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A desumanização: a morte da infância

4 DEVIR-IDADE

4.2 O OUTRO-CRIANÇA: A INFÂNCIA COMO O OUTRO EM O NOSSO

4.2.1 A desumanização: a morte da infância

A história de Halla que perde sua irmã gêmea Sigridur e que começa uma aprendizagem de amadurecimento pode levar a intepretação de que essas personagens são como espelhos, duplos de si mesmo. “Éramos gêmeas. Crianças espelho. Tudo em meu redor se dividiu por metade com a morte.” (MÃE, 2014, p.9). Sigridur, a gêmea morta, pode ser interpretada como a parte de si de Halla que morre com o amadurecimento, a infância perdida. É por isso que a morte de Sigridur prossegue no corpo de Halla como se a irmã fosse uma parte sua:

Ao deitar-me, naquela noite, lentamente senti o formigueiro da terra na pele e o molhado alagando tudo. Comecei a ouvir o ruído em surdina dos passos das ovelhas. Assim o expliquei, assustada. Disseram-me que talvez a criança morta tivesse prosseguido no meu corpo. Prosseguia viva por qualquer forma. E eu acreditei candidamente que, de verdade, a plantaram para que germinasse de novo. Poderia ser que brotasse dali uma árvore para o nosso canto abandonado nos fiordes Poderia ser que desse flor. Que desse fruto. (MÃE, 2014, p.9).

No começo da narrativa de A desumanização, a personagem Halla, ainda criança, acredita que a sua irmã fora plantada, como uma semente que pode germinar a qualquer momento. Mas logo que vai crescendo, ela percebe que Sigridur não germinará. Halla cresce com a dor da morte de sua irmã, fragmentada e duplicada pela morte de sua gêmea. A ausência da irmã a persegue até se tornar adulta, ela é a gêmea viva, a menina com duas almas, e assim também recebe a culpa da morte de Sigridur pela mãe. A narrativa percorre o seu crescimento, a descoberta da vida, do sexo, da alegria e do sofrimento. Nesse percurso a

personagem tenta se livrar do seu outro eu e procura uma identidade própria, diferente da de sua irmã, que, com sua ausência, se torna presente em muitos momentos de sua vida:

As pessoas já chamavam àquele bocado de chão a criança plantada. Diziam assim. A criança plantada. Também parecia uma chacota porque o tempo passava e não germinava nada, não germinava ninguém. Era um plantio ridículo. Uma coisa consolar a cabeça aflita da família. Não servia para tarefa alguma. E perguntavam-me: é verdade que os gêmeos ficam de duas almas. Como se eu estivesse a sentir-me gorda ou pesada, como se tivesse mudança no corpo ou na luz dos olhos que evidenciasse a obrigação de fazer a minha irmã viver. (MÃE, 2014, p.10)

Halla, após a morte da irmã, permanece ancorada a ela. Por serem gêmeas, as pessoas as chamavam de irmãs mortas, “a mais morta e a menos morta”, e Halla se sentia um fantasma. A dor de sua mãe também era mais forte, por encontrar nela a imagem da gêmea morta. Ao incorporar a dor dos outros e o estigma da sua imagem que refletia a imagem da irmã falecida, Halla se sentia parte de Sigridur, como se tivesse perdido metade de si mesma, como se fosse também a própria irmã, como se estivesse metade morta e metade viva:

Só por antecipação eu poderia sentir a terra e a água. Durante um tempo, percebi, a caixa em que a trancaram ia protegê-la, limpa, antes que se misturasse tudo, podre, a desaparecer. Ainda assim, deitava-me com a morte. Chegava a colocar as mãos ao peito como fizeram com a Sigridur, muito hirta, quieta, e imaginava coisas ao invés de adormecer. Imaginar era como morrer. (MÃE, 2014, p.10)

A presença da irmã morta em Halla percorre toda a narrativa, que revela o amadurecimento da personagem e o desvencilhamento de seu outro eu, como se Halla e Sigridur fossem a mesma pessoa e Halla tentasse se despedir da gêmea ao longo do seu crescimento:

Eu sabia bem que aceitar a morte da minha irmã era um egoísmo e contradizia muito a família. A vigília dos dias não permitia que a raiva acabasse. Até certo ponto, isso também me reconfortou. Não saberia aceitar a sua morte. Sentia muita revolta. Estava sempre à espera de um sinal. Igual às verdadeiras histórias de fantasmas, como fantasiava o Einar. Confiava muito que ela teria maneira de me falar. Éramos parte do mesmo todo. Haveria de me falar com palavras bem concretas acerca da tristeza ou da felicidade que devíamos nutrir. As irmãs mortas eram quase iguais, de todo o modo. (MÃE, 2014, p.19)

