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CAPÍTULO 2 TRAÇOS GERAIS DA NOÇÃO DE INTERIORIDADE EM

2.5 INTERIORIDADE E DESNUDAMENTO: ALCANCES E RELEITURAS NA

2.5.2 Desnudamento e centro interior da alma

Passamos a tratar das ressonâncias do desnudamento, na Subida, quanto à substância da

alma (ou da quarta potência), cuja pertinência para o tema da interioridade parece-nos

53 “[…] así como la fe se arraigó e infundió más en el alma mediante aquel vacío y tiniebla y desnudez de todas

las cosas, o pobreza espiritual, que todo lo podemos llamar una misma cosa, también juntamente se arraiga e infunde más en el alma la caridad de Dios. De donde, cuanto más el alma se quiere oscurecer y aniquilar acerca de todas las cosas exteriores e interiores que puede recibir, tanto más se infunde de fe, y por [con]siguiente, de amor y esperanza en ella, por cuanto estas tres virtudes teologales andan en uno” (Sub. II,24,8).

evidente por si mesmo. “Substância evoca interioridade”, escreve Barreira (2004, p. 82) a propósito de uma citação da Noite Escura. Isso configura a indagação que desejamos estruturar, pois leríamos na Subida uma elaboração sui generis que diferencia João da Cruz não apenas de uma expressiva tradição mística, como também de si mesmo.

Precisamos familiarizar-nos com a multiplicidade de termos que exprimem uma noção cujas aparições são literariamente contadas por Urbina. A “substância” da alma é também designada como “fundo”, “centro” e até “ápice” da alma. Mesmo que um “fundo” conote uma localização antagônica a um “ápice” – urge encontrarmos um paradigma que estabeleça uma identidade entre esses extremos –, é notório um caráter de interioridade, como ainda a ideia de uma situação terminal: o fundo/ápice da alma configura, na linguagem mística, a finalização de um processo de recolhimento que, tendo ganhado em profundidade, alcançou os estágios mais elevados da contemplação. Além de centro, em Moradas Teresa d´Ávila também registrou “essência da alma”, em alusão à morada mais interior do castelo onde habita o Rei (cf. URBINA, 1956, p. 201).54

Segundo Barreira (2004, p. 83), “substância possui o mesmo significado de fundo e

raiz, que correspondem ao termo joãocruciano centro, onde se realiza a união habitual e

contínua com Deus, ou, noutras palavras, a existente entre o humano e o divino”. De uma parte, por centro se exprime “as potências superiores numa totalidade”; porém em João da Cruz ocorre um deslocamento: por situar-se no íntimo da alma, o centro “vincula-se mais a Deus que às potências”.

Isso determina que o entendimento acerca da substância da alma seja subsidiário de um tema preliminar: quanto à presença de Deus na alma. Em Tauler, a combinação Grund-

Abgrund (fundo sem fundo) sugeria, de maneira direta, que “o infinito centro da substância da

alma encerra-se no abismo da divindade” (BARREIRA, 2004, p. 84). Em João da Cruz, por sua vez, tal concepção modula-se em pelo menos três maneiras: além de Deus dar ser ao ser da alma, o que caracteriza a dependência ontológica da criatura para com o Criador (presença essencial ou metafísica), a graça sacramental (ou espiritual) “refere-se à maneira de Deus visitar a alma” (BARREIRA, 2004, p. 86), enquanto que a presença mística ou afetiva traduz uma experiência de quando a alma, unindo-se com Deus, sente “em seu íntimo, a sua permanência amorosa” (BARREIRA, 2004, p. 85).

Retornando à Subida, Urbina (1956, p. 206) avalia em passagens como Sub. III,40,1 e

Sub. II,12,1 um movimento explícito de “interiorização progressiva que termina na intimidade

onde a alma se une com Deus”; ele orienta que Noite e Cântico apenas dão mais destaque a esse mesmo movimento, vindo a ser útil nessas obras um acervo de expressões que significassem o máximo grau de interiorização. Na realidade, para Urbina (1956, p. 208) é na

Chama onde conceitos como centro da alma, fundo interior, substância etc. adquirem “sua

maior força até formar[em] uma verdadeira ontologia do fundo da alma. Sendo interessante notar que é precisamente na Chama onde o caminhar místico chega a sua plenitude”.

Nas citações levantadas por Urbina, A Subida exibe a expressão “interior recolhimento da alma” (Sub. III,40,1), como efeito da mudança do templo visível para o templo vivo e invisível, e “íntimo recolhimento” (Sub. II,12,1), em que procedendo do mais exterior para o mais interior, chegue a alma a unir-se com Deus. É bastante convincente quem diga serem essas referências um prenúncio de construções formalmente melhor elaboradas em outras obras, arguição que se corrobora à menção de uma “união essencial” (Sub. II,5,3), e ao propor que a paulatina interiorização, onde o espiritual vai se tornando mais habitual à alma, tem como horizonte a “substância do espírito” (Sub. II,17,5-6). Além do mais, A Subida também assinala que a “substância da alma”, nas primícias da união, é penetrada por certos “toques” que não poderiam ser simulados pelo demônio (cf. Sub. II,26,5-6)55; nessa mesma substância é produzida uma classe de locuções interiores, as “palavras substanciais”, que realiza no espírito aquilo que elas significam (cf. Sub. II,28,2); enfim, é também na substância que Deus gratifica a alma com a apreensão de certos “sentimentos espirituais” tão elevados que “trazem à alma imenso bem e proveito” (Sub. II,32,2).

