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O diagnóstico e tratamento precoce de desequilíbrios que ocorrem no sistema hemostático em doentes cirróticos são fulcrais. Actualmente, o diagnóstico é baseado em dados clínicos e analíticos.

Em pacientes com doença hepática, ocorrem alterações extremamente complexas no sistema hemostático, que reflectem anormalidades em testes de laboratório. Por exemplo, tempo de hemorragia (TH), marcadores de ativação das plaquetas, testes de função e contagem plaquetária, podem refletir mudanças na hemostase primária. [1] Também não nos devemos focar apenas nos níveis de

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coagulação individuais, como o tempo de protrombina (TP) e o tempo de tromboplastina parcialmente ativada (TTPa) para prever o estado hemostático. [3,9]

As modificações nos testes laboratoriais, têm sido consideradas particularmente relevantes nas complicações hemorrágicas que ocorrem na cirrose. O conceito de uma relação causal é amplamente aceite entre médicos, como demonstrado pela prática comum de triagem de doentes com testes de hemostase anormais a fim de tratar as anomalias identificadas, antes da biopsia hepática ou outros procedimentos potencialmente hemorrágicos. [1, 3]

No entanto, alguns estudos revelam que estes testes de diagnóstico de rotina não são clinicamente uteis para estratificar o risco de hemorragia em doentes cirróticos. Estudos recentes relatam uma pobre correlação entre a hemorragia e os índices de hemostase periférica; adicionalmente, os dados apontam para a formação de trombina, bem como uma normal adesão de plaquetas nestes doentes, questionando assim, a utilidade dos testes convencionais. [1, 3, 9, 12]

Experiências laboratoriais realizadas nos últimos anos, têm demonstrado que o sistema hemostático em pacientes com doença hepática pode não estar em estado de hipocoagulabilidade, como sugerido pelos exames laboratoriais de rotina. Pelo contrário, defeitos no número e função das plaquetas, função pro-coagulante e regulação da fibrinólise, todos aparecem equilibrados, e o resultado será uma diminuição das vias pró e anti-hemostáticas. [9,12] Este equilíbrio hemostático é no entanto muito mais frágil relativamente a indivíduos saudáveis, explicando assim as complicações hemorrágicas e trombóticas na cirrose hepática.

Va.Avaliação de Hemostase Primária

Contagem de plaquetas

A contagem de plaquetas, frequentemente incluída num hemograma completo, é a medida quantitativa de plaquetas circulantes e na cirrose muitas vezes está diminuída pelas diversas razões anteriormente descritas. É empiricamente usada na avaliação de risco de hemorragia na cirrose. [12]

Tempo de Hemorragia (TH)

O tempo de hemorragia (TH), é um teste global, fácil e uma medida indirecta da função plaquetária, frequentemente usado para avaliar a hemostase primária. [9, 12]

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Este parâmetro, mede a integridade da função plaquetária e da parede vascular e o valor limite superior normal entre 9 e 10 minutos. [9]

No entanto, este teste pode ser sensível a uma série de variáveis que podem produzir resultados falso-positivos ou falso-negativos. Este teste, é influenciado pela contagem e função das plaquetas, bem como, pelo hematócrito, concentração de ureia no sangue, volume de plaquetas e pela natureza do tecido conjuntivo da pele. [9] Em alguns estudos, foi observado um TH prolongado em pacientes com cirrose hepática com contagem de plaquetas >100x109 , nível considerado geralmente dentro dos limites de segurança para procedimentos invasivos. Inversamente houve um TH normal em alguns pacientes com contagens de plaquetas <100x109. Um estudo prospectivo em pacientes com cirrose hepática demonstrou um prolongamento progressivo do TH de CTP Classe A para os pacientes da classe C. [9]

A evidência resultante da prática clinica e da literatura, mostra que o TH pode estar prolongado em 40% dos cirróticos. No entanto, não está firmemente estabelecido se este prolongamento tem relevância clinica. Alguns estudos mostram que TH prolongado (mais do que 12 min) foi associado a um risco cinco vezes aumentado de redução da hemoglobina, após biopsia hepática, mas a associação com outras manifestações clinicas de hemorragia não foi avaliada. [1, 10, 12]. Ou seja, em pacientes cirróticos sem episódios prévios de hemorragia, apenas o gradiente de pressão porta e a função hepatocelular constituem fatores preditivos de hemorragia e da gravidade da mesma. Uma possível explicação é a de que, o prolongamento do TH tenha impacto diferente caso a hemorragia seja provocada (biopsia hepática) ou espontânea (hemorragia gastrointestinal), mas os dados da literatura ainda não são suficientes para sustentar tal hipótese. [9]

A pobre associação de TH como fator de risco para hemorragia na cirrose é apoiada por estudos de intervenção com fármacos que aumentam a adesão vascular e a ativação plaquetária. [9]

A ativação plaquetária pode não estar diminuída, mas, pelo contrário, aumentada na cirrose, e é possível que o prolongamento do TH nestes pacientes resulte de variações na vasoreatividade e / ou disfunção arterial, e não do número e função plaquetária. Uma maior ativação plaquetária também poderia explicar o TH normal encontrado em alguns pacientes com cirrose apesar do baixo número de plaquetas. [9]

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Analisador de Função Plaquetária (PFA-100)

Na cirrose, para clarificar os defeitos da hemostase primária e como se relacionam com a hemorragia, os exames laboratoriais ultrapassam o TH. [1]

Os métodos realizados sob condições de fluxo, como o PFA-100, simulam a função das plaquetas in vivo, no entanto são ainda considerados muito complexos e necessitam de validação para uma futura aplicabilidade na prática clínica. [1, 9, 12].

