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DESTINO ENQUANTO QUESTÃO CLÍNICA: ANÁLISE DO

No documento Destino e daímon na psicanálise (páginas 74-106)

PARTE I ‒ VERSÕES DO DESTINO EM FREUD

CAPÍTULO 2 DESTINO ENQUANTO QUESTÃO CLÍNICA: ANÁLISE DO

“καὶ μὴν μέγας γ᾽ὀφθαλμὸς οἱ πατρὸς τάφοι. [A tumba do pai, olho enorme a guiar-te.]” (Sófocles, Édipo Rei, v. 987)

Realizaremos a seguir o comentário e a análise do primeiro texto psicanalítico que aborda diretamente a questão do Destino:1 “A significação do pai no destino do indivíduo”,2 de Carl Gustav Jung (1909). Trata-se de um texto inaugural no qual o Destino se estabelece como problema clínico, isto é, como um campo de investigação para psicanálise. Não bastasse isso, trata-se também de um artigo que Freud tinha em alta consideração. Prova disso é que, mesmo após o rompimento dos dois, Freud continuou a citá-lo em diversas ocasiões e a reconhecer seu valor. Nosso objetivo neste capítulo se restringe a analisá-lo como texto de referência para Freud, com o qual ele está em constante diálogo ao abordar o tema do Destino. Não temos a intenção, nem a capacidade, de pensá-lo no interior da psicologia analítica.3

A importância do texto está no fato de que nele se encontra o referente clínico daquilo que Freud (1920) veio a chamar de compulsão de destino (Schicksalszwang) ou de compulsão demoníaca (dämonischen Zwanges), presente na apresentação e na análise de cinco casos realizadas por Jung. Nosso trabalho central será retomar cada um dos casos e pensá-los à luz das elaborações junguianas circunscritas no ensaio. Ao final, nos deteremos na bela epígrafe do texto.

1Segundo as consultas que fizemos aos dicionários e vocabulários de psicanálise e aos índices onomásticos das

obras dos principais autores-psicanalistas.

2Bedeutung, no título, pode ser traduzido por significação ou importância.

3Por isso, trabalhamos a edição de 1909 do texto de Jung, tal como Freud o recebeu e leu. Posteriormente, em

dois momentos (em 1926 e 1948), Jung fará consideráveis alterações no ensaio. Utilizamos a tradução norte- americana do artigo de Jung, publicada pela editora da Universidade de Princeton, dado que a versão brasileira, da editora Vozes, não discrimina as modificações posteriores. Nas citações, usamos a tradução brasileira de 1990 quando disponível; quando não, traduzimos livremente a partir da versão em inglês, de 1970.

2. 1. O texto-carta

“(...) espero levar-lhe várias novidades antigas.” Jung, em carta para Freud

A ocasião da primeira publicação do artigo traz algumas informações relevantes para sua compreensão. O texto saiu em 1909 no primeiro volume do Jahrbuch für

psychoanalytische und psychopathologische Forschungen (Anuário de investigações psicanalíticas e psicopatológicas), primeira revista oficial do movimento psicanalítico,

dirigida por Freud e Bleuler, tendo Jung como redator-chefe. A atmosfera interna do movimento psicanalítico, vista pelos olhos de Freud, era de empolgação, e a inauguração da revista foi sentida como uma conquista de independência.

Enfim, agora que podemos viver, trabalhar, publicar nossas coisas e desfrutar de certa camaradagem, a vida não é de todo má, nem gostaria eu que ela tão cedo mudasse. O dia do reconhecimento, quando vier, será para o presente o que a mágica hedionda do Inferno é para o tédio sagrado do Paraíso. (Ou melhor, é claro, o inverso.) (Freud, 1908 in Mcguire, 1993, p. 204)

