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Cansei de ouvir abobrinhas vou consultar escarolas prefiro escutar salsinhas pedir consolo às papoulas e às carambolas

Itamar Assumpção

Quando se leem Til e "O Noivado em Sto. Domingo"1, saltam aos olhos as semelhanças entre um texto e outro. Ainda que publicados com um intervalo de cerca de 60 anos (1872 e 1811, respectivamente), escritos por autores a princípio em nada semelhantes, integrando linhas formativas díspares, pertencentes a gêneros literários diversos, os pontos em comum entre uma obra e outra persistem. A justificar isso há duas ordens principais de fatores: uma ordem interna, na qual a novela e o romance revelam uma ampla gama de correspondências diretas, a começar pela configuração dos personagens, passando pela economia do enredo até chegar à estrutura dos textos propriamente: nessa dimensão, Til e "O Noivado", pode-se dizer sem medo de errar, são variações sobre um mesmo tema (mais especificamente, variações sobre uma mesma maneira de abordar um mesmo tema), e os

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Nas duas traduções para o português de que disponho, o título da novela ficou "Noivado em São Domingos" e "O Noivado em São Domingos". A ilha em questão, de fato, chama-se (também) São Domingos, mas, em alemão, a denominação mais comum é Hispaniola. A designação Santo Domingo pode referir-se, no entanto, à ilha como um todo (o que é mais raro), à colônia espanhola localizada ali e à capital da hoje República Dominicana, tudo isso em alemão inclusive. A colônia francesa existente na ilha chamava-se Saint Domingue (ou Saint-Domingue). A narrativa diz que os fatos desenrolam-se na "parte francesa da ilha de Sto. Domingo". No ano de 1803, data do enredo, a ilha era toda controlada oficialmente pelos franceses e, porém, na prática, controlada pelos escravos libertos: não mais era nem colônia da França nem da Espanha, e porém ainda não era um país independente. A designação usada por Kleist deixa entrever o cenário de crise (indefinição) retratado na novela, algo que a tradução do nome da ilha para São Domingos apagaria. Por isso, optou-se aqui por traduzir o título da obra como "O Noivado em Sto. Domingo", sem alterar tampouco a forma abreviada de "santo".

elementos de uma obra vão se repetir na outra; e há também uma ordem externa de fatores, em que o contexto sócio-histórico da produção dos textos, a configuração do olhar que se lança sobre um material quase idêntico (nos dois casos, o escravismo moderno) e o perfil dos dois escritores explicam por que essas obras guardam, além das correspondências diretas, correspondências invertidas (um tipo específico de diferença): nessa dimensão, a novela kleistiana e o romance alencariano desfilam uma série de elementos espelhados, que trocam de sinal ao transitar de uma ao outro. Essas duas ordens não pulsam isoladas, mantendo entre si relações de parentesco, entrecruzamento e contaminação: os elementos internos, a princípio correspondentes, também dão causa a inversões, e os elementos externos, a princípio espelhados, revelarão semelhanças diretas.

Conforme se percebe, ainda que de literatura comparada, esta análise não tratará da identificação de eventuais influências, um tema caro à crítica literária nacional. Nos estudos dedicados à produção alencariana, são encontradiços os que procuram nomear as fontes europeias do escritor brasileiro e a forma como este valeu-se daquelas. Destacam-se, entre as tais fontes, escritores franceses (Chateubriand, Bernardin de Saint-Pierre, Balzac, com ênfase no primeiro) e escritores de língua inglesa (principalmente Walter Scott e James Fenimore Cooper). Não há notícia de uma influência direta exercida por escritores de língua alemã sobre o autor de Til. No entanto, a influência não se descarta: pode ter se dado de forma direta e ainda não desvelada ou pode ter se dado de forma indireta (pela via de escritores europeus e pela via de escritores brasileiros). Como se disse, porém, esse não é um tema deste estudo. Aqui importa que o paralelo entre o romance de Alencar e a novela de Kleist impõe-se por força das obras, que figurarão em pé de igualdade. Ainda que separadas pelo tempo, pelo espaço, pelo meio em que nasceram e pelo gênero a que pertencem, Til e "O Noivado" demandam a comparação.