O PFA-100 tem sido defendido como um substituto simples para o TH, na avaliação de suspeita de doença de Von Willebrand nos distúrbios plaquetários qualitativos, mas ainda não foi avaliado na doença hepática. [1, 9]

Tromboelastografia (TEG)

A TEG é um ensaio in vitro global, que foi desenvolvido para explorar a função plaquetária, a coagulação e a fibrinólise. Este método tem sido sugerido como uma abordagem potencialmente útil e inovadora para avaliar a função plaquetária em cirróticos. [10, 12] No entanto, requerem validação clínica.

Além dos supracitados, outros testes são utilizados para avaliar a hemostase primária, os quais sucintamente estão explícitos na seguinte tabela. (Tabela 2)

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Vb. Avaliação da coagulação

A cirrose é caracterizada por uma síntese diminuida de todos os fatores de coagulação (excepto FVIII e FvW) a qual pode ser documentada através da medição dos fatores de coagulação individuais ou através do prolongamento de testes globais de avaliação da coagulação, como o TP e o TTPa, que são cumulativamente sensíveis para a maioria dos fatores de coagulação sintetizados no fígado. [1]

Teste Globais de Avaliação de Coagulação

O TP é usado para avaliar a integridade da via extrínseca e comum, isto é, dos FV, FVII, FX, protrombina e fibrinogénio. O seu valor de referência pode ser expresso em tempo (14 segundos) ou em percentagem (70-100%).

O TTPa analisa a via intrínseca e comum, ou seja, FV, FVII, FIX, FXI, XII, protrombina, fibrinogénio, pré-calicreina e cininogênio. O seu valor de referencia é 30 segundos.

Nas fases iniciais da cirrose, o TP é geralmente normal ou apenas moderadamente prolongado, principalmente pelo baixo nível de FVII. Na cirrose avançada o TP, é um excelente marcador de insuficiência hepática e um fator prognóstico forte e independente da sobrevida. Este é um dos parâmetros utilizados nos índices de prognóstico geralmente usados na doença hepática crónica (score MELD,

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CTP, Mayo Liver Disease End-Stage). [7,8] Um TP anormal indicia doença hepática ou deficiência de VitK. Também o TTPa se prolonga na cirrose avançada, devido à síntese diminuída dos fatores supracitados. [7,10]

Estes testes de rastreio são baratos, fáceis de executar e considerados clinicamente úteis, no entanto, apresentam várias limitações. [7] Sabe-se que o TP e o TTPa se correlacionam mal com a hemorragia após biopsia hepática ou outros procedimentos hemorrágicos em doentes cirróticos. [1,3,10]

Estes dois parâmetros são inadequados para refletir o equilíbrio entre as proteínas pro e anticoagulantes, como ocorre na coagulação in vivo. [1,3,7]

Tanto a PC como a AT precisam ser ativadas pela TM e pelos glicosaminoglicanos respectivamente, a fim de exercer a sua atividade anticoagulante. Nem o plasma nem os reagentes necessários para realizar ensaios clínicos para avaliar o TP e o TTPa, contêm esses ativadores, que estão normalmente localizados nas células endoteliais; por conseguinte, não conseguem exercer a sua atividade anticoagulante completa. [1,10] Também, o TP e o TTPa são sensíveis apenas para formação de trombina como função dos fatores pró-coagulantes, mas não para a inibição de trombina mediada por fatores anticoagulantes. [1,3,10]

Um estudo recente, investigou o equilíbrio da coagulação em pacientes com cirrose hepática e indivíduos saudáveis, medindo fatores pro e anticoagulantes, através do potencial de trombina endógena (PTE). Resumidamente, o plasma sem plaquetas foi incubado com pequenas quantidades de FT, para atuar como “trigger” da coagulação. O teste foi realizado na ausência e na presença de TM solúvel, como PC ativadora, e foi monitorizada a quantidade de trombina formada ao longo do tempo. Como esperado, os cirróticos tinham prolongamento do TP e TTPa e diminuição dos níveis de PC, AT e FII. Quando o PTE foi medido na ausência de TM, os pacientes apresentaram níveis significativamente menores do que os indivíduos saudáveis. Isto era esperado, na medida em que reflete o defeito parcial de pro-coagulantes, em paralelo ao defeito de anticoagulantes, especialmente PC que é apenas parcialmente ativada, na ausência de TM. Quando o ensaio foi realizado com adição de TM solúvel a população saudável formou menos trombina, mas as diferenças entre populações não foram significativas. [1, 12]