O dia do reconhecimento seria como o tédio sagrado do Paraíso, ao passo que o ano de 1908 se assemelhava à mágica hedionda do Inferno. A primeira revista do movimento psicanalítico, em vias de lançamento, concedia à psicanálise uma liberdade de publicação que antes nunca tivera. Não era mais necessário explicar-se aos editores das nobres revistas médicas “Finalmente o conteúdo há de falar por nós” (Freud, 1908 in Mcguire, 1993, p. 211). Recorrendo ao famoso verso de Paraíso perdido, de John Milton (2015), Freud imaginou que, enfim, alcançavam uma posição propícia ao psicanalista, pois é “Melhor reinar no inferno que no Céu servir [Better to reign in Hell, than serve in Heaven]” (p. 55).4 Esse momento de entusiasmo da psicanálise, que durou tão pouco, foi marcado por uma intensa troca de correspondências entre Freud e Jung, em meio à qual encontramos o contexto de produção do artigo.

4Não é esse um dos sentidos da epígrafe da Interpretação dos sonhos, retirada da Eneida, de Virgílio “Flectere

Tendo passado certo tempo sem responder às cartas de Freud, Jung (1908 in Mcguire, 1993) rompeu o silêncio com novidades “Abandonei hoje todas as obrigações, pois minha esposa está prestes a dar à luz; encontro enfim um tempo para lhe escrever” (p. 205). E acrescentou “ ena é que não mais sejamos camponeses, pois se assim fosse me caberia exclamar: Agora que tenho um filho posso partir em paz.” (Jung, 1908 in Mcguire, 1993, p. 210). Nessa mesma carta, Jung (1908 in Mcguire, 1993) escreveu que se via em um momento crucial “Sinto que a conjunção do nascimento de um filho e a racionalização do complexo de pai é uma encruzilhada extremamente importante em minha vida, inclusive porque agora também me desenredo do relacionamento sócio-parental” (p. 214). Dessa forma, Jung assim reconhecia a concomitância de três acontecimentos em seu presente: nascia seu filho homem (Franz Jung-Merker, nascido em 28 de novembro de 1908), desenredava-se de uma relação pai-filho (que até então mantinha com Bleuler), e inclinava-se a pensar sobre o complexo de pai. Nessa transição de pai para filho, Jung escrevia sobre a importância do pai no Destino do indivíduo.

A resposta de Freud é magnífica. Ela oscila entre o respeitoso trato com o querido amigo e futuro herdeiro5 e pequenas interpretações. “Um voto à parte para seu filhinho, que se aventura agora a trabalhos psíquicos dos quais ainda nem suspeitamos” (Freud, 1908 in Mcguire, 1993, pp. 216-17). Ele prosseguiu: “Fiquei muito contente em saber que o senhor se dispôs a enfrentar o complexo de pai” (idem, p. 208). Freud reconheceu a encruzilhada em que se encontrava seu amigo “ rescindir de um mestre, como verá, é, com efeito, uma felicidade rara. A conjunção – liberação social, nascimento de um filho, ensaio sobre o complexo do pai – sugere-me que o senhor se encontra num ponto-chave de sua vida” (Freud, 1908 in Mcguire, 1993, p. 211). Eis o lado interpretativo da carta:

Nesse ínterim, assim o espero, o destino mais uma vez o fez pai e talvez tenha surgido para o senhor a estrela da qual falou em nosso longo passeio. A transferência das próprias esperanças para um filho é, decerto, um excelente meio de alguém apaziguar seus complexos não resolvidos, embora para o senhor ainda seja cedo. (Freud, 1908 in Mcguire, 1993, p. 209)

Freud, 1900/2006, p. 2). Tal como o desejo recalcado, a psicanálise precisa mover o mundo subterrâneo para ser ouvida.

5Ao designar o cristão Jung como sucessor e príncipe herdeiro da psicanálise, Freud tinha uma clara intenção:

fazer com que a psicanálise não se restringisse ao círculo judaico. É importante notar essa insistência – cada vez mais ampla – na obra de Freud. Em A questão da análise leiga (1926), boa parte do seu esforço será fazer com que a psicanálise não se restringisse ao círculo médico; e por fim, podemos conjecturar, a partir de Moisés e o monoteísmo (1939), que seu esforço final foi fazer com que a psicanálise não se restringisse ao círculo dos psicanalistas. Freud sempre se opôs ao monopólio da psicanálise.