O Brasil (visto do Brasil) e o Haiti (visto da Prússia). Kleist e Alencar

No capítulo anterior, gastou-se um bom montante de páginas e energia a desfiar as razões pelas quais a escravidão e a servidão modernas assemelham-se e não se assemelham. Nada há que acrescentar, a não ser talvez isto: enquanto o tema da produção capitalista feita com base em mão de obra escrava é quase uma obsessão nacional, resistindo a ser esclarecido, regressando tal assombração a cada ciclo lunar e invadindo diversas áreas da produção intelectual do país (com destaque para a análise literária, o primeiro campo a levantar a lebre de forma, na medida do possível, coerente), o tema da servidão feita instrumento da acumulação de capital, ainda que objeto de ampla literatura historiográfica na Alemanha (o "amplo" precisaria ser relativizado, já que a produção intelectual alemã não se compara, em volume, profundidade, abrangência, rigor etc., à tíbia produção brasileira), possui pouca penetração para além dos espaços ocupados pelos especialistas no assunto. Não há notícia da presença do tema em empreitadas de crítica literária. Mesmo os germanistas afeitos aos estudos materialista-históricos ignoram-no. As análises destes, em geral, centram-se na identificação das remissões de Kleist a sua concretude material imediata, nunca, porém, à conjugação do capital da mão de obra livre com o trabalho da mão de obra compulsória. Um exemplo: a novela "Michael Kohlhaas", a mais "histórica" das novelas kleistianas, dá ensejo até mesmo a considerações sobre a persistência de estruturas feudais na Prússia do início do século 19, mas as análises não contemplam a especificidade reveladora identificada acima e, em geral, conferem ao servo, quando este chega a ser mencionado, o estatuto de um objeto em ocaso, pois são da época de Kleist algumas das medidas adotadas pelo governo prussiano com vistas a abolir oficialmente o instituto. No caso do "Noivado", os estudos de cunho materialista tratam fundamentalmente do choque entre escravistas brancos e escravos negros, das incongruências da França pós-revolucionária, do potencial destruidor da modernidade.

Sendo assim, o enfoque adotado nesta tese, é preciso que se diga, força a mão porque discrepa (conscientemente) da tradição crítica kleistiana. Por sua própria conta e risco.

O fundo material já identificado condicionará a forma como Alencar e Kleist verão o Brasil e o Haiti, ao mesmo tempo em que o olhar dos dois escritores determinará como aquela matéria histórico-social subirá à tona. No caso do escritor alemão, tratar-se-á de olhar para a (ex-)colônia francesa da América Central desde o massudo substrato da Kultur e do Idealismo, ou, em outros termos, desde um substrato do imperativo da identidade. No caso do escritor brasileiro, desde o etéreo pilar de um país em (eterna) formação, ou desde os vapores da impossibilidade identitária. Paradoxalmente, Kleist, postado a milhares de quilômetros de seu assunto, manipulará com familiaridade (uma familiaridade estranha, não há dúvida) a matéria narrada, ao passo que Alencar, vizinho de parede do universo que retrata, sofrerá com o constante estranhamento frente à matéria que lhe escapa familiarmente por entre os dedos.

Nobert Elias, em Über den Prozeß der Zivilisation (traduzido no Brasil como O

Processo Civilizador), traça com argúcia as diferenças existentes entre, de um lado, o conceito

fundamental para britânicos e franceses de "civilização" e, de outro, o conceito para alemães fundamental de "cultura". Diz o pensador que, para estes últimos, a ideia de "civilização", ainda que útil, possui um caráter secundário, suplantada que é pela de "cultura"2. "Civilização" diz respeito a uma ampla gama de manifestações humanas, englobando de fatores políticos,

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"Aber 'Zivilisation' bedeutet verschiedenen Nationen des Abendlandes nicht das gleiche. Vor allem zwischen dem englischen und französischen Gebrauch dieses Wortes auf der einen, dem deutschen Gebrauch auf der anderen Seite besteht ein großer Unterschied: Dort faßt der Begriff den Stolz auf die Bedeutung der eigenen Nation auf den Fortschritt des Abendlandes und der Menschheit in einem Ausdruck zusammen. Hier, im deutschen Sprachgebrauch, bedeutet 'Zivilisation' wohl etwas ganz Nützliches, aber doch nur einen Wert zweiten Ranges, nämlich etwas, das nur die Außenseite des Menschen, nur die Oberfläche des menschlichen Daseins umfaßt. Und das Wort, durch das man im Deutschen sich selbst interpretiert, durch das man den Stolz auf die eigene Leistung und das eigene Wesen in erster Linie zum Ausdruck bringt, heißt 'Kultur'." Norbert Elias, Über

den Prozeß der Zivilisation. I, p. 2. "Mas 'civilização' não significa o mesmo para as diferentes nações do

