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3. A TENSÃO ENTRE MÍDIA E SEGURANÇA PÚBLICA

3.2. Diagnóstico do passado e do presente

Marcos Rolim resume em sua pesquisa a forma como a cobertura de segurança pública vem operando majoritariamente no Brasil e seus encadeamentos. Para ele, a mídia está no centro de uma espiral de violência – atuando como consequência e causa, num processo cíclico.

O discurso de “lei e ordem”, as demandas punitivas e a “inversão” produzida pelos noticiários aumentam a angústia pública diante da violência e promovem uma sensação de insegurança normalmente desproporcional aos riscos concretos. O mesmo processo inspira menor tolerância social e estimula formas agressivas de defesa. A mídia pode amplificar as chamadas “ondas de crime” e produzir pânico entre as pessoas. E, o que é mais grave ainda, quando essa forma de se relacionar com o crime e a violência é regra, cria-se uma

tendência de que as polícias respondam com mais prisões e, quase sempre, mais violência. Ocorre, também, que o poder judiciário passa a responder com sentenças criminais mais duras e que os políticos aprovam leis que criam novos tipos penais e agravam as penas. Como resultado, teremos mais violência e mais crime, o que conforma o fenômeno das “profecias que se “autocumprem” (ROLIM, 2006: 198)

O diagnóstico feito pelo CESeC constatou um passado de preconceito, irresponsabilidade e sensacionalismo na cobertura da segurança pública pelos veículos de comunicação brasileiros. Muitas destas práticas, condenadas pelos próprios profissionais da imprensa, remontam aos anos 1950, mas se arrastaram ao longo do século e muitas delas perduram até hoje.

Noções apelativas, trocas de favores entre repórteres e policiais, pouca qualificação e uma visão estigmatizada e desqualificada dos jornalistas da “editoria de polícia” eram uma constante nesta relação tensa entre mídia, segurança pública e criminalidade.

Luarlindo Ernesto, em 2007 pauteiro do jornal O Dia, tem quase 50 anos de experiência na cobertura do crime e já passou por diversos jornais cariocas. Em entrevista ao CESeC, ele relembra práticas que hoje soam até absurdas:

Nos anos 50, e isso foi assim durante muito tempo, era proibido voltar para a redação sem o “boneco”. O boneco da vítima, a foto. Se voltasse sem o boneco, era melhor não voltar. Se não tivesse a foto do rosto do morto, tinha que ter imaginação para pegar a foto com a família, do álbum de casamento, da parece da casa, de onde fosse. E às vezes tinha que mentir, dizer para a família que isso ia ajudar na investigação. Não tinha esse negócio de ética na imprensa. Os repórteres encontravam um cadáver e colocavam uma cartolina com a frase: “esse não mata mais”. E depois davam a notícia. (...) Dos anos 60 aos 80, até quase a década de 90, havia muita cumplicidade entre polícia e repórter. Tinha um detetive, que depois virou delegado, (...) que era famoso por colocar arma na mão de repórter durante as operações: “segura aí, eu vou por ali e você fica atrás desse poste” (in: RAMOS & PAIVA, 2007: 16).

Apelação e sensacionalismo davam a tônica da cobertura, ilustrada, como conta Luarlindo, por fotos explícitas e violentas cuja função não podia ser outra além de chocar o leitor e marcar aquele crime como algo catártico, doutrinador, atípico, brutal e fora dos parâmetros de uma sociedade que não percebia a criminalidade como um processo, mas sim como algo pontual. Este contato com a morte violenta e intencional, a partir da mediação do relato, tinha a missão de aproximar o público leitor do extremo, do que ele compreende como o limite que não pode ser transposto (ROLIM, 2006: 187).

Essa eventualidade do episódio violento na mídia – não em termos de frequência de reportagens sobre crime, mas no tratamento do caso, como algo não-natural – criava coberturas quase folhetinescas e cômicas. A idéia de “inimigo número um” era representada nas figuras de criminosos cujas alcunhas eram “Cara-de-Cavalo”, “Mineirinho”, “Tenente Bandeira”, “Sete Dedos”, entre outras muitas.

Em um balanço do jornalismo policial brasileiro, o diretor da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Fernando Molica, não chegou a trabalhar em redações neste período – é mais novo que isso. Mas tem larga experiência em redações de meios impressos e estudou o jornalismo praticado nos anos 1950/1960. Para ele,

(...) A leitura de jornais e revistas da época revela uma sociedade que se supunha mais normal, equilibrada e, vá lá, justa. O crime era algo que destoava, uma nota mal tocada, que ameaçava comprometer a sinfonia do progresso e da harmonia social. (in: RAMOS & PAIVA, 2007: 27)

Esta abordagem factual, e não contextualizada, prevalecia desde essa época, e apesar das inúmeras evoluções no jornalismo policial, esta é uma característica da qual ele não consegue se desvencilhar até hoje. O levantamento do CESeC comprova que a grande maioria das matérias (77,7% no caso do estado do Rio de Janeiro e 63,8% na pesquisa em todo o Brasil) só dá ênfase às histórias individuais e que os jornais têm pouca iniciativa, no sentido de analisar criticamente o que acontece, se deixando dominar pela avalanche de acontecimentos do dia-a-dia.

O chefe da sucursal carioca do jornal paulista Folha de São Paulo, Plinio Fraga22, é um dos que aponta a necessidade de uma mudança. Para ele, os jornais que só pensam na edição do dia seguinte estão fadados a morrer. Embora o jornal onde trabalhe não apresente uma cobertura tão diferenciada dos outros que ele critica, Plinio é categórico ao ressaltar a importância de a mídia estar mais perto da reflexão e não se apegar tanto ao factual. Os meios de comunicação, portanto, segundo ele, precisam filtrar os acontecimentos factuais e se deter em cobrar respostas do poder público e em apontar tendências no campo da segurança pública.

22

É preciso ratificar que os jornalistas citados assumiam estes cargos quando da publicação do livro para o qual deram os depoimentos aqui utilizados, ou seja, 2007.