Esse é outro sentido da frase evocada por Jung, sobre como ter um filho permite que um homem parta em paz: agora que ele transmitiu seus ideais para um filho, pode finalmente deixar de ser um. O que Freud fez aqui foi simplesmente juntar dois elementos: (i) tornar-se pai de um filho, e (ii) deixar de ser o filho de um pai; operação psíquica que realizou a delegação de sua posição de filho.

Freud acrescentou que é uma boa maneira de apaziguar os complexos, ou seja, uma maneira distinta da analítica.6 “Sua lamentação de não ser capaz de representar o pai-herói (‘Meu pai gerou a mim e morreu’) soa-me, devo dizer, muito prematura. Por muitos e muitos anos a criança há de achá-lo indispensável como pai, num sentido a princípio positivo e afinal negativo!” (Freud, 1908 in Mcguire, 1993, p. 211). Se tivesse juntado à sua interpretação o terceiro elemento – a investigação sobre o complexo do pai, que tomaria a forma de um ensaio, publicado em 1909 –, talvez pudesse ter desconfiado que o apaziguamento do complexo não resolvido, a cena de abandono da paternidade, iria se repetir com ele.

Na mesma carta em que anunciou o nascimento de seu filho, Jung enviou o artigo “A importância do pai no destino do indivíduo” “Mesmo que não seja nenhuma maravilha, meu ensaio sobre o complexo do pai, acredito, é um trabalho decente. Espero que lhe agrade” (Jung, 1908 in Mcguire, 1993, p. 210). Como agradou! Freud rebatizou o título do artigo, recomendou a sua leitura para os próximos e o levou para discussões “Em minhas aulas na Universidade, que agora reorganizo em forma de seminário, marquei para o sábado que vem uma discussão crítica de seu trabalho ‘Father Destiny’” (Freud, 1909 in Mcguire, 1993, p. 287). Father Destiny será a maneira com que Freud passou a se referir, abreviada e carinhosamente, ao ensaio de Jung. Salvo engano, Freud foi o autor que mais destacou esse texto de Jung ‒ mais até do que o próprio Jung ‒, que posteriormente realizou uma série de ressalvas ao argumento exposto.

É bem conhecido o motivo explícito da ruptura entre os dois. As alterações propostas por Jung à teoria psicanalítica – tendo como gota d’água a dessexualização da libido – não foram acolhidas por Freud.

6 Em Introdução ao narcisismo (1914), Freud irá desenvolver a análise de que a criança é o depositário do

narcisismo renunciado dos pais. “Ela deve concretizar os sonhos não realizados de seus pais” (Freud, 1914a/2010, p. 37). Essa herança fica como que Destino a ser realizado pela criança. Voltaremos a essa análise, no item Três formas de repetição.

O senhor reduziu uma boa quantidade de resistência com as suas modificações, mas não o aconselharia a contar isso como crédito, porque, como sabe, quanto mais a gente se afasta do que é novo em ΨA [psicanálise], mais certeza se tem do aplauso e menos resistência se encontra. (Freud, 1912 in Mcguire, 1993, p. 523)

Freud leu as alterações propostas por Jung não como mutações próprias da teoria psicanalítica, mas como uma maneira de se evitar as resistências causadas por ela ‒ mais ainda, as próprias modificações já eram resistências à psicanálise. Sintetizando em uma frase suas críticas à Jung, Freud (Freud, 1909 in Mcguire, 1993) citou Goethe “Estás então aliado ao Diabo e ainda queres te poupar ao fogo?” (p. 236). Há um preço para aqueles que escolhem reinar no inferno ou mover o Aqueronte: não se poupar ao fogo.

