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2 EPISTEMOLOGIAS NEGRAS

2.2 DIÁSPORA

2.2 DIÁSPORA

Como amplamente divulgado, o termo diáspora, hoje, bastante utilizado em diversos campos teóricos que abarcam a situação política, cultural, social e econômica de africanos e afrodescendentes, foi retirado a partir do pensamento judaico e, mais precisamente, da narrativa presente no Velho Testamento da Bíblia. Aqui não se deseja fazer uma genealogia do uso do termo nem tratar de todas as teorias que já surgiram e disputaram seus significados, sendo apenas uma breve apresentação de uma ferramenta de análise importante para a tese.

Neste momento vou apresentar o texto Os Usos da Diáspora de Brent Hayes Edwards (2017), onde o mesmo faz uma discussão sobre o uso do termo e depois apresenta sua própria forma de interpretá-lo e aplicá-lo. Segundo o autor, já existia um conjunto de intelectuais negros que se debruçava sobre questões do internacionalismo negro desde o século XIX, como Edward Blyden e Martin Delany, passando pelo começo do século XX, como W.E.B. Du Bois e Marcus Garvey. Porém, o termo diáspora só vem aparecer nos últimos quarenta anos, como hoje o utilizamos, ou seja, para descrever ligações e semelhanças entre populações espalhadas pelo mundo e reunidas pela sinonímia do prefixo afro. Dessa forma, o uso do termo

começou a ser desenvolvido pelo grande interesse da academia em políticas como o internacionalismo negro e o pan-africanismo, que se originaram em articulações negras para atuarem em nível de política internacional e foram influenciadas por correntes populares que pregavam o “retorno”:

Se as populações negras do Novo Mundo tiveram sua origem na fragmentação, na opressão racializada e na desapropriação sistemática do comércio escravagista, então o impulso panafricanista origina-se da necessidade de confrontar ou curar esse legado por meio de uma organização ela mesma racial: por meio de ideologias de um retorno real ou simbólico à África. (EDWARDS, 2017, p. 43)

A ideologia de retorno foi tão forte que chegou a influenciar movimentos diversos, como o garveísmo, discursos de etiopianismo, a Negritude, assim como pensadores que atuaram de forma pioneira na História e Ciências Sociais e, posteriormente, na antropologia dos EUA (ibid, p. 44).

Edwards vai identificar como um importante marco o trabalho de George Shepperson ao tentar classificar a diáspora enquanto epistemologia — apesar do próprio Shepperson afirmar que o termo já era bastante usado anteriormente — a partir de uma diferenciação necessária pelo uso indiscriminado e extremamente variado do pan-africanismo a partir do texto Pan-Africanism and ‘pan-Africanism’: Some Historical Notes (1962) em que “Shepperson faz uma releitura do termo precisamente para dar espaço à diferença ideológica e à disjunção ao considerar políticas culturais negras numa esfera internacional” (ibid, p. 49). Além disso, ele também vai destacar o peso da diferença linguística entre os pan-africanistas e explorar uma “dinâmica da diferença” (ibid., p. 50) para afastar um certo universalismo na aplicação do termo pan-africanista e um excepcionalismo de sua aplicação em relação aos EUA e Caribe.

Posteriormente, em outro ensaio de 1965, The African Abroad or The African Diaspora, Shepperson vai oficializar o uso do termo no que Edwards destaca seu pioneirismo e as qualidades do conceito, que seriam flexibilidade, descentralização e o uso da diferença como atributos epistemológicos.

Como um quadro para a produção do conhecimento, a “diáspora africana”, da mesma forma, inaugura uma análise radicalmente descentralizada e ambiciosa de circuitos transnacionais de cultura e política que resistem aos padrões de nações e continentes ou os extrapolam. A guinada rumo à diáspora surge, não em termos de culturas negras no Novo Mundo, mas no contexto de revisar o que

Shepperson chama de tendências “isolacionistas” (D34, 173) e restritivas na historiografia africana – daí o aposto enunciado pelo título do ensaio (“O africano no exterior ou a diáspora africana”). Além disso, a “diáspora africana” é formulada expressamente no intuito de dar conta das diversas e interinfluenciadas tradições negras de resistência e anticolonialismo. Num plano teórico, essa intervenção se concentra especialmente nas relações de diferença e disjunção nas variadas interações dos discursos do internacionalismo negro, tanto em termos ideológicos quanto em termos das próprias diferenças linguísticas (ibid, p. 52).

Além disso, outro fator importante seria o fato de a diáspora enquanto epistemologia ainda não estar no meio de acirradas disputas políticas pelos usos e sentidos do termo, como o pan-africanismo.

Dessa forma, observa-se como a ênfase na diferença se torna uma virada conceitual importante e a própria constituição da ideia de diáspora. Essa maneira de enxergar os processos políticos e culturais da vida negra no mundo vai ser expandida e solidificada a partir de Stuart Hall:

A experiência da diáspora como pretendo aqui é definida, não pela essência ou pureza, mas pelo reconhecimento de uma heterogeneidade e diversidade necessárias; por uma concepção de 'identidade' que vive com e pela, não obstante, diferença; pelo hibridismo. Identidades da diáspora são aquelas que estão constantemente se produzindo e se reproduzindo de novo, através de transformação e diferença. (HALL, 1990, p. 235)

Então, a partir desta perspectiva, essa noção de diáspora vai contestar e subverter modelos culturais de “tradição”, tão fortes nas noções de nacionalismo e Estado Nação e seus ideais de pureza, seus mitos de origem e discursos ufanistas e essencialistas, assim como provocar desterritorializações e abarcar diferentes experiências espaço-temporais. Isso traz para o debate o caráter necessariamente impuro, híbrido e mutante das culturas afrodiaspóricas, como elas passam por processos de contínuas trocas, reapropriações e readaptações. Podemos pensar como processos de desenvolvimento de uma consciência negra em escala mundial, no sentido de um pensamento político insurgente, apresentam a tendência de serem transnacionais, passando pelo processo de tradução e adaptação às diferentes,

porém semelhantes, realidades de populações negras subalternizadas e precarizadas pela égide do capital global.