Ocidente. Principalmente entre, de um lado, o uso que franceses e ingleses fazem da palavra e, de outro lado, o uso que os alemães fazem dela, existe uma grande diferença: lá o conceito sintetiza em um único termo o orgulho frente à relevância da própria nação no progresso do Ocidente e da humanidade. Aqui, no uso que faz da palavra a língua alemã, 'civilização' significa certamente algo bastante útil, mas ainda assim algo com valor secundário, a saber, algo que diz respeito apenas à porção externa do ser humano, à superfície do ente humano. E a palavra por meio da qual o sujeito, em alemão, define a si mesmo, por meio da qual preferencialmente se expõe o orgulho a respeito das suas conquistas e do próprio caráter chama-se 'cultura'."

econômicos e sociais a fatores culturais, religiosos, artísticos e intelectuais – "cultura" abarca apenas estes últimos3; aquela designa um processo – esta, um estado4; aquela agrega – esta separa5, segundo Elias. Por "cultura", no sentido atribuído ao termo por este pensador nascido além do Elba, depreende-se, tudo indica, um esforço identitário (exagerado). Se a "civilização" é um conceito capaz de agregar diferentes subjetividades sob o mesmo guarda- chuva de uma humanidade vária e em constante transformação, a Kultur riscará as linhas divisórias rígidas capazes de determinar o que dela faz parte e o que dela precisa ser excluído. Com a dimensão coletiva do esforço identitário alemão6, cujo ponto de fuga é a formação do "povo", de uma subjetividade geográfica e cronologicamente determinada, dialoga uma dimensão individual, cujo ponto de fuga é a formação do "sujeito", da Subjetividade, assim, com maiúscula, e nada mais. Nesse quesito, igualmente, os alemães trilharão um caminho peculiar (um Sonderweg7). Quando começa a consolidar-se na Europa Ocidental a individualidade burguesa, que se manifestará em sua plenitude com o Romantismo, a cultura alemã logo dá azo a um "subjetivismo exacerbado, que não sem motivos é chamado de 'desvario agudo da burguesia'"8. Hauser refere-se nesse trecho ao movimento do Sturm und

Drang, que, apesar de pré-romantico, conforme costuma ser classificado, já se pauta pelo

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"Der deutsche Begriff 'Kultur' bezieht sich im Kern auf geistige, künstlerische, religiöse Fakten, und er hat eine starke Tendenz, zwischen Fakten dieser Art auf der einen Seite, und den politischen, den wirtschaftlichen und gesellschaftlichen Fakten auf der anderen, eine starke Scheidewand zu ziehen." Elias, op. cit., pp. 2-3. "O conceito alemão de 'cultura' refere-se, basicamente, a fatores espirituais [intelectuais], artísticos, religiosos, e ele possui uma forte tendência a erguer uma barreira clara entre, de um lado, os fatores desse tipo e, de outro, os econômicos e sociais."

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"'Zivilisation' bezeichnet einen Prozeß oder mindestens das Resultat eines Prozesses. Es bezieht sich auf etwas, das ständig in Bewegung ist, das ständig 'vorwärts' geht. Der deutsche Begriff 'Kultur', wie er gegenwärtig gebraucht wird, hat eine andere Bewegungsrichtung: er bezieht sich auf Produkte des Menschen, die da sind, wie 'Blüten auf den Feldern' [Spengler], auf Kunstwerke, Bücher, religiöse oder philosophische Systeme, in denen die Eigenart eines Volkes zum Ausdruck kommt." Elias, op. cit., pp. 3-4. "'Civilização' designa um processo ou ao menos o resultado de um processo. Diz respeito a algo que está sempre em movimento, que caminha sempre 'para frente'. O conceito alemão de 'cultura', como usado atualmente, possui uma outra dinâmica: diz respeito a produtos da humanidade que se fazem presentes como 'flores no campo' [Spengler], diz respeito a obras de arte, livros, sistemas religiosos ou filosóficos nos quais se manifesta o traço típico de um povo."

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"Der Begriff 'Kultur' grenzt ab." Elias, op. cit., p. 4. "O conceito de 'cultura' traça limites."

