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Communitas Existencial ou

3 UMA TRADIÇÃO FESTEJADA: É JUNHO!

3.4 DIA DE SÃO PEDRO: CORAÇÃO DO MÊS DE JUNHO

O dia de São Pedro, tem algumas peculiaridades musicais que são interessantes de se observar. Neste subcapítulo alguns eventos serão narrados de forma com que, neste dia de São Pedro, temos um momento determinante no fechamento de um ciclo de rituais.

Apesar de todas as pessoas estarem muito felizes e entregues ao festejo do santo, se calcularmos bem, temos um mês de romaria [maio] com arriadas diárias de daime; logo em seguida o bailado de encerramento; o aniversário da Madrinha Chica; o grande dia de Santo Antônio, e finalmente, São Pedro.

O dia realmente tem uma importância ritual fundamental nas festividades do mês de junho, porém, e mais importante, é a carga emotiva que o dia tem. São Pedro revela um certo “stress” da constância ritual do daime, e além do mais, a homenagem é a Xangô, Orixá da Justiça.

Os trabalhos começaram as 19h30 com a primeira arriada do daime. A igreja estava mais vazia do que no dia de Santo Antônio. Tradicionalmente este dia funciona como um

“refresco” dos consecutivos dias de festividades; por mais que exista uma saturação emotiva e física, São Pedro tem uma “leveza” astral que é muito percebida nos Salmos. A igreja se mantinha organizada, as bandeirolas estavam no lugar, e no centro do salão uma imagem de São Pedro segurando a chave do céu, estava de pé esperando todos para a hora do bailado.

Os trabalhos seguiram na mesma ordem: igreja e bailado. No início do ritual, um Irmão pediu a palavra para falar algumas coisas ao grupo pelo microfone. Essas aberturas

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de oratória no dia de São Pedro foram muito constantes. Diversas pessoas foram ao microfone durante os trabalhos na igreja para falar ou solicitar algo aos Irmãos e Irmãs.

Este no caso, proferiu algumas palavras de agradecimento: pelo seu fardamento, por Deus a sua existência, e principalmente, por ter conseguido uma cura espiritual “muito profunda”.

Enquanto falava, os músicos postando os violões o acompanhavam tocando algumas notas dedilhadas suavemente. Ao encerrar, todos bateram palmas e o Irmão se dirigiu à sua cadeira.

Também neste dia além dos agradecimentos, faziam-se também, algumas solicitações e críticas. Uma Irmã desta vez, pediu a palavra no microfone e fez algumas críticas aos fardados. Ela se levantou e durante toda a sua oratória, com a voz firme, disse que todos deveriam cumprir o Regimento da Casa. Ela comentou sobre a importância do cumprimento dessas regras, dizia que era necessário a quitação das mensalidades [a se pagar para a manutenção do espaço], sobre a colaboração no retiro das folhas e do cipó nas matas, rechaçou algumas pessoas que estavam descumprindo essas, e outras regras, sem citar os nomes ou se dirigir a alguém. Ela solicitou que as pessoas que estivessem com pendencias com a Madrinha Chica [financeiras quanto a mensalidade] cumprissem o compromisso o mais breve possível52.

A CEOCPE tem uma organização institucional interessante. São distribuídos diversos cargos, e cada um tem uma importância central na organização das finanças, do espaço, da higiene, da comida, do cuidado com a estrutura, dos jardins, etc. O não cumprimento dessas regras acentuam uma tensão e um desconforto dentro do lugar, que são mais tensionados durante os rituais. O Dia de São Pedro é misticamente conhecido como um dia de “lavar a roupa suja”, ou melhor, de desacumular a tensão; é Xangô quem está presente, e por isso, “justiça seja feita”.

O dia estava bem frio. Os fardados vestiam a farda branca, e os visitantes em sua maioria estavam trajando roupas brancas e mantas coloridas. É importante reportar como o daime acentua as mudanças de temperatura. Tanto para o calor quanto para o frio, nos

52 As mensalidades são doações que os fardados têm como compromisso com a casa e fazem mensalmente.

Não existe um valor específico e isso é combinado com a Madrinha e o presidente em exercício. Na ausência dela o presidente é o Alcimar, o seu filho. Com essa verba eles compram velas, preparam os banquetes, os ornamentos, manutenções no espaço e todo o suporte que o lugar precisar financeiramente para a boa manutenção do espaço.

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dias em que pude observar os festejos dentro da miração, a constância do frio era muito continua. O calor só se acentuava no daime durante o bailado.

A sua tendência em geral é o frio. Nos dias mais frescos ou de friagem, o frio é apenas mais acentuado e as pessoas tendem a se agasalhar mais, justamente pelo processo enteogênico do daime. É comum que mesmo em dias quentes as pessoas usem tecidos e panos envoltos do corpo para se proteger dos “tempos frios” da miração.

Na música do dia de São Pedro, foram utilizados a mesma formação instrumental e aparelhagem que no dia de Santo Antônio. Alguns detalhes foram alterados em homenagem ao dia do Santo, como os Salmos a se cantar escolhido nos Hinários, os ornamentos das bandeirolas com sua imagem, bandeiras hasteadas com seu rosto pelo espaço, e uma imagem de barro sua no centro do salão. No meio do meio do salão, também, uma imagem de Xangô estava ao lado de São Pedro.

A Madrinha Chica estava desde o início sentada à mesa, e o seu filho Joca estava ao seu lado empunhando o violão de 7 cordas. Durante todo o período em que tocava na igreja, constantemente afinava o violão, principalmente da metade pra frente, em determinados Salmos. Pude perceber que em todos os momentos em que o Joca afinava o violão, os músicos não o faziam também. O violão do puxador tem uma importância na afinação muito grande, principalmente por ele começar a cantar, o violão do puxador, quando é o Joca, tende a seguir a sua afinação vocal.