Menos conhecido, contudo, é o motivo implícito da ruptura, apontado pelo próprio Freud (1909 in Mcguire, 1993):

É estranho que, na mesma noite em que formalmente o adotei como primogênito e o sagrei – in partibus infidelium [nas terras dos infiéis] – sucessor e príncipe herdeiro, o senhor me tenha despido da dignidade paterna, ato que lhe parece ter dado o mesmo prazer que eu, pelo contrário, extraí da investidura de sua pessoa. (p. 243)

Na mesma noite em que fora designado como príncipe herdeiro da psicanálise, Jung despiu Freud da dignidade paterna, retirando-se a si mesmo da posição de filho. No momento em que recebia a psicanálise como filha, escrevia a Freud que já não era mais seu filho. A cena de desenredar-se do pai, após a aquisição de um filho, se repetiria com o próprio Freud. Quem está atrelado ao daímon da psicanálise não pode poupar-se ao fogo do atravessamento da repetição de seus complexos.

O artigo de Jung agradou muito a Freud, mas a repetição que o artigo aponta (a reedição da posição em relação com pai, como veremos) o agrada muito pouco. O texto de Jung tinha como destino o próprio Freud. Parafraseando Lacan (1957), o texto-carta chegou ao seu Destino.

2. 2. As linhas iniciais

O artigo de Jung começa retomando uma descrição da metapsicologia freudiana sobre a mudança na economia libidinal evidenciada na análise de neuróticos, segundo a qual o fracasso no investimento objetal (sentido como decepção, desilusão ou frustração) opera um retorno aos investimentos incestuosos. Diante de um obstáculo grande demais, de uma desilusão ameaçadora ou de uma decisão importante, a energia acumulada para resolver uma tarefa fracassada tende a “flui[r] de volta e torna a encher os antigos leitos, os sistemas obsoletos do passado” (Jung, 1909/1990, p. 295). al tendência, comum em todo psiquismo, é mais evidente no neurótico. O indivíduo dito comum, por exemplo, ao sofrer uma desilusão amorosa pode voltar atrás e buscar uma amizade sentimental, um refúgio na masturbação ou uma falsa religiosidade. Já o neurótico intensifica o retorno e “volta mais ainda para trás e se apega a relacionamentos infantis que ele nunca abandonou” (Jung, 1909/1990, p. 295), reinvestindo no relacionamento com o pai e a mãe, sobretudo, a relação com o pai. Isso faz com que o neurótico frente ao infortúnio busque o conforto identitário da constelação familiar da primeira infância, por pior que tenha sido.7

Jung afirmou que toda análise bem realizada conduz, com maior ou menor clareza, a uma regressão ao núcleo familiar. Ele também apontou que uma peculiaridade dos trabalhos de Freud é o significado especial que a relação com o pai possui nesse percurso. Para pensar a importância do pai na moldagem da alma infantil, propôs retomar o “campo do estudo da família” (Jung, 1909/1990, p. 295-296) “As pesquisas mais recente mostram a influência predominante do caráter do pai numa família, muitas vezes por centenas de anos. Parece que as mães não têm esse papel.” (Jung, 1909/1990, p. 296).

Baseando-se em um estudo realizado por sua aluna E. Fürst chamado Investigações

estatísticas sobre a associação de palavras e sobre o tipo de reação na constelação familiar entre pessoas sem ensino, de 1907, Jung (Jung, 1909/1990) destacou que “a atitude

psicológica dos parentes difere bem pouco” (p. 296). al pesquisa se utilizou do teste de associação de palavras para comparar as respostas, visando quantificar a semelhança do tipo

7Um dos temas mais característicos da tragédia é justamente o reposicionamento subjetivo do herói frente ao

infortúnio. Em Macbeth, por exemplo, Malcolm, vendo o amigo arrasado ao receber a notícia de que perdera toda a família, sugere “Lutai contra o infortúnio como um homem” (Shakespeare, 2009, p. 136). Acrescentou “Força é também senti-lo como um homem” (Shakespeare, 2009, p. 136). or fim, concluiu “Que isso [o infortúnio] seja a pedra / Que afie a vossa espada” (Shakespeare, 2009, p. 136). arefa difícil para o psiquismo tornar o fracasso a pedra que afia a espada, e não o canal que leva ao reinvestimento dos antigos leitos. Para o herói trágico, em oposição ao neurótico, vale os versos de Helena Kolody (1996) “a via bloqueada/instiga o teimoso viajante/a abrir nova estrada” (p. 35).

de reação a partir das associações colhidas no teste. Quanto menor a média do tipo de reação, mais semelhante elas são entre si. Seu resultado é interessante:

a) As mulheres com parentesco diferem muito pouco entre si (3,8). b) Os homens com parentesco diferem um pouco mais entre si (4,1).

No entanto, a configuração se inverte ao retirar a variável do parentesco: c) Os homens sem parentesco diferem menos entre si (5,8).

d) Se comparados com as mulheres sem parentesco (6,1).

O que nos leva a concluir que as mulheres ocupam as posições extremas (se assemelham mais umas às outras quando são parentes e também se diferenciam mais entre si quando não são parentes), ao passo que os homens ocupam posições intermediárias (se diferenciam mais dos parentes, mas, no geral, não se diferenciam tanto entre si).

O que interessa a Jung (1909/1990) nessa pesquisa é o índice da diferença entre pais e filhos (3,1) e entre mães e filhas (3,0): “Com exceção de alguns casos de casais (onde a diferença caiu para 1,4) estes são os menores números” (p. 296). Jung (1909/1990) questionou, no início do seu artigo, a similaridade das respostas “A semelhança do tipo de reação dos descendentes com o dos pais dá o que pensar” (p. 297). Continuou: “ or mais óbvia que seja esta verdade, precisa de explicação” (Jung, 1909/1990, p. 297). No intuito de estranhar algo aparentemente óbvio, Jung retomou uma entrevista apresentada na pesquisa de E. Fürst.

Uma mãe de 45 anos e sua filha de 16 anos apresentaram o índice de diferença na resposta de 0,5 apenas, ou seja, suas associações eram quase idênticas. Neste caso, também apresentaram uma enorme diferença em relação às associações do pai (11,8). Em oposição ao pai grosso, estúpido e beberrão, a mãe apresentava um caráter repleto de predicados morais como resposta às numerosas esperanças e desejos frustrados ao longo da vida, e a filha fazia eco à mãe queixosa. Jung (1909/1990) propôs pensar na posição da jovem moça “(...) a filha de 16 anos nem começou a viver a vida ainda; não é casada, mas reage como sua mãe e como se tivesse passado por infindáveis desilusões. Tinha o comportamento de sua mãe e, nesse sentido, identificava-se com a mãe” (p. 267). Ao que tudo indicava, “a moça deverá superar os obstáculos de seu ambiente familiar; se não o conseguir, sucumbirá ao destino para o qual

seu comportamento a predispõe” (Jung, 1909/1990, p. 297). Começou-se a se esboçar, neste

primeiro momento do artigo, uma aproximação entre a noção de Destino e a de identificação. Jung (1909/1990) chegou a falar de “uma espécie de contágio psíquico, causado, como sabemos, não por verdades lógicas, mas por afetos e suas manifestações corporais” (p. 298). Mas foi além: “sucumbir ao Destino ao qual seu comportamento predispõe” significa

reencontrar essa proximidade excessiva com a mãe e a distância gigantesca em relação ao pai. Em outras palavras, reencontrar a constelação familiar em outros âmbitos.