Nessa perspectiva, à medida que Halla cresce ela vai se despedindo do seu lado infantil, como um gêmeo que morre: um eu gêmeo, o eu da infância. Tem-se a metáfora do duplo como forma de compreender a perda da infância. O significado do duplo pressupõe uma

experiência subjetiva. Uma relação entre o eu e o outro, na qual o outro pode ser também o próprio eu, ou o seu reconhecimento. Para Adilson dos Santos (2009), observando o estudo de Juan Bargalló Carraté, que identifica a presença do tema do duplo na estrutura da literatura ocidental como “presença de contrários”, o duplo seria:

uma metáfora dessa antítese, ou dessa oposição de contrários, em que cada um encontra no outro seu próprio complemento. O desdobramento (a aparição do outro) seria o reconhecimento da própria indigência, do vazio que o ser humano experimenta no fundo de si mesmo e da busca do outro para tentar se preencher. (SANTOS, 2009, p.53).

Mas o duplo também pode ser compreendido como a imagem que o individuo tem de si mesmo, a fronteira entre o que se é e os papéis representados. O duplo é um olhar de fora para si, como se fosse possível sair de si e se contemplar, configurando uma dualidade ao ser humano. Compreendendo a divisão que permeia o humano entre um papel social e um papel concreto, Wolfgang Iser (1997) corrobora a ideia do doppelgänger como um padrão antropológico:

Pero como doppelgänger de sí mismos, los seres humanos son cuando menos mudables, y van desplazándose por entre sus papeles los cuales, a su vez, se suplantan y modifican unos a outros. Los papeles no son disfarces com los que realizan fines pragmáticos; son recursos que permiten al ser representar un papel distinto de suyo próprio. Evidentemente el papel individual de cada uno estará determinado por la situación social, pero a pesar de que ésta condiciona la forma, no condiciona el estatus humano de doppelgänger. Imprime su sello em la disociación, pero ni la constrine, ni la elimina, provocando com ello el despliegue de a dualidade humana em una multiplicidad de papeles. (ISER, 1997, p. 55).35

Na narrativa de A desumanização é possível perceber essa relação dupla entre a vida de Halla e a vida perdida da irmã gêmea.

A minha irmã gostava de doces e eu odiava. Talvez as pessoas se esforçassem por me convencer a comer doces para consolar a alma dela. Talvez pudesse passar a gostar de snudurs, se a Sigridur estivesse

35 “Mas como doppelgänger de si mesmos, os seres humanos são, pelo menos, mutáveis, e vão se movendo pelos

seus papéis com os quais, por sua vez, suplantam e modificam uns aos outros. Os papéis não são disfarces utilizados para realizarem fins pragmáticos; são recursos que os permitem representar um papel diferente de si próprio. Evidentemente, o papel individual de cada um estará determinado por sua situação social, mas apesar dessa condicionar a forma, não condiciona o status humano de doppelgänger. Imprime sua marca na dissociação, mas não reduz, nem elimina, provocando a implantação da dualidade humana em seus múltiplos papéis” (Tradução minha).

verdadeiramente posta dentro de mim. Quando experimentei, igualmente odiei, e a ausência da minha irmã apenas aumentava. Eu dizia que o açúcar me vinha como sangue à língua. (MÃE, 2014, p.10)

O crescimento de Halla é representado com sofrimento, pois a metáfora do eu-gêmeo da infância não revela somente a experiência difícil do amadurecimento, a passagem para a vida adulta, mas a transformação de Halla de menina para mulher. É sobre o tornar-se mulher de que aborda mais propriamente a trama: “Foi nessa altura, com onze anos de idade, que me vieram as flores de sangue. A dormir, enquanto delirava com a boca de deus, era de vento, voadora, infinita, limpa, como se aberta fosse o dia e fechada fosse a noite” (MÃE, 2014, p.17). Nesse sentido, a analogia com a natureza que é incorporada aos personagens, principalmente a Halla, também alude a esse eu-feminino que, na narrativa de Valter Hugo Mãe, diferente do eu-masculino, está mais próximo à natureza. O autor enlaça à representação da puberdade de Halla a esse significado encravado no senso comum sobre a natureza feminina, distante da cultura e mais próxima do que homem ao que é biológico. Desse modo, é possível compreender o sofrimento na representação da menstruação de Halla como dentro dessa chave: o difícil tornar-se mulher, o sofrimento da troca da infância pela condição sôfrega do ser mulher:

Sente-se como uma dor de estômago mais a fundo. Como se o estômago estivesse a descer e a querer sair pernas abaixo. O meu pai perguntou: a morte. E eu respondi: não. As flores das mulheres. O sangue apodrece e cheira mais forte. Corre dentro como um bocado de fogo raivoso, porque me arde. Expliquei assim. Mas o meu pai não conversou mais nada. Teve vergonha. A minha mãe disse que era um pequeno vulcão. São as flores das mulheres. São de Sangue. São de Lume. Magoam. Todos me falavam de passar a ser mulher e sobre o que isso significava de perigo e condenação. (MÃE, 2014, p.17).