Havia uma certa introspectividade no ar devido ao frio, e também pelo repertorio que se estava cantando; os Salmos em sua maioria era de instrução e limpeza. Os Salmos de Instrução têm uma característica marcante, eles têm uma alta carga impositiva como: Faça, crie, siga, seja, reze, ore, etc. Os Salmos de Instrução indicam comportamentos e subjetiviza o “correto” posicionamento do Irmão ou da Irmã dentro e fora da communitas.

Além disso ele instrui o daimista diante das dificuldades terrenas, nas adversidades, nas brigas e injustiças que tanto condenam no mundo. As instruções desse tipo de Salmo têm uma bagagem afetiva muito grande, pois é este tipo de Salmo que tornará o Irmão ou a Irmã, uma pessoa “melhor” dentro do que compreendem como uma pessoa “evoluída” e desprendida de pecados e prazeres mundanos.

Os Salmos de limpeza nitidamente têm essa função: limpar. São Salmos repletos de autorreflexões, de autoanálise, de “questionamentos” da própria fé. A intensa reflexão de

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atitudes, dos erros, das injúrias e pecados cometidos são postos em cena, e durante esses Salmos tudo pode ser possível. Alguns tem reações tão fortes a esses Salmos, que vomitam, as vezes choram, e em casos extremos tem diarreias.

Esses processos fazem parte do ritual, por mais “assustadoras” que sejam essas sensações, se pudermos assim categorizar, elas são vistas como boas e necessárias, uma verdadeira desintoxicação, um merecimento. Esses processos de Limpeza, que fazem parte do repertório dos Salmos de Limpeza são fundamentais na relação intersocial do lugar. Uma pessoa limpa é um soldado forte, um Irmão forte.

Os trabalhos na igreja seguiram durante três horas, e diversos Salmos de limpeza foram cantados. As pessoas se retiravam durante os trabalhos dentro da igreja entre os intervalos de um Salmo a outro. Uns iam para o banheiro, outros para o jardim respirar, outros saiam para beber água. O dia de São Pedro começava a ficar muito “atribulado”.

Comecei a perceber uma certa inquietação durante a execução dos Salmos na face das pessoas. Durante alguns momentos, na miração, até eu me senti em processo de limpeza, um “mal-estar” muito forte começava a me envolver, passei a perceber que isso ocorria coletivamente.

Os Salmos de limpeza trabalham muito as memórias. Nelas são apontadas todas as nossas falhas, injustiças cometidas, ofensas, enfim, tudo aquilo que dentro da Barquinha merece ser descolada do indivíduo que vive e/ou pretende se inserir na communitas. A música estava muito dissonante, os metálicos dos violões apareciam de forma muito aguda.

O Joca tocava o violão e estava de costas para os outros músicos. Ao lado da Madrinha Chica, e de frente para a mesa e ao altar. Ele, em alguns momentos, cantava acentuando quase que um fortíssimo alguns trechos que gostaria de dar ênfase.

Alguns trechos importantes de outros Salmos merecem esse acento vocal. É naquele momento, a depender do tipo de Salmo, que as pessoas devem prestar mais atenção e a se concentrar de forma profunda. As pessoas enquanto ouviam, faziam máscaras faciais de comoção, olhavam muito entre si, alguns choravam, e outros se retiravam para ter seu momento individual de limpeza.

O trabalho na Igreja seguiu dessa forma: Instrução e Limpeza. O repertório usado narrava muito as histórias de São Pedro, de São João, pouco de Santo Antônio, e em alguns momentos tinham Salmos que falavam sobre Xangô e o reino de Aruanda. Enquanto os

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trabalhos se dirigiam para o final, e anunciava a continuidade no bailado, as pessoas empunhavam rosários nas mãos, terços, fios de contas da umbanda e do candomblé, e ouviam o último Salmos que anunciava o encerramento, o Salmo de Encerramento.

O Salão tem um formato retangular, e tem uma caixa autofalante em cada quina de noventa graus. Por mais que o ritual do bailado seja em formado de gira, ou seja, circular, o espaço tem um salão de forma quadrangular. A CEOCPE se difere de outras Barquinhas que tem o salão em formato circular. Não se sabe ao certo o verdadeiro motivo do lugar ter essa diagramação quadrangular, mas a sua formatação saiu de um padrão que as Barquinhas Centro Espírita e Culto de Oração Jesus Fonte de Luz e a Barquinha Mestre Daniel, dirigida por Antônio Geraldo têm: um salão circular.

É importante salientar que nos intervalos do trabalho da igreja para o salão, muitos se encontram e trocam experiências sobre o período em que estavam na miração. Esses intervalos fazem parte do processo ritual e são fundamentais para o “entendimento” do trabalho e da própria doutrina da religião, além de aliviar muitas “tensões”. São nesses períodos que Irmãos e Irmãs relatam suas experiências, seus medos, exercitam a memória musical, cantam trechos dos Salmos, imitam os instrumentos na voz e vão para o Cruzeiro das Almas fazerem suas preces para se prepararem para um “bom bailado”.

Durante os trabalhos dentro da igreja, não é permitido comunicação em alto tom, ou conversas esporádicas, mas, após esse período, no bailado, ocorre um esvaziamento dessas liberdades represadas. Um Irmão me relatou que o bailado é uma “brincadeira” com os espíritos, e é nessa brincadeira que todos “podem ser o que realmente são”.

Vamos brincar? Vamos para o dia de São João.

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3.5 SÃO JOÃO E OS ENCERRAMENTOS JUNINOS