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O tema do sexo dialogado é de extrema importância para os textos libertinos analisados no presente estudo. Em Sade, principalmente, o diálogo é o mecanismo fundamental para a argumentação de sua filosofia. Sem o mesmo não seria possível pensar num erotismo racional, muito menos em justificar hipóteses de uma filosofia lúbrica. De acordo com Jean-Marie Goulemot215, o discurso precede e incita o gozo, pois o prazer surge também da justificação retórica da volúpia. Através do diálogo, os libertinos fazem intervalos nas suas orgias para efetuar o verdadeiro objetivo do gozo: reflexão e elaboração.

Conforme Hénaff216, Sade traça uma divisão teórica entre a ordem expressiva dos signos, identificada ao moralismo cristão, e o regime a-significativo do corpo, identificado à verdade da natureza. O objetivo primordial do discurso libertino é detalhar o caráter legítimo do corpo, para atestar por prova real a verdade que o enuncia. E o que estimula o discurso é exatamente essa necessidade de percorrer o corpo, de enunciar toda a sua perversidade, confessando o inconfessável. No nível do significado narrativo, entender o corpo em sua materialidade é um trabalho de desqualificação dos signos. Assim, a progressão do tempo narrativo é feita pela necessidade de percorrer o corpo e não pela acumulação de signos.

Contudo, Hénaff explica: afastado do regime da expressão, o corpo em si não pode realmente dizer nada, tudo o que lhe é permitido é agir. A expressão do corpo, a sua

215 Goulemot, op. cit., p. 112-113.

enunciação, será feita através da mente (tête), ou seja, do discurso. É por isso que existe, em Sade, a incisiva divisão entre cena de ação e cena discursiva, cujo funcionamento alternado, praticamente automático, estabelece uma narração esquemática, que tem a sua necessidade lógica no estatuto apático do corpo. Essa relação entre ação e dissertação não é somente um jogo de trocas (um pouco de sexo contra um pouco de filosofia); é a prova intratextual do impacto libidinal da demonstração. As reações do corpo não são capazes de cumprir a meta de “dizer tudo”. Esta função será exercida pela mente (tête), enquanto o corpo permanece mudo, sob o controle da mesma:

C’est parce que le corps n’a rien à dire qu’il est exclu du régime de l’expression, cantonné dans celui de l’action, et que la fonction énonciative est rabattue entièrement sur l’énoncé discursif. C’est le fameux partage scène/dissertation dont le fonctionnement alternatif quasi automatique semble relever d’une narrativité schématique, pour ne pas dire pauvre, mais qui a sa nécessité logique dans ce statut apathique du corps. “Tout dire” est une chose trop importante pour être confiée aux réactions de l’épiderme. D’où le rapport disjonctif discours vs peau. Plus celle-ci est muette, plus la tête contrôle ses propres énoncés. La nudité connote le silence des corps (silence de la nature et de l’animal). Plus le corps se dépouille, plus il renonce à exprimer, plus il invite la “tête” à discourir; inversement, plus le corps parle (cas de la victime) moins la tête fonctionne.217

A mente, no sentido de tête, é um instrumento material dentro do maquinário corporal. Ao mesmo tempo em que é filtro e catalisador, é também o centro que controla e fornece energia. O corpo, conectado a uma mente falante, deve manter-se mudo, pois não tem, propriamente, nada a dizer ou exprimir. A a-significância do corpo é proporcional à

216 Hénaff, op. cit., p. 58.

super-significância da mente. Mais explicitamente, o corpo é opaco; são as valorizações discursivas que importam. Desse modo, o corpo deve renunciar à expressão como uma forma de convidar a mente a discursar.

A linguagem do herói libertino exprime a totalidade do desejo. Tudo pode e deve ser nomeado, numerado e classificado por ele. A condição do diálogo é o excesso; esta é a exigência para a impossibilidade de esconder. Dialogar, no sentido confessional, é um percurso que precisa ser exaurido, percorrido em sua totalidade, não deixando lugar algum para o proibido. E, acima de tudo, nenhuma possibilidade para contradição. O processo dialógico é, portanto, um projeto enciclopédico de acumulação de dados e argumentos, diante do qual um possível adversário não teria meios de réplica. Se tudo é dito sem quaisquer incoerências, o mestre libertino ganha o monopólio da fala, o privilégio único de discursar. Além disso, de acordo com Hénaff, o próprio conceito de natureza em Sade tem uma função estratégica, retórica e não metafísica. A natureza é um argumento de evidência que deixa o adversário sem recurso.

Dizer tudo é a própria enunciação do prazer. Nascido da linguagem, o corpo libertino deve manter seus atos direcionados ao discurso que os chama, os programa, os define. O prazer só existirá sob a rígida condição de ser articulado ao discurso. Ainda, submeter o prazer à linguagem é associá-lo à razão, mobilizando suas estruturas e seus dispositivos. Logo, na articulação sexo e diálogo, o prazer e o saber unem-se e condicionam-se mutuamente. O imaginário no qual o libertino irá investir é, então, o dos sistemas discursivos e não aquele fantástico e ideal próprio do sujeito. A nudez não é exatamente aquilo que excita o libertino, ela simplesmente proporciona a situação necessária ao domínio. O corpo só será desejante e desejado quando revestido por falas.

Ao contrário do mestre libertino, a vítima, como Justine, se engana sobre os signos, pois desconhece sua função ilusória. Ela é iludida com a máscara aparente dos signos, não enxergando sua colocação estratégica, tomando-a por expressiva. Sem direito à linguagem, fora do espaço discursivo, é incapaz de promover qualquer diálogo com o mestre. Torna-se, então, uma massa anônima, incapaz de revolta e perdida no silêncio.

Em oposição, Juliette tem a postura do mestre, pois toma o corpo em todo o seu entendimento, compreende seus desejos e funções. Ela sabe que o bom funcionamento da mecânica corporal liquida a atividade ilusória dos signos e, conseqüentemente, o princípio de subjetividade que ela implica. É por isso que, no interior das posições de poder sadeanas, só haverá confronto entre os próprios libertinos. A capacidade de dialogar não define somente que o personagem possui grande sabedoria; evidencia um poder sem limites.

Capítulo XI: