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2 MARCO TEÓRICO

2.2 VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA A MULHER

2.2.2 Desvelando o significado de corpo

A discussão sobre o significado do corpo sugere realizar o exercício de sair do lugar físico do corpo e entender como o corpo é representado no contexto social e cultural, pois são estes os elos das relações sociais vivenciadas pelas pessoas que interferem na construção desse pensamento, incluindo as questões vinculadas ao imaginário do corpo ideal no âmbito individual e coletivo acerca do corpo.

Elucido o desafio de deslocar a lente referente ao significado do corpo da área da saúde e trazê-lo para o lugar representativo das ciências sociais, que deveriam ser os elementos transversais mais presentes na formação dos profissionais da saúde, mas esta é outra discussão.

Na área da saúde, o corpo é identificado com as influências da ordem biológica, de forma multifacetada, cérebro, órgãos, fisiologia e anatomia, e nesta conjuntura o corpo sofre uma objetificação, que distancia as singularidades das pessoas, despem os seus corpos das roupas e adereços, o corpo transforma-se em simples conjunto de peças anatômicas (68,69).

A tentativa de objetificar o corpo dos pacientes está presente em todo o processo do cuidado, durante os procedimentos e atendimentos, das categorias dos profissionais da saúde, pois existe a necessidade de despir o corpo, e arraigado à imposição dos tratamentos, esta forma de cuidado consiste na tematização do corpo objeto (68).

Na perspectiva dos tratamentos, existe a análise dos corpos referente à classe social e à cultura. Entende-se que o cuidado em saúde se baseia em ações restritivas às condutas de higiene e aos cuidados com o corpo (69), enfatizando as práticas de promoção da saúde e prevenção das doenças, ações que são executadas e interpretadas pelos profissionais e gestores de saúde arbitrariamente nas diferentes classes sociais.

Diante dessa realidade, existe uma luta para implantar nos serviços de saúde a humanização da assistência e o uso de saberes dicotômicos ao modelo biomédico, como o uso das Práticas Integrativas e Complementares (PIC), pois ainda é primordial a importância do acompanhamento voltado à doença, mas o corpo não está distanciado da pessoa. As PIC possuem uma política específica (70) que orienta a sua implantação na assistência em saúde. Ainda existe a Política Nacional de Humanização (71) que orienta e oferece diretrizes para os serviços públicos de saúde para oferecer um atendimento humanizado. No ambulatório do serviço estudado, percebeu-se a inclusão e a eficaz implantação nas condutas, atendimentos e recepção das mulheres nos serviços disponíveis no hospital. Isto ajuda ao profissional da saúde a descolocar a sua percepção acerca do corpo e de como o cuidado deve ser oferecido à mulher e aos familiares.

Nas ciências sociais, a interpretação de corpo é distinta daquela feita na saúde. A abordagem é voltada ao corpo pessoa, onde a individualidade e os sentimentos estão presentes, e o corpo não se reduz às peças anatômicas ou aos tratamentos médicos (68). Segundo Foucault (67):

Não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável, mas de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica – movimentos, gestos, atitudes, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo. (...). Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as “disciplinas” (p. 118) (67).

O tratamento do paciente como um corpo dócil é muito presente e instituído na prática biomédica, pois relaciona o cuidado ao modelo hospitalocêntrico. Nesta situação, o profissional de saúde é detentor do conhecimento e o paciente reduzido ao patamar da submissão do cuidado com o seu corpo.

Essa conduta é equivocada e arbitrária, pois o ser humano que está transitoriamente como paciente também é capaz de cuidar de si. Ao prestar cuidado é necessário ter a clareza de que o paciente é quem conhece e decide os limites do cuidado e das ações diárias da sua vida. O profissional de saúde precisa deslocar-se dessa posição hierárquica, que é inadequada, e relacionar-se com o paciente de forma horizontal.

Entende-se, com esta reflexão, que o corpo atua na esfera social e individual, e reforça a complexidade do fenômeno da corporeidade. Para analisá-lo se faz necessário transitar entre os distintos saberes interdisciplinares presentes nas ciências sociais e humanas e biomédicas (72,73).

A percepção sobre o significado do corpo passou por modificações durante as décadas; a ascese10 corporal, que representava uma demarcação cultural e uma forma de resistência, transformou-se no mundo contemporâneo em uma bioascese11, que é uma prática individual em que o sujeito cuida de si e constrói a sua identidade (71,72).

O corpo moderno submete os sujeitos às ideologias dominadoras do aprimoramento corporal, que ultrapassa a dimensão física. A valorização do corpo segue o limite do aprisionamento do ser, pois o utiliza “como acessório, modelado, fabricado, parceiro (alter ego); administrado, marcado, rascunho, transexualizado e body art” (pg. 321) (73). Esta intervenção marcante da estética corporal é uma interferência do biopoder12.

A interferência dos sentidos no corpo pode ser expressa nas percepções sensoriais e corporais. O corpo pode ser compreendido como universo das representações, dos valores e do imaginário social, que consegue transitar pelo campo da sexualidade, incorporação de valores sociais, capacidades e limites, medos, dúvidas e descobertas e o próprio uso do corpo (73).

10 A conduta ascética é dividida em quatro eixos para Ortega (74): o processo de subjetivação; a delimitação e

reestrutura dos vínculos sociais; um fenômeno social e político; e determinada pelo elemento volitivo (75). Para Ortega, apud Foucault, o ascético é “o conjunto ordenado de exercícios disponíveis, recomendados e até obrigatórios, utilizáveis pelo indivíduo num sistema moral, filosófico e religioso para atingir um objetivo espiritual específico” (74).

