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Dever de informação no Direito dos valores mobiliários

CAPÍTULO I – DOS DEVERES ACESSÓRIOS

C) Deveres acessórios no direito português

1.6 Enquadramento jurídico dos deveres acessórios no direito português

1.6.1 Dever de informação no Direito dos valores mobiliários

São várias as disposições do Código dos Valores Mobiliários63 (CVM) que evidenciam a importância dos deveres de informação. Começamos desde logo pelo Capítulo III, inteiramente dedicado à informação e, em especial, ao artigo 7.º que prevê que a informação relativa a instrumentos financeiros, formas de negociação, atividades de intermediação financeira, liquidação e compensação de operações, a ofertas públicas de valores mobiliários e a emitentes deve ser completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita. Mas outras disposições podem ser encontradas no Código, como é o caso do regime das informações relativas a instrumentos financeiros admitidos à negociação, prevista nos artigos 244.º do CVM e seguintes, tendo a CMVM se pronunciado quanto ao regime dos mesmos, no seu Entendimento Relativo ao Dever Legal de Informação sobre Factos Relevantes pelos Emitentes de Valores Mobiliários admitidos à Negociação em Bolsa64. De acordo com este Entendimento, estes deveres de informação fundam-se em três ordens de razão, a saber, a igualdade de oportunidades na realização de decisões de investimento, a proteção dos investidores e o reforço na confiança dos investidores e no mercado em geral, sendo que o objeto do dever de informação quanto a factos relevantes encontra-se previsto no artigo 248º do CVM, não cabendo aqui a análise do regime. O que nos interessa para a presente dissertação é

63 Na sua versão mais recente, aprovada pela Lei n.º 104/2017 de 30 de agosto. 64 Disponível em www.cmvm.pt e que substitui o Entendimento de Fevereiro de 1998.

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precisamente a identificação dos objetivos do dever de informação e a sua importância no Direito dos Valores Mobiliários. Veremos que o dever de informação ganhou uma posição de autonomia neste ramo do Direito face ao Direito Civil.

Entre os principais objetivos do dever de informação no mercado dos valores mobiliários, destacam-se três objetivos fundamentais: a proteção dos investidores, a eficiência do mercado e a prevenção do risco65. De notar que o grande objetivo é, de facto, a eficiência e estabilidade do mercado, sendo que os outros dois deveres são periféricos face ao primeiro. Assim, começando pelo objetivo primacial, o dever de informação no Direito dos Valores Mobiliários, visa a eficácia e estabilidade no mercado, bem como a correta formação dos preços66. Deste modo, compete à CMVM supervisionar e regular os mercados e instrumentos financeiros, bem como os agentes de que neles atuam. Para cumprimento deste objetivo, a CMVM é investida de poderes de supervisão, conforme demonstram os artigos 353.º e 358.º e seguintes67, bem como poderes de regulação, previstos nos artigos 369.º a 372.º, todos do CVM. Relativamente à proteção dos investidores, está em causa essencialmente a divulgação de toda a informação considerada relevante para a tomada de decisão por parte dos investidores e cujos factos sobre os quais incide esse dever de informação encontram-se previstos no artigo 248.º do CVM. A CMVM, no seu Entendimento relativo a Dever Legal de Informação, considera como facto relevante, um “facto susceptível de influir de maneira relevante no preço

das acções ou, relativamente a empréstimos obrigacionistas, que possa afectar de maneira relevante a capacidade de cumprir os seus compromissos, independentemente de, em ambos os casos, se tratar de uma incidência positiva ou negativa, ou de se apresentar com eficácia imediata ou diferida sobre a actividade ou situação económica e financeira do emitente”.

65 Ver também, Ferreira, Carla, “A importância do dever de informação no Mercado dos Valores

Mobiliários”, disponível em www.cmc.gv.ao. Apesar de o artigo ter sido elaborado com referência à Comissão de Mercado de Capitais da República de Angola, muitos dos elementos aí contidos podem ser adaptados para o nosso ordenamento jurídico, dada a proximidade dos dois sistemas.

66 Ver a este propósito, Câmara, Paulo, 1998, “Os deveres de informação e a formação dos preços no

Mercado dos valores mobiliários”, CadMVM, 2, pp. 79-93.

67 Vide em especial, o artigo 358.º, al. b) do CVM, que dispõe no seguinte sentido: A supervisão

desenvolvida pela CMVM obedece aos seguintes princípios: b) Eficiência e regularidade de funcionamento de mercados e instrumentos financeiros.

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Por fim, os deveres de informação previstos no CVM dizem respeito também à prevenção de riscos por falta de informação no momento da contratação. Não é difícil identificar semelhanças entre estes deveres de informação e os deveres pré-contratuais de informação previstos no artigo 227.º do CC, na medida em que ambos nos dão ferramentas que permitem tutelar a parte mais fraca nas negociações. A questão que se coloca é, em que medida as regras relativas aos deveres de informação e à responsabilidade por violação dos mesmos previstas no CVM se articulam com as regras contidas no artigo 227.º do CC, isto é, se estas constituem uma regra especial face à norma geral do CC. A questão começou por ser suscitada no ordenamento jurídico alemão com um acórdão do BGB de 24 de Abril de 197868.

