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O determinismo físico

No documento BERGSON E O EU DIVIDIDO (páginas 65-67)

Bergson, no capítulo III do Ensaio, intitulado “Da organização dos estados de consciência: a liberdade”, irá aplicar os resultados que obteve no capítulo anterior a respeito da duração em um problema filosófico particular, o da liberdade. É como se, aqui, o filósofo estivesse inserindo no domínio da prática o que se manteve apenas como especulação teórica no capítulo anterior. Contudo, para apresentar sua visão da liberdade de acordo com a noção de duração, Bergson – assim como no primeiro capítulo em que debate com os psicofísicos – terá de enfrentar as teorias vigentes a respeito da liberdade, qual sejam: as do determismo e dos defensores do livre arbítrio. O que subjaz a esse embate é a luta – iniciada no Ensaio, mas que estará presente em toda a obra de Bergson – contra toda espécie de mecanicismo, no sentido específico em que este encara tanto o homem e sua consciência, como a matéria e a vida – da mesma forma com que se tratariam as máquinas ou os autômatos, como puramente determinados e previsíveis.

Cabe primeiramente a Bergson analisar as premissas do determinismo físico para apontar onde estariam seus erros, com o intuito, no entanto, de mais à frente analisar os compromissos que o determinismo físico assume com o determinismo psicológico, este sim um “rival” de Bergson no que tange à visão da constituição – ou “organização” – de nossos estados de consciência. Acerca do determinismo físico, Bergson escreve:

[Ele] está intimamente ligado às teorias mecânicas [...] da matéria. Representa-se o universo como um amontoado de matéria, que a imaginação transforma em moléculas e átomos. Estas partículas executariam sem descanso movimentos de toda ordem, ora vibratórios, ora de translação; e os fenômenos físicos, as ações químicas, as qualidades da matéria que os nossos sentidos percebem, calor, som, eletricidade, talvez mesmo a atração, se reduziriam objetivamente a estes movimentos elementares [...]; de modo que as sensações, sentimentos e ideias que se sucedem em nós poderão se definir como resultantes mecânicas, obtidas pela composição dos choques recebidos de fora com os movimentos cujos átomos da substância nervosa eram animados anteriormente. (DI, 107-108/101). Essa determinação dos átomos do universo é explicada, no contexto determinista, pela lei de conservação de energia. De acordo com esta lei, todas as

63 posições de todos os átomos e moléculas seriam determinadas pela soma das ações mecânicas exercidas pelos outros átomos, ou seja, todas as posições futuras desses átomos poderiam ser previstas, ou pré-determinadas, por algum matemático que conhecesse as posições dos átomos anteriores. Barnard (2011, p. 38) afirma que, de maneira geral, esta lei consiste em que, a despeito da criação de novos átomos e moléculas, estes permaneceriam sempre inalterados, enquanto que a energia disponível para movê-los seria redistribuída de um lugar a outro; isto implica que todo e qualquer movimento de um átomo é o resultado previsível de interações mecânicas entre ele e os outros átomos.

Ora, o que nos aparece aqui, é que a lei de conservação de energia depõe contra a noção bergsoniana de duração, a qual diz da irreversibilidade do tempo, da ordem estrita da duração enquanto um continuum “sempre à frente”. Se os átomos podem ser indefinidamente rearranjados entre si, eles podem então voltar a seu estado anterior sem sofrer nenhuma influência temporal, algo inadmissível para Bergson:

Toda aplicação inteligível da lei de conservação da energia se faz a um sistema cujos pontos, capazes de se moverem, também são suscetíveis de voltarem à sua posição inicial. Ao menos, concebe-se este regresso como possível, e admite-se que, nestas condições, nada seria alterado no estado primitivo do sistema total nem em suas partes elementares. Em suma, o tempo não tem influência sobre ele [...]. Mas não acontece o mesmo no domínio da vida. Aqui, a duração parece agir à maneira de uma causa, e a ideia de arrumar as coisas ao fim de um certo tempo implica uma espécie de absurdidade, já que

semelhante volta atrás jamais se efetuou em um ser vivo. (DI, p. 115/108, grifos nossos).

Aqui, Bergson compara a consciência a um ser vivo; de fato, como vimos no capítulo anterior de nosso trabalho, as características presentes na duração – em oposição àquelas de um “ser mecânico” ou um autômato – são exatamente as que estão presente em um ser vivente: imprevisibilidade, criação, seu caráter sempre movente e, o que é mais importante nesse momento, sua intrínseca liberdade. De qualquer maneira, já podemos perceber que, para Bergson, quando os deterministas físicos tratam do espaço e que quando decidem abordar o problema da consciência – que é essencialmente temporal – só o fazem em termos do que o filósofo francês chama de epifenomenalismo67.

67 Cf. DI, p. 115/107-108; esse debate com os teóricos da consciência como epifenômeno será brevemente

64 O epifenomenalismo afirma que é o movimento dos átomos da matéria cerebral que causa a consciência. Nessa concepção, o tempo (como afirmado por Bergson na citação de acima) não tem lugar: no epifenomenalismo o tempo não é nem um ganho nem uma perda, pois tudo não passaria de um rearranjo dos átomos existentes e de uma redistribuição da energia. Para Bergson, no entanto, no “teatro da consciência”, o tempo tem papel principal: “enquanto o tempo decorrido não constitue nem um ganho nem uma perda para um sistema suposto conservativo, é um ganho, sem dúvida, para o ser vivo, e incontestavelmente para o ser consciente.” (DI, p. 116/108).

É nesse registro de um tempo que é insignificante que, para o determinista físico, o futuro pode ser previsto corretamente por alguém que conheça a totalidade dos eventos passados e presentes envolvendo uma situação específica, nesse caso, o ato de um indivíduo:

O matemático que conhecesse a posição das moléculas ou átomos de um organismo humano em um determinado momento, bem como a posição e o movimento de todos os átomos do universo capazes de o influenciar, calcularia com uma precisão infalível as ações passadas, presentes e futuras da pessoa a que este organismo pertence, como se prediz um fenômeno astronômico. (DI, p. 108/102).

Nesta perspectiva, portanto, não só não há possibilidade alguma para a imprevisibilidade, para a criação e o novo, em última instância para a liberdade, como somos estritamente (a despeito de sentirmos que não) determinados. De todo modo, Bergson, então, passará a analisar a “forma mais sutil” de determinismo, que diz da interdeterminação dos estados de consciência e que toma sua forma mais elaborada e definitiva em sua época com o nome de associacionismo.

4.2 O determinismo psicológico: o associacionismo

Bergson algumas vezes afirma que o determinismo físico assume compromissos com o determinismo psicológico68 e que, para refutar aquele de forma final, deve-se primeiramente argumentar contra este último. É que se transfere facilmente uma visão mecânica do mundo exterior para o mundo interior, crendo que da mesma forma com que os eventos do mundo físico seriam determinados por seus antecedentes, nossos estados de consciência seriam também determinados pelos estados anteriores e, mais do que isso – e o que é mais grave para Bergson –, nossas aparentes decisões e

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