Assim, podemos pensar na ideia de “diferença dentro da unidade” que Edwards vai trazer a partir do uso que Stuart Hall faz do conceito de articulação de Marx: “[...] retorno à noção de Stuart Hall de diáspora como articulada, como uma combinação estruturada de elementos “tanto por meio de suas diferenças quanto por meio de suas semelhanças” 35” (EDWARDS, 2017, p. 68, itálicos do autor). A partir dessa estruturação ele vai apresentar seu conceito de décalage, palavra em francês que pode significar defasagem, discrepância ou divergência (ibid, p.40):

Se um discurso da diáspora articula a diferença, então é preciso considerar o status dessa diferença — não só a diferença linguística, mas, de modo mais amplo, o vestígio ou o resíduo, talvez, daquilo que resiste à tradução ou que às vezes não tem como evitar a recusa da tradução entre as fronteiras da língua, da classe, do gênero, da sexualidade, da religião, do Estado-nação. Sempre que a diáspora africana se articula (assim como quando os projetos negros transnacionais são adiados, abortados ou recusados), essas forças sociais deixam efeitos sutis, mas indeléveis. Essa desigualdade ou diferenciação marca um décalage constitutivo no próprio tecido da cultura, um décalage que não pode ser nem descartado nem arrancado. (ibid, p. 69)

Para concluir, ele vai retornar à interpretação de Hall de articulação quando a usa enquanto metáfora do corpo humano, explicando que a junta ou articulação vai ser tanto um lugar de ligação quanto uma separação, como braço e antebraço, e o que vai permitir a movimentação:

Minha tese, finalmente, é a de que as articulações da diáspora têm que ser abordadas desse modo, por meio de seu décalage. Porque, paradoxalmente, é essa lacuna ou discrepância obsedante que permite exatamente à diáspora africana “dar passos” e “mover-se” em várias articulações. A articulação é sempre um gesto estranho e ambivalente porque, afinal, no corpo, é somente a diferença — a separação entre ossos ou membros — que permite o movimento. (ibid, p. 70)

35 Stuart Hall, “Race, Articulation, and Societies Structured in Dominance”, em Sociological Theories: Race and Colonialism (UNESCO, 1980), reimpresso em Black British Cultural Studies: A Reader, ed. Houston A. Baker, Manthia Diawara e Ruth H. Lindeborg (Chicago: University of Chicago Press, 1996), 16-60.

Afinal, o movimento está no cerne da ideia de diáspora e vai propor uma inclinação mais voltada para o desenraizamento e o hibridismo do que para fixidez e sentidos de pureza e autenticidade:

A ideia de diáspora oferece uma alternativa imediata à disciplina severa do parentesco primordial e do pertencimento enraizado. Ela rejeita a noção popular de nações naturais espontaneamente dotadas de uma consciência de si próprias, compostas meticulosamente por famílias uniformes; ou seja, aqueles conjuntos intercambiáveis de corpos ordenados que expressam e reproduzem culturas distintas em absoluto, assim como pares heterossexuais formados com perfeição. Como uma alternativa à metafísica da “raça”, da nação e da cultura delimitada e codificada no corpo, a diáspora é um conceito que problematiza a mecânica cultural e histórica do pertencimento. Ela perturba o poder fundamental do território na definição da identidade ao quebrar a sequência simples de elos explanatórios entre lugar, localização e consciência. Deste modo, ela destrói a invocação ingênua da memória comum como a base da particularidade, ao chamar a atenção para a dinâmica política contingente da comemoração. (GILROY, 2007, p.151)

Seria uma forma de ver não mais a diáspora como ligada a um sentido de deslocamento de um local de origem comum, uma terra natal, mas como processo, “um processo que gera sujeitos através de negociações decorrentes de condições estruturais e históricas específicas que mudam ao longo do tempo.” (CLARKE e THOMAS, 2006, pp. 12-13). Reivindicar essa fluidez como antídoto aos nacionalismos, absolutismos étnicos, essencialismos, assim como ao colonialismo e ao racismo, é um ato político e nos força a olhar de maneira diferente e questionadora para as fronteiras espaço-temporais hierarquizadas e geradoras de conflitos e a deslocar a experiência diaspórica “[d]o cronótopo da estrada para o cronótopo da encruzilhada” (GILROY, 2001, p. 371), fazendo emergir uma nova forma de analisar o processo de trocas culturais e geração de conhecimentos que a epistemologia da diáspora permite. Algo que Rufino (2014) vai ilustrar de forma criativa ao invocar Exu como episteme e metáfora de diáspora por ser o senhor das encruzilhadas e “por se caracterizar como o dinamizador dos fluxos, da comunicação, dos atravessamentos, da recriação e da ambivalência.” (ibid, p. 60).

Assim, como defendem autores como Gilroy (2001) e Jaji (2014), a música negra será uma das formas mais significativas e um locus privilegiado para se analisar a diáspora e suas redes de trocas e afiliações, assim como suas rupturas e diferenças,

de tal forma que uma interlocução específica com a temática não poderia passar despercebida.

2.3 ENCRUZILHADAS DA AFRODIÁSPORA INTERLIGADAS PELA MÚSICA,