade, a qual envolve o acesso ao plano de forças e o tensionamento das formas estabelecidas por redundância. Já nas práticas drag, a desmontagem é um dos movimentos que pode atravessar as montações em variadas intensidades, constituindo as (des)montações que se diferenciam pelos coeficientes de desterritorialização em comparação com aquilo que se mostra como redundância.

Sendo assim, a (des)montação dos corpos eletrônicos drag implica evidenciar as composições audiovisuais em termos de enquadramento, composição do quadro, ângulo de câmera e enunciados. Tendo como enfoque o modo como dão a ver as performances de gênero em ato e as rupturas de sentido capazes de desarticular as Performatividades de gênero instituídas. Com isso, é exequível decompor o conjunto audiovisual, identificando-o em relação aos movimentos de desmontagem (enquanto abertura de sentidos) e de redundância (enquanto estabilização dos sentidos). Deve-se ressaltar que a desmontagem e a redundância podem se sobrepor segundo os diferentes aspectos indicados, não estando em oposição, mas sim, em conexão.

Com base no que foi discutido até aqui, compreende-se que como procedimento metodológico a (des)montação35 coloca em conexão a montação, a desmontagem e as montagens audiovisuais36 inseridas na composição dos corpos eletrônicos. Por essa via, um dos papeis da/o cartógrafa/o é traçar e explicitar as diversas articulações entre as linhas de força encontradas, evidenciando as estratificações e as desestratificações que atravessam um território habitado. Nisso, ela/ele busca uma imersão no âmbito das

35 Para avançar na composição dessa noção pode ser interessante incorporar reflexões sobre a montagem em Didi-Huberman como no caso de “Um saber montado: Georges Didi-Huberman a montar imagem e tempo” (CAMPOS, 2017), “Dispor e recompor: o documentário sob o gesto da montagem” (FRANÇA; HABERT; PEREIRA, 2011). Ampliando ainda mais as conexões possíveis também existem pesquisas como “Dadá-Berlim des/montagem” (1993) de Norval Baitello Junior que pensa sobre o processo de trabalho de movimentos de vanguarda, nesse caso, o Dadaísmo.

36 Em outra oportunidade é viável desdobrar esse ponto em relação com as teorias da montagem no cinema como as de Sergei Eisenstein em “A forma do filme” (2002) e “O sentido do filme” (2002).

57 processualidades em sua complexidade, havendo preocupação tanto com o que se mostra visível e audível quanto com as invisibilidades e silêncios que só podem ser percebidos enquanto vislumbres fugazes.

Em outros termos, interessa notar como operam os eixos dominantes de organização comunicacional (horizontal e vertical), bem, como, as linhas transversais que os atravessam em variação contínua produzindo desarticulações e rupturas de sentido. Com isso, é viável evidenciar tanto as sobrecodificações quanto os estados de “subcodificação” que atravessam o âmbito das comunicações extracódigo. Trata-se de explicitar as distintas estratégias de entrelaçamento entre linhas de segmentariedade duras, linhas de segmentariedade flexíveis e linhas de fuga, cultivando as tensões que se desenham no território habitado.

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