Será que todos esses indícios sancionam a leitura de que João da Cruz trabalha com uma divisão tetrapartide (cf. Chama 1,17.20.25, apud URBINA, 1956, p. 212): entendimento, memória, vontade e substância? Será que o centro da alma corresponde a um “local” onde Deus fixa sua morada nessa zona mais profunda da alma? A alternativa de se pensar esses termos num aspecto dinâmico é a opção de Urbina (cf. 1956, p. 210-211): o “centro da alma” não é a própria alma (sentido subjetivo ou real), e sim Deus que opera, na alma, como ponto para onde tendem todas as energias da mesma alma (sentido objetivo ou intencional). Nas palavras de Barreira (2004, p. 91), a “substância da alma seria melhor entendida como uma espécie de centro de gravidade das potências em sua totalidade”; isso inibe que ela seja contabilizada como uma quarta potência e tampouco desenhada como um “substrato vazio no qual estas se inseririam de maneira acidental” (BARREIRA, 2004, p. 92).

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“[...] por ser cosa que tan a lo junto pase con Dios, donde el alma con tantas ansias codicia llegar, estima y codicia un toque de esta Divinidad más que todas las demás mercedes que Dios le hace” (Noche II,23,12; cf.

É certo que nas obras de João da Cruz há convincentes registros que nos fazem sentir convidados a persistir nessa questão (cf. URBINA, 1956, p. 207-219). Contudo haveria maior tenacidade se nossa reflexão firmasse a hipótese de que A Subida, esboçando uma exceção, viesse a representar uma elaboração mais ousada de noções que o reformador descalço herda, mas que não lhe são originais. Viemos discorrendo sobre um caminho de interiorização que tem como termo a substância da alma, em cujo fundo/centro/ápice se descreve a união da alma com Deus. Embora seja indiscutível que João da Cruz se vincule a essa narrativa, gostaríamos de nos sentir seguros em dizer que A Subida programa uma intensa revisão dessas coordenadas discursivas.

Se concluirmos por força dessas anotações, precisaríamos reavaliar o lugar da Subida em relação às obras maiores. É curioso que ela, onde vimos serem mais frequentes as palavras “interior” e “interiormente”, seja também a que entre as obras maiores tenha menos pretensões com uma “substância” da alma; A Subida se subtrai quanto a um “centro”, diferentemente das insistentes explicações que em outros lugares parece impetrar uma reivindicação (cf. Chama 1,9-17; 2,8; Cântico 12,1; 17,1)56. Devemos atribuir isso ao projeto, tão singular à Subida, de retrair-se aos discursos para ver-se mais desimpedida rumo ao estado de contemplação (cf. Sub. II,13)? Fundo, centro, ápice, substância não são efeitos de uma discursividade contra a qual A Subida devota todos os seus recursos para seguir adiante pela senda da união (cf. Sub. II,14-17; 29,5.9 etc.)? Por conta do seu rigoroso processo de interiorização, não sucumbem na Subida todo o acervo que outrora exprimia o grau máximo desse mesmo processo?

É plausível supormos que o desnudamento das potências seja, na Subida, tão austero que se torna inadmissível o aparato discursivo-terminológico que prestava tal assistência. Com essa hipótese, não é mais a Chama que galga uma plenitude conceitual de que carece A

Subida; pelo contrário, é A Subida que alcança uma interioridade tão longânime que sequer as

esmeradas especulações da Chama suportariam a intensidade. E é assim que no lugar de fundo, centro, ápice, substância, o que se registra é: mortificação, desnudez, negação, vazio, nada, nada, nada...

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Já em certa estação, a alma quer ir a Deus com tanta veemência que João da Cruz a compara com a pedra que rola com ímpeto e velocidade até repousar em seu centro, ou “la cera que comenzó a recibir la impresión del sello y no se acabó de figurar” (Cántico B,12,1); “[...] las ausencias que padece el alma de su Amado en este estado de desposorio espiritual son muy aflictivas [...]” (Cántico B,17,1). “El centro de el alma es Dios, al cual cuando ella hubiere llegado según toda la capacidad de su ser y según la fuerza de su operación e inclinación habrá llegado al último y más profundo centro suyo en Dios” (Llama 1,12).

Isso talvez se verifique quanto à simbólica do matrimônio, tão expoente no Cântico57, mas que na Subida (cf. I,2,4; II,12,11; III,3,5; 13,2.5) serve a um propósito bem mais modesto: não visa expressar a afamada e grandiosa união transformadora em Deus, senão motivar a alma a que persevere em seu caminho de desnudamento. Há de empolgante nessa hipótese o fato de conciliar os dados terminológicos da Tabela 258 com uma série de atributos que comportam um arrazoamento mínimo sobre a interioridade na Subida, de que falaremos no próximo capítulo. Acrescente-se que um resultado assim estimado atua na consolidação de outra hipótese: João da Cruz incrementa a tratativa da interioridade, não apenas no que diz respeito à tradição mística, como no tocante a ele mesmo. Aprimoraremos o teor dessa hipótese nas seções do capítulo seguinte, concomitantemente à síntese das considerações que abalizam nossa percepção de que há, em João da Cruz, uma concepção própria de interioridade.

57 João da Cruz diz que o matrimônio espiritual é um alto estado de perfeição no qual a alma não consegue estar

apenas limpa e purificada por ter se despojado de todas as imperfeições do velho homem, pois também consegue “terrible fortaleza, por razón de el estrecho y fuerte nudo que por medio de esta unión entre Dios y el alma se da” (Cántico B,20,1; cf. 12,8; 26,4; 27,28; 40,5).

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