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3. A COMUNICAÇÃO, SUAS LINGUAGENS E SEUS FLUXOS NA FESTA –

3.2. OS DEVOTOS DE SÃO SEBASTIÃO

São milhares de pessoas advindas do bairro, entre eles mulheres e homens, crianças, jovens e idosos. No meio deles alguns apresentam deficiência física ou de outro tipo, além de vários tipos de doenças, enfermidades e preocupações que afligem os devotos. Eles vêm também de vários cantos da cidade ou até mesmo são devotos que moraram no bairro e foram embora para outros lugares do país (como o padre denomina-os de “paroquianos ausentes”) e que participam da festa todos os anos e estabelecem uma comunicação com São Sebastião, que se materializa em comportamentos ritualizados, carregados de simbologia e se configuram num processo comunicativo com o santo.

Não podemos relacionar estatisticamente a quantidade de devotos que vêm de outros cantos do país para participar da festa. Como exemplo, temos em 2010 um devoto do município de São Gonçalo do Amarante que foi ao novenário e estava na procissão. Outro devoto veio de Icapuí, município litoral do Ceará, que deixou uma mensagem para o santo no ano de 2011 e um caminhoneiro de Florianópolis, capital de Curitiba. Ele é casado com uma pessoa que morou no bairro do Alecrim e é devota de São Sebastião. Ele diz que aprendeu com a mulher a ser devoto do santo. Quase todos os anos, quando dá para vir com a família se desloca de lá para participar da festa. Agora, depois de ter conseguido se aposentar graças à promessa que fez a São Sebastião, torna-se mais fácil participar todos os anos. Para pagar a promessa, o caminhoneiro vai vestido apenas com um calção na cor vermelha, representando o próprio santo. De pés descalços, sem camisa, ele acompanha a procissão de São Sebastião pelas ruas do bairro do Alecrim.

Figura 13 – Caminhoneiro de Florianópolis que participa da procissão de São Sebastião.

Foto: Hélcio Pacheco

Rodolfo Guttilla (2006) identifica quatro categorias de devotos no espaço da igreja que apresentamos aqui: “O devoto paroquiano” vai à igreja aos domingos [...]; “o devoto eventual” vai ocasionalmente ou quando tem uma promessa; “o devoto fervoroso” só frequenta para retribuir uma graça ou fazer uma promessa [...] e “o básico” só vai no dia da festa (GUTTILLA, 2006, p. 163). O que ele identifica como devoto pode se confundir com o fiel, o leigo que faz parte da igreja. Por exemplo, o devoto paroquiano pode ser alguém que participa da missa todos os domingos e não vai lá por causa do santo de sua devoção. Para Renata Menezes (2004), quando analisa o espaço do convento, ela identifica o público e as diversas razões para estar lá. Elenca três categorias, ou seja, os devotos, os frequentadores e

os agentes. “Os devotos são aqueles que têm um vínculo” com um santo em particular ou com

vários; os frequentadores são as “pessoas que comparecem ao local por motivos outros [...] Existem outras motivações para estar no convento que não estão relacionadas ao santo”; e os

agentes são “um conjunto mais amplo, que compreende não apenas pessoas que visitam o

local, mas também os frades e os funcionários, que possuem algum tipo de envolvimento mais “profissional” com o convento, isto é, que trabalham nele” (MENEZES, 2004, p. 116 e 124). Ela elenca uma série de pessoas que circulam no espaço do convento: há os que vão lá para realizar algum serviço em troca de alimento ou dinheiro (p.119); os que frequentam por motivos religiosos ou não (p. 119); os que comparecem para afirmar a sua identidade religiosa

católica (p.119); os evangélicos (p.120); os curiosos ou aqueles que passam por lá gostam de permanecer no local; os que vão por causa da festa (p.120); os que acompanham alguém (p. 122) e os que vão por causa da herança familiar (p.123) (MENEZES, 2004, p. 116-123).

O tipo de devoto que visualizamos no espaço da festa de São Sebastião é o devoto

afetivo, aquele que não está na casa do santo (igrejas e santuários) diariamente ou só em

alguns dias da semana ou mesmo o que só se visualiza no dia da procissão, mas é aquele devoto que mantém um vínculo permanente com ele, uma relação mais íntima, mais próxima com o santo seja em casa, no trabalho, ou em seu ambiente individual e reservado e, no dia da festa, se faz presente para demonstrar sua devoção através de vários atos performáticos que expressam uma comunicação. É aquele devoto que, além de estar vinculado a uma atividade no espaço da paróquia, participando de movimentos, grupos ou outras organizações da igreja, no período da festa canaliza todas as suas atenções e energias para demonstrar esse vínculo afetivo e amoroso que mantém com o santo no período da pré-novena, durante as noites de novenário e no dia da procissão percorrendo as ruas do bairro.