6 Usa-se aqui o termo "alemão" porque é ele o utilizado por Elias, e por Hauser (o autor a ser citado logo em

seguida). Mas seria preferível, pelos motivos expostos no capítulo anterior, dizer "prussiano".

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Esse é o termo usado por alguns historiadores para designar o caráter ímpar da história prussiana no contexto da Europa Ocidental.

8 "Dieser überspitzte Subjektivismus, der nicht grundlos als 'akute Bürgertollheit' bezeichnet worden ist [...]".

desengate entre o espírito e a matéria característico da filosofia idealista que dentro em breve se imporia nos meios intelectuais germânicos. Segundo o historiador, que como Elias nasceu no Leste Europeu, essa é a corrente do pensamento alemão caracterizada por abrir mão completamente da realidade objetiva9. Hauser identifica aí um "irracionalismo" de viés específico, um que não se manifesta por meio de algum emocionalismo, mas que resulta de uma visão de mundo convencida de seu caráter infinito e absoluto10. Em outros termos, a visão de mundo de um sujeito capaz de identificar-se totalmente consigo mesmo, ou um sujeito para quem o mundo é ele próprio (o ser da palavra identifica-se, sem resto, com a alteridade)11.

Kleist acusará o peso dessa herança, da forma mais consequente, em sua obra, mas da forma mais explícita, talvez, na chamada Kant-Krise. Este tópico, hoje em dia menos popular, já pareceu ser uma estação obrigatória da crítica kleistiana. Todo o caso decorre de algumas cartas do escritor, a mais importante aquela enviada, em 22 de março de 1801, a sua então noiva, Wilhelmine von Zenge, na qual relata o enorme abalo sofrido quando de seu contato com a filosofia kantiana. O trecho principal é este: "Se todos os seres humanos tivessem, no

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"Die deutsche idelistische Philosophie ging zwar von der antimetaphysischen, in der Aufklärung wurzelnden Erkenntnistheorie Kants aus, entwickelte aber den Subjektivismus dieser Lehre zu einem absoluten Verzicht auf die objetkitive Wirklichkeit und gelangte schileßlich zu dem entschiedenen Gegensatz des Realismus der Aufklärung." Hauser, op. cit., 630. "A filosofia idealista alemã partiu, é fato, da teoria do conhecimento kantiana, antimetafísica e com raízes no Iluminismo, mas transformou o subjetivismo dessa teoria na renúncia absoluta à realidade objetiva e tornou-se, ao fim e ao cabo, a completa oposição ao realismo iluminista."

10 "Der Irrationalismus war wohl eine gesamteuropäische Erscheinung, er äußerte sich aber im wesentlichen

überall als eine Form des Emotionalismus und erhielt erst in Deutschland das besondere Gepräge des Idealismus und Spiritualismus; hier wurde er erst zu einer die Empirie verachtenden, auf das Zeitlose und Unendliche, das Ewige und Unbedingte gerichteten, metaphysischen Weltanschauung." Hauser, op. cit., p. 629-630. "O irracionalismo foi certamente um fenômeno pertinente à Europa inteira, contudo se manifestou por todos os cantos, essencialmente, como uma forma de emocionalismo e só na Alemanha adquiriu o caráter peculiar do Idealismo e do Espiritualismo; aqui se tornou pela primeira vez uma visão de mundo metafísica indiferente à empiria, uma visão de mundo voltada para o atemporal e o infinito, o eterno e o incondicional."

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Elias e Hauser apresentam justificativas mormente sociológicas para as pecularidades germânicas que identificam. Nos dois casos (da Kultur e do Idealismo), segundo os autores, a burguesia alemã reagia a seu isolamento (em relação aos poderes político e econômico) imposto por uma aristocracia demasiadamente fortalecida no processo de modernização peculiar dos territórios germânicos. Como resultado desse distanciamento em relação à vida prática, desviou-se para a desrazão da Kultur ou para o irrealismo subjetivista. Os dois autores, que partem de preceitos opostos e, tendo atravessado esse núcleo teutônico "problemático", percorrem caminhos também opostos (Elias descreverá o poder civilizatório do capital; Hauser desembocará na crise do capital), tomam como algo superado (ou a ser em breve superado) o "caso alemão". O problema, no entanto, persiste (ou, para ser mais exato, é um problema caracterizado justamente por ser alvo de soluções que implicam a reposição dele, problema), e a explicação sociológica, ainda que correta, mostra-se insuficiente.

