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Diário de um ladrão ou Diário do ladrão?

No documento rafaelramospereira (páginas 40-45)

Sobre a problemática do gênero de escrita de Journal du voleur podemos dizer, com base nas reflexões de Philippe Lejeune, que essa obra não é um diário. Entretanto, Genet intitulou sua obra usando o termo journal. Poderíamos pensar que Genet talvez não tivesse clara em sua mente a definição do que configura um texto de diário pessoal, porém, este é um gênero antigo e muito popular, todos conhecem, de alguma maneira, como funciona a prática de escrita de um diário, seja praticante assíduo ou não. Provavelmente, essa escolha lexical foi feita com o objetivo de trazer para sua obra um tom confessional e instigar a credulidade de seu leitor.

Na língua portuguesa, usamos a palavra “jornal” para designar a imprensa cotidiana que traz notícias e reportagens, de forma televisiva, radiofônica, online ou impressa, e o termo “diário”, empregado como substantivo, para denominar o conjunto de vestígios datados que alguém faz do seu dia a dia, um registro de eventos e emoções. Como apontado por Lejeune (2014, p. 300), a palavra diaire existia no francês antigo, mas desapareceu do vocabulário, já em outras línguas românicas e no inglês, o termo sobreviveu. Por esta razão, há a necessidade de especificar, na língua francesa, com um adjetivo, quando se quer distinguir a prática pessoal de escrita da prática de imprensa cotidiana. Lejeune observa que a intimidade só entrou na realidade do diário mais tarde, sendo uma modalidade secundária, e, dessa forma, ele prefere usar o termo journal personnel [diário pessoal] e não journal intime [diário íntimo].

41 Considerando que a origem da palavra journal advém do adjetivo latino diurnalis, que significa cotidiano, e que na língua francesa esse termo continua vinculado à sua característica de algo do dia a dia, podemos levantar a hipótese de que a escolha do título Journal du voleur, tenha sido pensada justamente para trazer a ideia do cotidiano do ladrão que era Jean Genet, o cotidiano que levava no decorrer da década de 30, criando assim uma ambiguidade com a palavra journal. Diferentemente da tradução brasileira em que temos o artigo indefinido no título: Diário de um ladrão, em francês temos apenas du [do], que indica que este ladrão não é um sujeito qualquer. A escolha por essa construção, ao invés do indefinido d’un voleur [de um ladrão], deixa margem para pensarmos que a intenção de Genet era definir a figura do ladrão, mas não apenas como um indivíduo em específico cujas experiências de vida quer relatar, e sim como uma condição, uma categoria. Logo, além de não termos um texto escrito em forma de diário, temos um título que, segundo essa perspectiva, pode indicar também uma maneira de ler esse texto como uma narrativa sobre o cotidiano dessa figura emblemática e não como o diário pessoal de um ladrão qualquer.

Essa interpretação se sustenta através de algumas passagens da obra em que o narrador declara suas intenções com a escrita:

A santidade consiste em fazer servir a dor. É forçar o diabo a ser Deus.

E conseguir o reconhecimento do mal. Faz cinco anos que escrevo

livros: posso dizer que o fiz com prazer, mas acabei. Escrevendo, consegui o que procurava. Sendo para mim um ensinamento, o que vai me guiar não é aquilo que vivi, mas o tom que uso para relatá-lo. Não as anedotas, mas a obra de arte. Não a minha vida, mas a sua interpretação. É aquilo que a linguagem me oferece para evocá-la, para falar dela, traduzi-la. Construir a minha lenda. Sei o que quero. Sei para onde vou (GENET, 2015, p. 156, grifo nosso)19.

Podemos compreender que parte do projeto literário de Jean Genet, além de “reivindicar o mal” (BATAILLE, 2015, p.170), é criar uma lenda de si mesmo e a maneira como intitula sua obra é parte do processo de construção dessa lenda.

Apesar das adversidades e do meio precário em que se criou na adolescência, Jean Genet buscou uma instrução e podemos dizer, considerando outros órfãos e marginais em

19 No original: « La sainteté c’est de faire servir la douleur. C’est forcer le diable à être Dieu. C’est obtenir la

reconnaissance du mal. Depuis cinq ans j’écris des livres: je peux dire que je l’ai fait avec plaisir mais j’ai fini. Par l’écriture j’ai obtenu ce que je cherchais. Ce qui, m’étant un enseignement, me guidera, ce n’est pas ce que j’ai vécu mais le ton sur lequel je le rapporte. Non les anedoctes mais l’oeuvre d’art. Non ma vie, mais son interprétation. C’est ce que m’offre le langage pour l’évoquer, pour parler d’elle, la traduire. Réussir ma légend. Je sais ce que je veux. Je sais où je vais » (GENET,2015, p. 232, 233).