Ao longo dos quatros anos pode-se perceber o aumento do fluxo de pessoas que são devotas do santo durante a festa. Há uma relação afetiva com o santo que faz mobilizar a cidade. De acordo com informações do corpo de bombeiros de Natal e do próprio padre da paróquia, o número de devotos que segue a procissão pelas ruas do bairro todo dia 20 de janeiro é bastante representativo, não importando qualquer que seja o dia da semana em que caia a data de comemoração do santo. Embora o dia da festa de São Sebastião no mês de janeiro não seja um feriado para a cidade, muitas pessoas que se deslocam para lá se encontram em férias de trabalho e escolares. Padre Campos chama a atenção para o fato de que “as pessoas estão muito fora da paróquia, fora da cidade”. Para ter uma ideia da evolução e volume de devotos na procissão a cada ano, em 2009, quando a paróquia comemorou 60 anos de existência, foram 20 mil devotos na procissão. Já no primeiro ano da pesquisa, iniciada em 2010, teria participado da procissão cerca de 30 mil pessoas. Em 2013, nosso último ano de pesquisa, e também os 20 anos do padre à frente da paróquia, a estimativa foi de quase 40 mil devotos que percorreram as ruas do Alecrim. Em 2014 a mídia estimou em 20 mil pessoas. Há uma variante, mas seus adeptos são numerosos e fervorosos, constituindo uma das mais expressivas mobilizações de Natal no dia da procissão.

Podemos correr o risco de errar ao afirmar que essa relação de devoção, de intimidade e de uma comunicação mais efetiva e afetiva que se constrói com o santo são tão forte ao ponto de considerar que o crescimento da festa de São Sebastião não se deu ou se dá apenas pela tradição religiosa dos rituais do novenário que se atualiza todos os anos, com suas

temáticas específicas e relacionadas ao contexto social de cada época porque nem todos os devotos participam desses momentos.

Também é mais do que o momento mais esperado da festa, a procissão que percorre as ruas do bairro, que nos últimos anos alterou o seu trajeto e tem crescido em número de devotos, mesmo que as estatísticas apontem para isso. Não é também só pelo momento profano e lúdico das barracas com bazar de roupas e comidas, dos parques de diversões, dos jogos e outras atrações (danças, músicas, shows) oferecidas aos fiéis devotos. Pelo contrário, já não há mais o espaço da rua que antes era ocupado com barracas e toda uma estrutura para o lado lúdico e festivo das comidas e bebidas, concentrando-se ou reduzindo-se hoje ao pátio interno da igreja e sob a coordenação e envolvimento dos grupos, movimentos e pastorais da paróquia. Mais ainda: o crescimento da festa também não se motiva tão pouco pelo aspecto econômico da circulação de dinheiro, que movimenta hoje alguns empreendimentos informais de pequeno porte (vendedores ambulantes) e de todo um aparato comercial organizado pelos grupos da paróquia para angariar recursos durante o novenário. Em comparação às outras décadas, o montante que se apura com essa estrutura é relativamente pequeno.

O que realmente garante o sucesso da festa são os vínculos que os devotos criam com o santo, a sua relação comunicativa que se expressa nas práticas da fé, nos rituais performáticos que usam várias formas de comunicação e nos outros elementos simbólicos que se constrói e se incorpora para poder manter o diálogo e a devoção com o santo. Ele é o intercessor e a relação com o transcendental, com a divindade, a relação com Deus mesmo “será sempre mediada pelos santos, entes próximos, quase familiares, sensíveis às súplicas [...]” (GUTTILLA, 2006, p. 53).

Ao considerar os processos de comunicação, os seus fluxos e suas linguagens presentes durante todo o período da festa de São Sebastião, podemos perceber, de um lado, uma comunicação “oficial” empreendida hierarquicamente pelo padre (vigário da paróquia), pelos pregadores (bispos, padres e diáconos) convidados para o novenário, pelos representantes das pastorais, pelos movimentos e grupos religiosos, pelos grupos organizados e responsáveis pela estrutura da festa a cada ano, que vai desde o período de preparação com as reuniões da coordenação e das equipes distribuídas pelas ruas para realização da pré- novena até o momento maior que é o dia do santo padroeiro com a procissão que percorre as ruas do bairro. Todos eles são devotos de São Sebastião, mas com a característica de pertencer à estrutura organizada da paróquia.