Há, evidentemente, “destinos, [isto é,] várias possibilidades”, observou Jung (1909/1990, p. 297), de reeditar a esfera familiar. No caso mencionado, há a tendência a repetir a posição assumida: a identificação maciça com mãe ao lado da contraposição ao pai. Mas Jung apontou para outras possibilidades, como tentar encobrir o problema familiar, gerando a absorção do caráter negativo dos pais, que ressurge sob a forma de inibições e conflitos que não se entende (Eu-distônicos). Ou entrar num conflito eterno com o mundo das coisas, reeditando-se para si a mensagem de que não cabe em lugar algum, até que algo o faça notar a contragosto que está repetindo uma situação infantil. Nessas variantes, a constelação familiar insiste em ressurgir de forma inesperada e violenta na situação atual.

Em suma, na primeira parte do artigo, Jung relacionou duas investigações: a) uma observação metapsicológicas de Freud;

b) o resultado da pesquisa feita por sua aluna E. Fürst.

O reinvestimento dos antigos leitos causado pelo fracasso (movimento libidinal destacado por Freud) pode se manifestar como uma similaridade associativa, ao modo de uma identificação maciça (como no caso da pesquisa de E. Fürst), mas há também outros modos do neurótico reinvestir as relações parentais. De tal forma que, ao relacionar as duas investigações, Jung propôs uma terceira: aproximar-se clinicamente dos casos em que há um reinvestimento da constelação familiar. Para nós, vale destacar que a primeira versão do Destino surge como retorno ao romance familiar.

2. 3. Casos clínicos

Jung relata uma sequência de cinco casos, quatro deles retirados de anamneses que ocorreram na policlínica do hospital de Burgholzli e uma análise de uma passagem bíblica. Nenhum dos casos clínicos foi de fato tomado em tratamento por Jung. Suas considerações são feitas a partir de poucos encontros (em geral, apenas um) com os pacientes. Por isso mesmo, suas análises não pretendem passar o limite de breves apontamentos psicanalíticos, que visam apenas apresentar como a reedição da “constelação dos pais estorva a vida dos filhos” (Jung, 1909/1990, p. 298).

Caso 1 – Neurose de climatério8

Uma mulher de 55 anos com aspectos joviais, vestida com esmero, trajando com elegância uma roupa preta, educada, porém um pouco afetada (desejando agradar), procurou a policlínica onde trabalha Jung, queixando-se de depressão, medo noturno, palpitações e contrações nervosas nos braços, junto a terríveis sonhos de angústia. Ela sonha que alguém a persegue e que feras a atacam. Tem sofrido desses sintomas desde que se separou de seu último marido.

Jung investigou sua constelação familiar e seu histórico de relacionamentos. Seu pai era um homem imponente e feliz em seu casamento, pois a mãe o adorava. Tinha duas filhas: a paciente (queridinha do papai) e sua irmã mais velha (queridinha da mamãe). O pai morreu aos 42 anos de ataque cardíaco, quando a paciente tinha cinco anos. Sentiu-se abandonada pelo pai que morreu e pela mãe, que se apegou ainda mais à irmã e passou a tratar a paciente como uma Cinderela. A mãe permaneceu viúva, cultivando religiosamente a memória do pai e ensinando as filhas a fazerem o mesmo.

A paciente nunca se interessou por jovens, pareciam-lhe insossos. Ao contrário, buscava homens maduros. Aos 20 anos de idade, conheceu um cavaleiro majestoso que tinha cerca de 40 anos. Sentiu-se bastante atraída, mas, por uma série de razões, o relacionamento não foi adiante. Com 24 anos, conheceu um viúvo que tinha dois filhos: um homem educado e corpulento, o que lhe dava um aspecto imponente, de 44 anos e “bem parecido ao pai dela” (Jung, 1909/1990, p. 299). Casou-se com ele e passou a adorá-lo profundamente. Juntos sobrevieram uma sequência de infortúnios: os filhos do marido morreram de uma doença

8 Optamos por dar nomes aos casos, bem como descrevê-los ao nosso modo, de maneira parecida – mas não

No documento Destino e daímon na psicanálise (páginas 74-106)

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