A conclusão decorrente deste estudo é que a coagulação é normal em pacientes cirróticos quando avaliada com testes globais, refletindo a função de fatores pro e anti-coagulantes. Este achado questiona a utilidade dos testes de coagulação

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tradicionais na avaliação do risco hemorrágico em pacientes cirróticos e provavelmente, noutras situações em que tanto os pro como os anticoagulantes são afetados. [1,12]

Uma das limitações deste estudo, é que o PTE foi medido em plasma sem plaquetas, levando apenas em conta a função de pro e anticoagulantes. As plaquetas são conhecidas por contribuir para o PTE através da atividade pro-coagulante mediada pela exposição da membrana fosfolipidica. Estudos mais recentes mediram o PTE sob as mesmas condições do estudo anterior, mas com plasma rico em plaquetas. Sucintamente, quando o PTE foi medido na ausência de trombomodulina em plasma com plaquetas, os pacientes geraram significativamente menos trombina do que indivíduos saudáveis (como para o plasma sem plaquetas). No entanto, quando o PTE foi medido na presença de TM, as diferenças foram suprimidas. Conclui-se que pacientes com menor contagem de plaquetas formam menos quantidade de trombina, confirmando o papel desempenhado pelas plaquetas na formação de trombina e indicam que as plaquetas na cirrose, são qualitativamente capazes de suportar a produção normal de trombina, desde que o número de plaquetas seja pelo menos de 56x109. [1,2]

Niveis de Fibrinogénio e Fatores Individuias

O doseamento dos níveis de fatores individuais, é, por vezes, clinicamente útil. Por exemplo, níveis de FV e FVII são usados na avaliação prognóstica da insuficiência hepática aguda. A redução proporcional em ambos os fatores sugere insuficiência hepática, enquanto uma maior redução no FVII do que no FV favorece a deficiência de VitK. [12]

A proporção de FVIII e de PC pode ajudar a identificar pacientes com produção de trombina preservada. Os valores individuais de PC e PS, assim como AT, por vezes medido em contexto de TVP ou PVT, podem ser difíceis de interpretar na cirrose e requer a análise da diminuição relativa de cada um dos fatores. [5,12]

Também os níveis de fibronogenio são úteis, na medida em que identificam a necessidade de administração de crioprecipitado rico em fibrinogénio; níveis <120 mg/ dL são associados a diminuição e, possivelmente à resistência a pro-coagulantes, como o FVIIa recombinante (rFVIIa).

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Tempo de Trombina (TT)

O TT, avalia o tempo de coagulação do plasma na presença de trombina, permitindo testar a conversão de fibrinogênio em fibrina. Este teste avalia diretamente o fibrinogénio funcional, sendo utilizado para investigar defeitos na molécula de fibrinogénio.

A disfunção da molécula de fibrinogénio pode causar distúrbios herdados ou adquiridos na coagulação. Na cirrose, a disfibrinogenemia deve-se presumivelmente à resposta hepática à cicatrização e à presença de nódulos regenerativos, refletindo-se num TT prolongado. No entanto, o significado da disfibrinogenemia na doença hepática ainda não foi totalmente estabelecido. [12]

D-Dimeros

Estes dímeros podem ser medidos no plasma como um teste relativamente especifico de degradação da fibrina (mas não do fibrinogénio) e por outro lado podem ser usados como marcadores sensíveis de formação de um coágulo sanguíneo. Os D-dimeros são úteis na prática clinica, no diagnóstico da trombose venosa profunda e embolismo pulmonar em populações seleccionadas. [1, 12]

Vc.Avaliação da Fibrinólise

A ocorrência de hiperfibrinólise na cirrose hepática, tem sido objeto de ampla discussão. As razões residem na ausência de testes laboratoriais apropriados para a sua avaliação.[1,7]

A cirrose está associada à diminuição dos niveis de plasminogenio, α1

antiplasmina, FXIII e TAFI, mas também com ao aumento de tPA. Uma especial atenção tem merecido o TAFI, dado que a diminuição dos niveis deste inibidor pode explicar a condição de hiperfibrinolise nesta doença. [1,3] Estudos recentes, testaram esta hipotese, medindo os componentes individuais da fibrinólise, e utilizando um teste para avaliar a capacidade global fibrinolitica plasmática e concluiram que a deficiência de TAFI em cirróticos não esta associada com o aumento da fibrinolise; sugeriram que o equilibrio é restaurado pela redução concomitante de ambos os fatores pro e antifibrinolitico. No entanto, existem outros estudos que concluem exatamente o oposto. Esta polémica poderá residir no facto de terem sido utilizados designs diferentes nos

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ensaios globais de fibrinolise nos estudos, mostrando a relevancia de estudos mais aprofundados no sentido de esclarecer o papel da fibrinolise neste cenario. [1]

As medidas dos componentes individuais da via fibrinolitica não são uteis e provavelmente sobrestimam a importancia da hiperfibrinolise na cirrose. [1, 12]

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