11 A bioascese é compreendida como sendo práticas apolíticas, desvinculadas do bem-estar coletivo e reduzido

aos interesses pessoais. Segundo Ortega (74), “o interesse pelo corpo gera o desinteresse pelo mundo; a hipertrofia muscular se traduz em hipertrofia social” (pg. 48).

12 Biopoder foi um termo ou conceito criado pelo próprio Foucault para mostrar a prática dos Estados modernos.

Segundo ele, os Estados modernos regulam os cidadãos através de numerosas técnicas que possibilitavam o controle dos corpos e da população em geral (67,68).

Nesse contexto, apresenta-se a corporeidade, que é composta por estímulos e situações que desenvolvem o corpo, que busca ser entendido histórico e culturalmente. A noção de corporeidade supera a dicotomia biológica-cultural e expressa a unidade do ser no mundo.

Para Butler (76), o sexo é um constructo ideal que é forçado a ser materializado através do tempo. Entende-se que o sexo não é uma condição estática do corpo, mas um processo pelo qual as normas regulatórias materializam o “sexo” e produzem essa materialização através de uma reiteração forçada dessas normas. Fomentando esta reiteração das normas como necessária, a materialização do sexo nunca está completa, assim, os corpos não se conformam às normas pelas quais sua materialização é imposta (76).

As relações de poder e controle social atuam no corpo, os indivíduos escolhem uma performance ou estilo de vida para o corpo, que está em imersão social. Essas escolhas podem ser expressas, por exemplo, pelas aparências corporais, intervenções plásticas, estigma corporal, modernidade, corpo aventureiro, modificações específicas da idade, como o envelhecimento do corpo e o imaginário do descartável com a objetificação do corpo (73).

Para Foucault (77), o corpo pode ser definido em três modelos; corpo tópico, utópico e a fusão dos dois. Em todos os três modelos o autor refere-se ao corpo como um lugar de onde o ser humano está condenado a viver.

O corpo tópico refere-se à realidade corporal, aborda o corpo com as imperfeições, as variações anatômicas e as patologias. Enquanto o corpo utópico consiste em um corpo belo, límpido, transparente, luminoso, veloz, infinito em sua duração, desligado, invisível, protegido, sempre transfigurado (79). Queremos relacionar a relação do agressor com a vítima, o agressor traz o corpo biológico e a vítima sai do possível corpo utópico para um corpo tópico, que a aprisiona.

Partindo da descrição de Foucault, é importante abordar a temática de sexualidade13 e compreender a dimensão que as sociedades ocidentais a interligaram com o controle do sexo, sobretudo no cristianismo, que é a religião predominante no Brasil, teve em relação às mulheres.

13 A sexualidade é um comutador que nenhum sistema moderno de poder pode dispensar. Ela não é aquilo que o

poder tem medo, mas aquilo que se usa para seu exercício. As proibições não são formas essenciais do poder, são apenas seus limites, as formas frustradas (67).

A confissão, o exame da consciência, foi o modo de incorporar a sexualidade no centro da existência. Era preciso examinar, vigiar, confessar e transformar em discurso. Assim, a produção de “discursos verdadeiros” resulta na formação de poderes específicos produzidos em relação à sexualidade. Isto tornou-se um problema no Ocidente, pois levou à repressão sexual (67).

As mulheres, na pós-modernidade, ainda convivem com os preconceitos e convicções mais conservadoras impostas pela repressão sexual, virgindade e pudor. Situações que representam o reflexo da abordagem utilizada na educação dos filhos na modernidade, principalmente se vinculado à violência, em especial a sexual.

A sexualidade é uma organização específica do poder, do discurso, dos corpos e da afetividade. Produz um conceito artificial que amplia e mascara as relações de poder em sua origem (43). A primeira abordagem sobre a temática sexualidade começou na metade do século XVIII, intitulada o dispositivo de sexualidade, que elenca um conjunto de práticas, discursos e técnicas de estimulação dos corpos, intensificação dos prazeres e formação de conhecimentos (75).

No corpo, a sexualidade, quando associada às relações intimas e afetivas, separada do sexo, priva o gênero feminino da autonomia dos seus corpos. Assim, quando as mulheres sofrem coação para ter relações sexuais ou vivenciam situações de abuso, trazem para o corpo a dor física e o sofrimento psíquico, pois se sentem aprisionadas ao corpo. Esse sentimento pode ser expresso, por exemplo, pela depressão, isolamento social, medo de relacionamento; e na ordem da psiquiatria, podem ou não desenvolver transtornos sexuais, e em alguns casos levam mulheres a cometerem suicídio, quando aquele corpo não serve mais para aquela pessoa que vive ali.

As mudanças corporais provenientes de uma gestação, também não podem ser esquecidas nesse contexto; o desenvolvimento de um corpo dentro de outro corpo. Essas temáticas afloram diversos sentimentos que variam do desejo ao medo das modificações corporais advinda da gestação, do parto e dos anseios relacionados ao crescimento e desenvolvimento do feto e da criança.

Quando a gravidez é vinculada às situações adversas como a VS ou é indesejada para o momento de vida da mulher ou do casal, o sofrimento psíquico e corporal é exaltado. A compreensão da dimensão corporal em paralelo com a saúde é o desafio deste texto e mostrar a importância que o profissional de saúde tem, na condição de ser humano, de colocar-se no

lugar do outro em questão, para compreender as suas lutas e oferecer estratégias de cuidado que oportunizem a ele a situação de bem-estar.

Diante das variações da interpretação do corpo nas diferentes áreas discutidas, entende-se que, para a mulher, o corpo é cuidado, nutrido e zelado desde o nascimento e, quando existe uma invasão desse lugar tão precioso, isso é considerado uma violência. Diante desse contexto, guio a discussão para a VS contra a mulher.