42 situações iguais à dele, que ele conseguiu dar continuidade à boa base intelectual que recebia na infância quando na casa de seus tutores ainda no interior. No entanto, como observa Edmund White, em Journal du voleur, Genet decide suprimir todos os vestígios “de suas primeiras atividades e ambições literárias e intelectuais [...] jamais menciona seus estudos, suas leituras ou sua correspondência literária” (2003, p. 159). O fato de suprimir essas interessantes informações em uma obra que, a princípio, quer expor o seu eu e instruir o seu leitor sobre ele mesmo: “...irei utilizar as palavras, não a fim de que pintem melhor um acontecimento ou seu herói, mas para que os instruam sobre mim mesmo” (GENET, 2015, p.17)20, serve para construir um cenário e uma persona mais excêntrica. Em outras palavras, serve para dar mais força ao “ladrão”, a essa lenda. Ele precisa afirmar a sua imagem de órfão, de delinquente, mendigo, ladrão e prostituto e assim consolidar uma identidade que lhe permita falar pelos outros sem que atraia a atenção para o seu talento, para o seu conhecimento da alta cultura, fator que, de certa forma, o afastaria do exato lócus de enunciação dos marginais, dos demais ex-cêntricos personagens desse submundo.

Talento é cortesia com relação ao assunto; consiste em dar canção ao que era bobo. Meu talento será o amor que tenho pelo que compõe o mundo dos prisioneiros e das colônias penais. Não que eu os queira transformar ou trazê-los para o tipo de vida de vocês, ou que eu lhes conceda indulgência ou piedade; reconheço nos ladrões, traidores e assassinos, na impiedade e na esperteza, uma beleza profunda – uma beleza gravada – que nego a vocês (GENET, 2015, p.124, grifo nosso)21.

Nesta passagem Genet estabelece a existência de dois mundos, o dos prisioneiros e o dos leitores, e que ele faz parte do mundo dos primeiros, mesmo tendo o poder de se comunicar com esse outro mundo no qual os ladrões não têm voz. Edmund White observa que ao negar essa “beleza” aos seus leitores, Genet reforça a sua fraternidade com os prisioneiros, com os deserdados (2003, p.159).

20 No original: « ...j'utiliserai les mots non afin qu'ils dépeignent mieux un événement ou son héros mais qu'ils

vous instruisent sur moi-même. » (GENET, 2015, p. 17).

21 No original: « Le talent c'est la politesse à l' égard de la matière, il consiste à donner un chant à ce qui était

muet. Mon talent sera l'amour que je porte à ce qui compose le monde des prisons et des bagnes. Non que je les veuille transformer, amener jusqu'à votre vie, ou que je leur acorde l'indulgence et la pitié: je reconnais aux voleurs, aux traîtres, aux assassins, aux méchants, aux fourbes une beauté profonde - une beauté en creux - que je vous refuse » (GENET, 2015, p. 123,124).

43 A “ordem moral”22 que Genet quer construir faz parte da lenda que pretende transmitir ao seu leitor. Essa ordem moral ganha mais força quando o seu “diário” é lido como o diário do ladrão e não como o diário de um ladrão, pois reforça o emblema que Jean Genet, enquanto escritor, quer portar para o mundo. É uma estratégia do seu projeto literário que visa criar essa imagem do escritor marginal, do escritor ex-cêntrico que mesmo estando nas prateleiras das livrarias junto de outros nomes de intelectuais franceses, continua reivindicando fazer parte do outro mundo. O diário do ladrão é, em primeiro lugar, uma ode a essa experiência marginal e pessoal que o distingue enquanto sujeito escritor. Este ladrão quer, antes de compartilhar lembranças e experiências da classe de delinquentes com os leitores, criar sua própria mitologia.

Anteriormente, falamos sobre o fato de ser o título de Journal du voleur o primeiro em que aparece um traço que nitidamente sugere um tom confessional. Se, por um lado, o autor faz questão de suprimir de seu texto a história de sua formação intelectual e suas relações com importantes nomes de intelectuais franceses como Cocteau, Sartre e Simone de Beauvoir ̶ exceto pela dedicatória do livro ̶ , por outro lado, não podemos desconsiderar que seu status de escritor, que obteve justamente com a ajuda de outros escritores, lhe serve como amparo para empreender esse projeto. Seria muito mais difícil que um livro sobre a vida de um órfão ladrão homossexual completamente desconhecido, que não fez nada de extraordinário na história de sua vida, no fim da década de 40, despertasse tanto interesse nos leitores apenas pela ideia de que o seu ponto de vista e seu lirismo sobre a matéria vivida e narrada pudesse valer a pena enquanto fruição literária, principalmente considerando que os leitores desconhecessem a base intelectual do autor. A curiosidade do público pelo bas-fond, o entorno social onde vive uma população em situação de miséria e marginalidade, talvez não seria suficiente para chamar a atenção de um imenso número de leitores.

Tendo em vista que as narrativas de Jean Genet se desenvolvem em diversos momentos através de símbolos e figuras alegóricas, tentaremos compreender no capítulo seguinte o conceito de alegoria a partir da obra de Walter Benjamin e contrastar o pensamento crítico de outros estudiosos, Peter Burger, Erika Fischer-Lichte e Beatriz Sarlo, que dedicaram parte de seus trabalhos à análise e compreensão das ideias de Benjamin. O trabalho com os conceitos sobre a alegoria é útil na presente pesquisa para tentarmos compreender de que modo Genet

22 Quando, na Santé, comecei a escrever, nunca foi com o intuito de reviver minhas emoções ou de comunica-

las, mas para que, da expressão delas imposta por elas, eu compusesse uma ordem (moral) desconhecida (de mim mesmo, em primeiro lugar) (GENET, 2015, p. 131).

44 constrói suas alegorias e de que maneiras elas funcionam para criar a mitologia do autor e a sua estética.

45 2. As alegorias e as flores do mal de Jean Genet

No documento rafaelramospereira (páginas 40-45)

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