Por outro lado, o fluxo comunicacional também se dá com aqueles devotos que não estão vinculados diretamente às organizações da paróquia, não participam especificamente

dos grupos, pastorais ou movimentos locais, mas recebem o santo em suas casas no período da pré-novena, os que assistem ao novenário, no período que vai do dia 10 ao dia 19 e a imensidão de peregrinos que saem de suas casas todos os anos para participar da procissão de São Sebastião no dia 20 de janeiro pelas ruas do bairro e ainda aqueles que enfeitam as portas de suas casas, áreas e calçadas e expõem publicamente seus altares para reverenciar o santo que passa durante o cortejo. São também aqueles que escrevem seus bilhetes, que beijam e tocam a imagem do padroeiro, que bebem da água benta, que se vestem de vermelho e branco, que estendem a mão ou simplesmente elevam o olhar para se comunicar com o santo da sua devoção: “eu sou devoto de São Sebastião e não vou perder uma noite de novena”, diz um devoto. São aqueles que participam do novenário e da procissão ou simplesmente os que vão apenas para a procissão. São antigos moradores do bairro ou até mesmo aqueles que nunca tiveram um vínculo com o lugar onde se encontra o santo no altar.

Há também os devotos que nasceram no bairro, têm uma ligação muito forte com o santo e hoje estão em outros espaços da cidade ou até mesmo em outros estados brasileiros, mas que não perdem o vínculo afetivo com o santo. Alguns deles chegam não só para participar dos rituais da festa, mas para agradecer uma conquista da vida ou pedir uma ajuda ao santo para situações que apresentam difíceis soluções, para o encontro com parentes, amigos e vizinhos e que se transformam em momentos de comunicação.

Eles vêm dos conjuntos e bairros da Zona Norte (Soledade, Nova Natal, Santarém, Santa Catarina, Igapó, Redinha) das Zonas Leste Oeste da cidade (Dix-Sept-Rosado, Bom Pastor, Cidade Nova, Nordeste e Quintas), como é o caso do criador da pré-novena que mora em uma das ruas do bairro das Quintas. Outros vêm do bairro das Rocas. Certa vez o padre perguntou se tinha alguém da Zona Sul participando da festa, mas ninguém respondeu acenando. Nem sempre tais devotos são identificados durante os festejos que duram dez dias, incluindo a novena e a procissão.

São pessoas simples, moradores de vilas, becos, vielas, pessoas idosas, doentes, cadeirantes, deficientes físicos, visuais e mentais, pobres, desempregados, trabalhadores de diversas áreas, comerciantes locais e comerciários, vendedores ambulantes, gente que no período da festa aproveita a oportunidade para ganhar dinheiro vendendo pequenas imagens do santo em gesso, terços, escapulários, CDs e DVDs de cantores católicos e outros produtos religiosos. São aqueles também que se aglomeram nas calçadas para ver o cortejo passar, que enfeitam a porta de suas casas, que se vestem de branco ou de vermelho para expressar sua intimidade com São Sebastião. Todos apresentam um vínculo afetivo com o santo.

Todos buscam manter o diálogo, estabelecer a sua comunicação construída através das várias linguagens e simbologias e garantir a efetividade do processo comunicativo com o santo. E o fazem através das súplicas em decorrências de dificuldades cotidianas e agradecimentos pelas graças e milagres alcançados no início das celebrações do novenário, pelos pedidos colocados no pote de barro, pelos toques na imagem do santo, pelo olhar, pelo gesto e até pelo tipo de vestimenta ou expressão corporal. É uma profusão de mensagens que saltam os olhos e nos levam a direcionar o olhar para captar o seu significado comunicacional no espaço da festa.

São devotos de longas datas, como é o caso do responsável em abrir e fechar a igreja e durante o novenário assumir a postura de um exímio vendedor e incentivador para que os devotos cantem durante as celebrações nas noites de novena. Ele que já ultrapassou os 50 anos de vivência na paróquia também mantém a sua relação de devoção com o santo. Tem gente devota do santo com vinte ou mais de trinta anos, mas também aqueles devotos de envolvimento mais recente, de um ano atrás. São devotos que se identificam com o santo e apresenta a perspectiva de manter um vínculo de amizade duradouro, uma cumplicidade que se estende por um período mais estável. Eles contam tudo, confidenciam suas vidas, todos os problemas segredam ao santo, confirmando uma relação solidificada na confiança e a crença (fé) na força do mártir São Sebastião que tudo pode e intercede em seu favor.