No entanto, é possível também interpretar esse metamorfose vegetal na obra como uma compreensão da infância como o estado mais selvagem, integrado a natureza, do humano. A passagem da infância à idade adulta de Halla é uma passagem de um estado selvagem, mais próximo ao animal, para um estado adulto, de civilização, amadurecimento, na qual a ligação com a natureza, metamorfoseada pela linguagem do romance é o símbolo. No começo da trama, a ligação de Halla com a natureza é maior, seu olhar infantil busca na natureza a explicação para o mundo e para as suas dores, nesse momento a presença de

Sigridur ainda é forte, é como se Halla fosse se descobrindo ao longo da narrativa,

Mas a cuidar dos alguidares eu vi o corpo da minha irmã a perder o fôlego. A cuidar da terra eu vi o corpo da minha irmã a germinar. A mão pequena, o dedo mindinho à minha procura. Uma tentativa de se levantar lenatamente do lugar fundo onde a haviam posto. A olhar a charneca, quieta, o mar adiante, eu esperava uma salvação. A chegada dos heróis. O regresso absurdo da Sigridur. (MÃE, 2014, p.19).

E nessa busca ela vai ficando cada vez mais longe da irmã, como também mais longe da natureza (infância) e mais próxima do humano (vida adulta).

Nunca teria medo de ti, nem mesmo se agora esta pouca terra se abrisse e eu te caísse sobre o corpo desfeito. O teu corpo desfeito nunca me será horrível e nunca me impediria de te abraçar ou de te beijar, porque o teu corpo é o futuro do meu e eu, que não tenho filhos, também preciso do futuro. Tudo quanto te estiver mais perto me deixará sempre feliz. Se ao menos me pudesses vir explicar o que te está mais perto. Porque tenho tanto a impressão de me enganar aqui. (MÃE, 2014, p.51).

No afastamento do eu da infância, a puberdade vai brotando em Halla que se apaixona por Einar. É a partir deste afeto que esse afastamento vai se tornando mais forte: “Sonho que ser longe é estar mais perto de ti. Desculpa, mana, o Einar, por agora, é o mais longe que existe. Como se me levasse a ser outra. Desculpa”. (MÃE, 2014, p.51). Assim, Halla vai se tornando outra, adulta, tornando-se mulher. Logo, seu duplo alcança outro duplo, o da gravidez, e sua dor encontra na vida adulta uma conformação, “quem tem filhos precisa de futuro” (MÃE, 2014, p.16) diz um trecho do livro, Halla precisava de sua irmã como um

outro, mas com seu crescimento ela aprendeu a reconhecer no filho a mesma alteridade:

“Naquele instante, grávida, supliquei por mim, De perto ou de longe, que me deixassem todos, deus e a Islândia, a Sigridur e o Einar, os meus pais e as andorinhas zangadas, que me deixassem todos medrar. Precisava urgentemente do futuro”(MÃE, 2014, p.55). A comunicação com a natureza atesta o sentido de amadurecer. Tornar-se adulto é se desvencilhar do eu livre e ingênuo da infância, o eu selvagem, mas, ao mesmo tempo, é desumanizar-se, endurecer. Somente o sonho é capaz de unir as duas pontas, os dois dedos, da infância à vida adulta:

Contei as nuvens. As que pareciam raposas, cães ou gatos. As que pareciam rostos zangados. As que pareciam coisas de vestir. As que pareciam, simplesmente, montanhas. As almas das montanhas mortas que, por serem grandes, vagavam ainda pelo céu. Pensei que a alma de uma montanha poderia cair e tombar sobre mim e eu, tão pequenita, haveria de morrer esmagada. Ou, se a alma de uma montanha me entrasse no corpo e me fizesse crescer como um gigante, seria magnífico. Pensei que, se a minha alma passasse no ar, não seria vista de tão pequena e, se fosse de ver, teria a forma de duas meninas a dormir, deitadas uma para a outra, as pernas

refletidas, formando um pequeno coração de cabelos loiros e panos brancos, sorrindo. Os dedos mindinhos laçados. Dormíamos com os dedos mindinhos laçados, como se prometêssemos nunca ir embora. (MÃE, 2014, p.53).

A desumanização, palavra que dá título ao romance de Valter Hugo Mãe, trata-se da

despedida do eu da infância, da sua morte, para o percurso da vida adulta. No caso de Halla, o intenso e difícil tornar-se mulher.