lugar dos olhos, lentes verdes, então seriam obrigados a sentenciar que os objetos, vistos através deles, são verdes – e nunca seriam capazes de decidir se seu olho lhes mostra as coisas como as coisas são ou se, às coisas, não se acrescenta algo que pertence, não a elas, mas ao olho. O mesmo acontece com a mente [Verstande]. Não podemos nos decidir se o que chamamos de verdade é a verdade verdadeira ou se isso apenas parece ser assim para nós"12. Kleist diz logo a seguir que, frente a essa indeterminação, a maior e única meta sua frustrou- se13. O autor, nos anos vindouros, não mais tocaria no assunto e é questionável que uma tal experiência filosófica tenha tido o peso determinante que alguns pretendem atribuir-lhe. No entanto, fica claro haver um sofrimento legítimo envolvido no contato com a substancialidade inacessível da coisa-em-si kantiana (Kleist tampouco especificou o ponto exato da filosofia kantiana que tanto o incomodou; infere-se que sejam as teses sobre das Ding an sich, que ele, aliás, não teria lido corretamente). O escritor exaspera-se frente à, na sua interpretação, impossibilidade de apreensão total do mundo pelo sujeito, o que implicaria a impossibilidade do conhecimento, do acesso à "verdade verdadeira". Tendo compreendido Kant corretamente ou não, tendo mesmo lido Kant ou não (há dúvidas sobre se o autor teria tido acesso direto às obras do filósofo da Prússia Oriental ou somente a obras de divulgadores da doutrina kantiana), a atribulação manifestada pelo escritor transporta à camada do discurso o gozo envolvido no imperativo identitário descrito acima e cujo correspondente material é, como se viu, a servidão moderna, abolida formalmente pelo governo prussiano no início do século 19, mas que perdura na qualidade de dinâmica sócio-histórica, marcando profundamente, esta a tese que se defende aqui, a produção intelectual de Kleist14.

12 "Wenn alle Menschen statt der Augen grüne Gläser hätten, so würden sie urteilen müssen, die Gegenstände,

welche sie dadurch erblicken, sind grün – und nie würden sie entscheiden können, ob ihr Auge ihnen die Dinge zeigt, wie sie sind, oder ob es nicht etwas zu ihnen hinzutut, was nicht ihnen, sondern dem Auge gehört. So ist es mit dem Verstande. Wir können nicht entscheiden, ob das, was wir Wahrheit nennen, wahrhaft Wahrheit ist, oder ob es uns nur so scheint." Heinrich von Kleist, Sämtliche Werke und Briefe, p. 634; itálico no original.

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"Mein einziges, mein höchstes Ziel ist gesunken [...]" Sembdner, op. cit., p. 634.

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A cultura de expressão alemã, ao mesmo tempo tributária da produção vinda do centro (nesse começo de século 19 principalmente) e desviante em relação àquela, porque dotada de elementos estranhos a essa sua fonte de inspiração para a qual, a partir de dado momento, também serve de inspiração, não se reduz à dinâmica sócio-

É desde esse lugar que o autor discorrerá sobre o material a compor o núcleo narrativo de "O Noivado em Sto. Domingo". O enredo da novela transcorre durante um dia e meio do ano de 1803, quando as forças dos negros expulsavam de Saint Domingue as tropas enviadas por Napoleão a fim de reafirmar o controle da metrópole sobre a colônia francesa. Para se compreender como a situação chegou a esse ponto, recorra-se a um breve histórico da região. A ilha atualmente dividida entre o Haiti e a República Dominicana recebeu o nome de Hispaniola ao ser pisada por Colombo, em 1493, na excursão marítima responsável por detonar a inserção da América no mercado mundial. A colônia espanhola instalada ali dedicou-se principalmente à extração de minerais preciosos (ouro) e, porque a porção ocidental de Hispaniola carecesse de tais atrativos, limitou-se quase que somente a sua porção oriental (hoje, grosso modo, República Dominicana), relegando a um segundo plano a outra. Ainda assim, não houve espaço para a sobrevivência da população indígena, exterminada quase por completo, nas décadas seguintes, por ações de genocídio propriamente dito, pelas campanhas de escravização e o consequente excesso de trabalho e pelas doenças trazidas do mundo civilizado15. A preterida parte oeste de Hispaniola viu-se ocupada, principalmente nos anos de 1600, por flibusteiros e bucaneiros de origem francesa, atuantes na área e que

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