Em Portugal, esta problemática foi suscitada com um acórdão do Tribunal Arbitral de 31 de março de 1993, o qual mereceu a especial atenção de Rita Amaral Cabral, no seu estudo intitulado de “A responsabilidade por prospecto e a responsabilidade pré-contratual”69. No comentário a esse acórdão, que por sua vez estabelece a diferença entre o artigo 227.º do Código Civil e o artigo 2.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 8/88 de 15 de Janeiro, aplicável ao caso em questão, a Autora questiona se este último preceito legal deve ser considerado como uma especificação do instituto da culpa in contrahendo, concluindo em sentido negativo, acompanhando assim a posição do Tribunal. O argumento essencial apontado pela Autora consiste na diferença de regime destas duas figuras, começando desde logo por apontar que a responsabilidade pré- contratual prevista no artigo 227.º do Código Civil pressupõe uma relação específica entre as partes, enquanto que na responsabilidade pelo prospeto se prescinde dessa relação, cujo objetivo principal é a proteção dos investidores, sendo indeterminados os destinatários da informação do prospeto. Refere ainda a Autora que a reciprocidade existente nos vínculos pré-

68 Este acórdão é relatado entre nós por António Menezes Cordeiro e Cabral Rita Amaral, 1995,

“Aquisição de empresas. Vícios na empresa privatizada, responsabilidade pelo prospecto, culpa in contrahendo, indemnização. Anotação ao Acórdão do Tribunal Arbitral de 31 de Março de 1993”,

Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, 1995, pp.117-118. No referido acórdão, discutia-se a situação

de um investidor que se tornou sócio de uma sociedade em comandita, criada por uma sociedade por quotas, e que foi influenciado por um prospeto que não continha todas as informações relevantes. A sociedade veio a falir e o investidor peticionou em Tribunal o pagamento de uma indemnização pelos danos causados, tendo o Tribunal condenado os administradores dessa sociedade por quotas, com fundamento na culpa in contrahendo, por terem criado uma situação de confiança entre os investidores.

69 Cabral, Rita Amaral, 1995,“Aresponsabilidade por prospecto e a responsabilidade pré-contratual”,

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contratuais, falta nos deveres de informar que recaem sobre o emitente de um prospeto70. Um segundo argumento apontado pela Autora passa também pelas diferenças de regime, como é o exemplo do âmbito dos sujeitos responsáveis pelo conteúdo do prospeto, previstos à data no artigo 160.º do Código do Mercado dos Valores Mobiliários71, bem como a impossibilidade de afastar a obrigação de indemnizar, prevista à data no artigo 163.º do Código do Mercado dos Valores Mobiliários mediante prova da ausência de culpa, contrariamente ao que acontece na responsabilidade pré-contratual estatuída no artigo 227.º do Código Civil. De notar que no atual Código dos Valores Mobiliários, concretamente no artigo 149.º, a exclusão da responsabilidade pelo prospeto está mais próxima da exclusão da responsabilidade prevista no artigo 227.º Código Civil, desde que se demonstre a ausência de culpa e, por isso, este último argumento não se demonstra decisivo para rejeitar a aproximação destes dois regimes. O argumento que, de facto, parece ser decisivo, é o do âmbito de aplicação. Efetivamente a culpa in contrahendo pressupõe um vínculo específico entre as partes que têm em vista a celebração de um negócio jurídico, enquanto que na responsabilidade pelo prospeto não existe esse vínculo e o escopo da norma é a proteção dos investidores. Todavia, concordamos com Sara Costa Apostolides72, quando refere que existe uma relação de especialidade entre a culpa in contrahendo e a responsabilidade pelo prospeto, porque em ambos os institutos, está em causa as ideias de tutela da confiança e do contraente débil relativamente a quem recai o dever de informação, podendo assim falar-se numa expansão do dever de informação para outros regimes jurídicos. Deste modo, acompanhamos a posição da Autora quando refere que o Direito dos Valores Mobiliários constitui uma área sobre a qual se desenvolveu o dever de informação.

70 Cabral, Rita Amaral, 1995,“Aresponsabilidade por prospecto e a responsabilidade pré-contratual”,

Revista da Ordem dos Advogados, pp. 209.

71 Este preceito estava pensado, sobretudo, para os prospetos nas ofertas públicas de subscrição e previa

como responsáveis pelo conteúdo dos mesmos, além da entidade emitente e dos membros dos seus órgãos de administração e fiscalização, as pessoas que, com o seu consentimento, sejam nomeadas no prospeto como tendo preparado ou verificado qualquer informação nele incluída, ou qualquer estudo, previsão ou avaliação em que essa informação se baseie; os auditores que hajam realizado auditoria à sociedade, nos termos exigidos para a oferta pública de subscrição e os intermediários financeiros. A responsabilidade pelo conteúdo do prospeto está atualmente prevista no artigo 147.º do Código dos Valores Mobiliários.

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